Dois projetos de poder, dois destinos para a República: a urgência de uma escolha civilizatória. Artigo de Thiago Gama

Foto: Vatican Media

21 Novembro 2025

Este não é um ensaio sobre religião. É uma radiografia do abismo teológico-político que racha o Brasil atual. Enquanto você, leitor, lê estas linhas, duas forças metafísicas disputam a alma da República: de um lado, o projeto de Silas Malafaia, uma teologia schmittiana do inimigo que ergue bunkers e declara a exceção permanente. Do outro, a resposta que o Papa Francisco nos ofereceu, uma teologia inaciana do encontro que constrói pontes a partir da vulnerabilidade. Através das lentes da história comparada, da filosofia política e da teologia fundamental, Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ), disseca este duelo que se tornou decisivo em nosso tempo.

O texto demonstra como a operação da Polícia Federal em 20 de agosto de 2025 contra o pastor não é um mero caso policial, mas o sintoma do choque entre uma teologia do domínio – que canibaliza a democracia – e uma teologia do serviço – que ofereceu os últimos anticorpos contra a febre autoritária. A pergunta que fica não é sobre fé, mas sobre poder: você habitará o bunker do grito ou se arriscará na ponte do silêncio? A resposta define o futuro do nosso convívio nacional. A leitura não é apenas recomendada, humildemente, este escriba recomenda, é urgente (!).

Eis o artigo.

A hora da decisão teológica

Um espectro ronda o Brasil, mas não é o comunismo. É mais profundo, mais teológico. É a sombra de um projeto de poder que operou a mais perigosa das transubstanciações: trocou a Cruz pela Espada e o Evangelho pelo Estado de Exceção. Enquanto a intelectualidade secular discutia a Constituinte, uma revolução silenciosa - de cifras e almas - rearrumava o mobiliário sagrado da nação.

Os números do IBGE narram este êxodo: o catolicismo, outrora hegemonia de pés de barro, definha para 56,7%, enquanto o evangelicalismo cresce para 26,9%. Mas números são áridos. Eles não traduzem o ódio sacramentado na Avenida Paulista nem a liturgia do silêncio ferido na Praça de São Pedro. Não explicam por que, em 2025, o Pastor Silas Malafaia tornou-se alvo da Operação da Polícia Federal que investiga ataques à democracia, enquanto o Papa Francisco, em seu pontificado crepuscular, mancou pelo mundo pregando uma “Igreja em saída”.

Estamos diante de um duelo metafísico que é, também, a disputa final pela ideia de República. De um lado, Silas Malafaia, o pastor-general, o teólogo do bunker para quem o inimigo é um sacramento. Do outro, os ensinamentos perenes do Papa Francisco, o jesuíta argentino, o profeta da Parresia que desarma a guerra com a ponte. Dois modos de dizer “Deus” que não coabitam o mesmo universo teológico, dogmático e moral.

Esta análise se propõe a dissecar, com o rigor da teologia política e a fineza da filosofia inaciana, este abismo civilizatório.

Os alicerces filosóficos - Carl Schmit e Inácio de Loyola

O projeto do pastor Malafaia encontra sua chave hermenêutica em Carl Schmitt, ainda que possamos inferir, com boa dose de certeza, que o pastor jamais tenha sido lido o jurista alemão. A tese de Schmitt – “soberano é quem decide sobre o estado de exceção” - ganha corpo nos estúdios de gravação do pastor. Não se trata aqui de mera apropriação conceitual, mas de uma encarnação existencial: Malafaia torna-se o soberano que decide quando a lei vale e quando a lei é “perseguição”.

Sua genialidade perversa reside na aplicação intuitiva da distinção schmittiana entre amigo e inimigo como essência do político. Seu púlpito é o espaço onde se instaura um estado de exceção portátil - a suspensão temporária da racionalidade democrática em nome de uma urgência escatológica. O inimigo (seja “o comunismo”, “a ideologia de gênero” ou o Ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal) funciona como operador teológico-político: unifica a tribo, justifica a transgressão e sacraliza o poder do líder.

Francisco emergiu dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola. Sua formação jesuíta é o antídoto para a teologia do bunker. O Quarto Voto - obediência ao Papa “acerca das missões” - não é mera norma disciplinar, mas uma revolução antropológica: é o voto da mobilidade radical, da desapropriação do eu, da prontidão para ser enviado às fronteiras existenciais. Enquanto Malafaia edifica seu feudo, Francisco praticou e incentivou êxodo permanente.

Aqui residem os alicerces inconciliáveis: de um lado, a teologia da fortaleza; de outro, a teologia que mostrou um caminho de comunhão.

A antropologia teológica - o homem forte versus o homem ferrido

A divergência entre esses dois projetos revelou-se com clareza solar em suas antropologias fundamentais - suas concepções sobre a natureza humana e seu lugar no mundo. Silas Malafaia opera com uma antropologia da invulnerabilidade. Seu homem ideal é o “vencedor” da Teologia da Prosperidade - aquele que, pela fé e pela determinação, domina circunstâncias, vence crises e exibe sucesso material como sinal visível da bênção divina. É uma antropologia que nega a fraqueza, que transforma o sofrimento em fracasso espiritual e a dúvida em pecado. Nas transmissões do pastor, o corpo é instrumento de performance: gesticulações vigorosas, voz potente, terno impecável. Tudo comunica domínio, controle, invulnerabilidade.

Esta visão ecoa profundamente no imaginário de uma classe média que, desamparada pelo Estado e assustada pela violência, anseia por narrativas de auto-superação e controle. O sucesso financeiro torna-se o sacramento desta eleição divina. É o que o teólogo Paul Tillich chamaria de “demonização do contingente” - a incapacidade de aceitar a finitude como parte constitutiva do ser. Francisco, ao contrário, ofereceu uma antropologia da kenosis. Seu homem paradigmático é aquele que, como Cristo, “esvaziou-se” (Filipenses 2:7) de todo poder para encontrar sua plenitude na doação.

O pontífice não cansou de falar das “periferias existenciais” - não como lugares geográficos, mas como estados da alma onde a vulnerabilidade é reconhecida como portal de graça. Seu mancar não é acidente; é programa teológico.

Enquanto Malafaia vende a ilusão do super-homem cristão, Francisco abraça o escândalo de um Deus que se faz ferida. Na Exortação Gaudete et Exsultate, ele é taxativo: “A fraqueza é o espaço da misericórdia”. Esta visão desmonta por dentro a lógica do desempenho que alimenta o neoliberalismo espiritual de Malafaia. O Papa recuperou a tradição paulina: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12,10).

Aqui reside um dos abismos mais intransponíveis: para um, a fraqueza é vergonha a ser superada; para o outro, foi mistério a ser abraçado.

Eclesiologias em conflito - o feudo versus a sinodalidade

A divergência antropológica desdobra-se naturalmente em modelos eclesiológicos radicalmente opostos - concepções de Igreja que revelam projetos políticos substancialmente diferentes. A eclesiologia de Malafaia é feudal e vertical. Sua Assembleia de Deus Vitória em Cristo opera sob a lógica do feudo espiritual, onde o  pastor é senhor absoluto, detentor não apenas da autoridade administrativa, mas do monopólio da interpretação bíblica e da mediação das bênçãos divinas. O lugar privilegiado onde políticos locais vão pedir-lhe a bênção para almejar cargos públicos, como recentemente fez o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes, em seu intento de se tornar o próximo governador do Estado do Rio nas próximas eleições de 2026.

É uma estrutura que espelha, não por acaso, o modelo corporativo de holdings empresariais: centralizada, personalista e expansionista. O “rebanho” é simultaneamente comunidade de fé e base de clientela política - um capital social e eleitoral que fortalece a posição do pastor nas negociações com o poder temporal, como explicitado acima.

Esta eclesiologia do feudo explica a fúria com que Malafaia reage a qualquer tentativa de regulação estatal ou questionamento jurídico. Para ele, a Igreja é território soberano, e qualquer ingerência externa configura “perseguição religiosa”. O inquérito da PF, portanto, não é lido como procedimento legal, mas como violação de imunidade diplomática de um Estado paralelo. Esbravejou no aeroporto quando seu passaporte foi retido pela Polícia Federal: “Como apreendem o passaporte de um pastor?” Algo como se Igreja e Estado fossem fundidas, e séculos já não tivesse, a custo de muito sangue, separado as duas entidades formalmente.

Em contraste, no documento A Igreja na Amazônia, Francisco falou da Igreja como “povo de Deus em saída”, estrutura poliédrica onde diferentes carismas se complementam. A sinodalidade, tema central de seu pontificado, não foi mera metodologia consultiva, mas forma de ser da Igreja - um povo que caminha junto, onde o Espírito sopra em todos, não apenas na hierarquia.

Esta visão desloca radicalmente o eixo do poder: da centralização para a comunhão, do monopólio para a colegialidade. Enquanto Malafaia fortalece seu bunker, Francisco promoveu o Sínodo dos Bispos como espaço de escuta e discernimento coletivo. Enquanto um concentra, o outro dispersa; enquanto um cerra fileiras, o outro abriu caminhos.

A eclesiologia de Malafaia produz sujeitos devotos, mas dependentes; a de Francisco aspirou formar discípulos maduros e corresponsáveis. Uma prepara para a batalha cultural; a outra, para esforçou-se para o testemunho missionário.

Teologias do poder - a espada que domina versus a cruz que serve

O cerne da disputa revela-se nas teologias do poder que animam ambos os projetos. Chegamos, portanto, ao núcleo duro da contradição: duas compreensões radicalmente opostas sobre como o divino se relaciona com o poder temporal.

Malafaia entende Deus como o Senhor dos Exércitos, o Soberano que esmaga inimigos e coroa seus eleitos com vitórias terrenas – uma leitura do Primeiro Testamento sem intertextualidade, criticismo e literal, esvaziando sem sentido profético. É uma leitura seletiva das narrativas bíblicas de conquista, que ignora sistematicamente os profetas que denunciaram o poder e o Cristo que recusou os reinos deste mundo. Nesta ótica, o sucesso político e econômico torna-se o sinal visível do favor divino - uma sacralização do status quo que benze as estruturas de poder existentes.

Esta teologia opera o que o filósofo Giorgio Agamben chamaria de “máquina teológica”: a transferência de atributos divinos para instâncias terrestres. O pastor, como representante deste Deus-guerreiro, torna-se ele mesmo um operador de poder que não hesita em ameaçar, intimidar e esmagar opositores. O poder é para ser tomado, exercido e expandido - nunca questionado em sua essência.

Francisco compreendeu Deus como Aquele que desce, o que lava pés, o que “esvaziou-se a si mesmo” (Filipenses 2:7). Na exortação Evangelii Gaudium, ele é taxativo: “Como é duro para os poderosos deste mundo encarnar a humildade de Jesus!” Esta não é mera retórica piedosa utilizada pelo Sucessor de Pedro, mas uma subversão radical da lógica mundana do poder. O pontífice recupera a tradição profética que denuncia a arrogância dos tronos e a tradição franciscana do poder como minoridade.

Enquanto Malafaia busca influenciar o poder para dominar, Francisco buscou evangelizar o poder para servir. Um quer cristianizar o Estado; o outro quis humanizá-lo através do serviço. Um entende o Reino de Deus como projeto político a ser implantado pela força; o outro o compreendeu como semente a ser plantada na história, que cresce pela persuasão do testemunho.

Neste ponto reside a diferença abissal: para um, o poder é instrumento de conquista; para o outro, foi vocação de doação.

As políticas do tempo - escatologia militante versus esperança paciente

A disputa pelas almas da República desenrola-se em diferentes registros temporais, revelando escatologias fundamentalmente antagônicas que orientam suas ações no mundo.

Malafaia opera num tempo do kairos revolucionário - o momento decisivo que exige tomada de posição radical. Esta visão apropria-se de forma distorcida da linguagem apocalíptica, transformando-a em instrumento de mobilização política permanente. O inimigo não é apenas um adversário passageiro, mas uma ameaça cósmica que exige resposta imediata e implacável. Esta escatologia do combate final justifica a suspensão de normas, o discurso do ódio e as alianças espúrias - tudo em nome da batalha escatológica.

Esta temporalidade de emergência perpétua gera o que o teólogo Wolfgang Pannenberg chamou de “tic escatológico” - uma ansiedade milenarista que paralisa o discernimento e sacraliza a ação imediatista. O futuro é sempre catastrófico, a menos que a tribo assuma o controle. O tempo, assim, não é espaço de maturação, mas campo de batalha.

Francisco, ao contrário, articulou uma escatologia da esperança paciente, seu tempo foi o da parousia que já começa a irromper nas frestas da história através dos gestos de amor e justiça. Na encíclica Laudato Si’, ele fala do “tempo é maior que o espaço” - princípio que privilegia processos sobre resultados, maturação sobre imposição. É uma escatologia que desacelera a história, que encontra Deus não apenas no fim dos tempos, mas no “aqui e agora” da caridade concreta. Isto é puro serviço. Isto é o livro de Tiago operando no mais alto grau inaciano da alma do Papa que nos deixou: “a fé sem obras é morta” (Tg 2,17).

Enquanto Malafaia vive na expectativa ansiosa do desfecho catastrófico, Francisco cultivou a paciência histórica do agricultor que sabe esperar a semente germinar. Uma escatologia gera pânico e reação; a outra gerou esperança ativa e construção lenta. Uma vê o tempo como recurso a ser controlado; a outra viu como mistério a ser acolhido.

Esta diferença temporal explica a disparidade de seus projetos: um quer tomar o poder; outro quis transformar as relações de poder. Um corre contra o relógio do apocalipse; outro caminhou no ritmo do Reino que já vem.

Retóricas do sagrado - o grito triunfalista versus a palavra kenótica

A materialidade discursiva de ambos os projetos revela a encarnação de suas teologias fundamentais através de estratégias comunicacionais diametralmente opostas, que produzem sujeitos políticos e espirituais radicalmente diferentes.

Malafaia domina a linguagem do grito triunfalista: sua retórica é performática, agonística e visceralmente binária. Cada aparição pública constitui um ato de guerra semiótica onde a palavra não busca comunicar, mas conquistar territórios existenciais. Os recursos são calculados: a câmera baixa que ergue um colosso, o dedo em riste que acusa e exclui, a voz que oscila entre o ameaçador e o triunfante. Esta linguagem opera o que o linguista Austin classificaria como “ato de fala performativo” - não descreve realidade, mas a constitui através do próprio enunciado. Por vezes beirando fraseologia vazia e repetitiva.

O grito de Malafaia produz uma comunidade emocional unida pelo afeto do ódio sacralizado, como observou o antropólogo René Girard, a violência unifica através do bode expiatório. O mecanismo mimético é ativado: todos olham na mesma direção, para o mesmo inimigo, e neste olhar conjunto nasce a identidade grupal. A linguagem não persuade; mobiliza. Não convida; convoca para a batalha.

Francisco cultiva a parresia silenciosa, sua palavra nasce do despojamento retórico, da vulnerabilidade confessada, da recusa dos ornamentos vazios do poder. Quando, na Praça de São Pedro vazia, sob chuva torrencial, ele simplesmente caminhou em silêncio, ofereceu talvez sua mais poderosa homilia. Esta linguagem kenótica - que se esvazia de auto-suficiência - constitui o que Paul Ricoeur chamaria de “linguagem do testemunho”: não impõe, propõe; não grita, sussurra na direção da liberdade do outro.

Enquanto o grito de Malafaia produz adesão emocional imediata, a palavra de Francisco exigiu de nós discernimento e maturação (aqui o escritor para e se lembra dos Exercícios espirituais, é impossível não vir em cada ato do Papa que se foi as palavras que Inácio nos deixou).

Francisco despertou a paralisa a crítica através do afeto; outra palavra ativa através do convite à reflexão (sedes contemplativos na ação). O grito fabrica certezas; o silêncio cultivado por Francisco abre espaço para a pergunta, para a dúvida, para o mistério.

Esta oposição retórica revela a profundidade do abismo: a linguagem como instrumento de dominação versus a linguagem como oferta de sentido; a palavra que fecha versus a palavra que abriu; o grito que uniformiza versus o silêncio que personalizou.

Corpos políticos - o soberano inquestionável versus o peregrino vulnerável

A materialidade dos corpos em cena revela, talvez com mais clareza que qualquer discurso, a natureza profunda desses dois projetos teológico-políticos. Os corpos de Malafaia e Francisco não são meros acidentes biográficos, mas textos teológicos que ensinam mais que mil sermões.

O corpo de Malafaia é um tratado sobre a invulnerabilidade do poder, seu físico ereto, os ternos de corte impecável, a gestualidade expansiva que ocupa o espaço - tudo comunica domínio, autocontrole, impenetrabilidade. Este corpo não envelhece, não cansa, não duvida. É um corpo-fortaleza, blindado contra a contingência, que se oferece como ideal a ser alcançado pela performance financeira e espiritual de seus fiéis. Nas transmissões de tevê, ele é frequentemente filmado de baixo para cima, ângulo que os gregos reservavam aos heróis e os romanos aos imperadores. Seus relógios caríssimos, seus carros blindados (como ele próprio já o declarou), suas pulseiras de ouro a tilintas nos pulsos.

Este corpo performático ilustra o que o filósofo Peter Sloterdijk chamou de “imunização egológica” - a construção de uma subjetividade fechada às ameaças do exterior. Não por acaso, Malafaia gravou diversos vídeos em resorts de luxo e iates: seu corpo precisa estar em ambientes igualmente controlados, protegidos das intempéries do mundo real. É a encarnação da teologia da prosperidade - um corpo que nega sua própria mortalidade. Que outro pastor organizaria uma viagem à terra Santa com passagem por Dubai? O monumento mais cafona do mundo à ostentação vazia e barata erguida para adorar o bezerro de ouro? Malafaia o faz.

O corpo de Francisco foi uma lição de vulnerabilidade sacramentada, seu mancar nos foi visível, assim como sua falta de ar, em seus últimos momentos, a postura curvada, as mãos que tremem levemente, o rosto marcado pelos anos - eis um corpo que não esconde sua finitude. Este corpo-frágil tornou-se, ele mesmo, locus teológico. Quando beija os pés de refugiados, quando abraça pessoas com deformidades físicas, quando se senta no chão com indígenas, Francisco não está performando humildade; está desconstruindo séculos de teologia gloriosa, de sedes gestatoria.

Seu corpo contou a mesma história que sua doutrina: que Deus escolheu o caminho da encarnação, não da aparição; que se fez carne frágil, não fantasma onipotente. Enquanto Malafaia oferece um corpo que aspira à imortalidade do sucesso, Francisco ofereceu um corpo que santifica o envelhecimento, a doença, a limitação. Um é o corpo do triunfo; o outro, o corpo da Sexta-Feira Santa. Francisco definhou em público, e se apagou como uma vela consumida até o seu final. Ele desejou isto por amor a Deus, e ao gênero humano.

Esta diferença corporal produz políticas distintas: de um lado, a biopolítica do controle; de outro, a biopolítica do cuidado. Um corpo que inspira medo; outro que convidou à compaixão constante.

O "modo de proceder" - a arquitetura de uma espiritualidade incarnacional

O Papa Francisco não agiu por improvisação ou mero pragmatismo político. Sua ação na Igreja e no mundo foi a expressão visível de um “modo de proceder” profundamente enraizado na espiritualidade inaciana. Este “modo” é uma estrutura interior que combina contemplação e ação de forma indivisível. Enquanto o projeto teológico-político de Malafaia parece operar a partir de reações táticas ao cenário político, Francisco move-se a partir de um discernimento constante, uma leitura dos “sinais dos tempos” que buscou discernir a ação de Deus na trama complexa da história.

O núcleo deste “modo de proceder” foi proveniente da liberdade interior, alcançada através do desapego radical, que Santo Inácio chamava de “indiferença”. Isto não é passividade, mas uma libertação das “afeções desordenadas” – como a ânsia pelo poder, o prestígio ou a segurança – que turvam o julgamento. É esta liberdade que permitiu a Francisco tomar decisões que desconcertaram o mundo, como a recusa de viver no Palácio Apostólico. Ele não rejeita o poder por teatralidade, mas porque, interiormente, está livre dele, pode exercê-lo como serviço, e não como domínio. É uma posição teológica de fundo, não um gesto de relações públicas.

Malafaia, ao contrário, parece operar numa lógica onde o poder temporal e sua manifestação suntuária são ipso facto sinais da bênção divina, uma teologia que, do ponto de vista inaciano, permanece cativa à lógica mundana que diz pretender combater.

A pobreza teológica - uma questão de profunidade hermenêutica

Aqui se revela o abismo hermenêutico entre os dois projetos. A “pobreza” na teologia de Malafaia é, fundamentalmente, um conceito a ser superado pela “prosperidade”. É um estágio inicial, uma maldição a ser revertida pela fé. Para Francisco, seguindo Inácio, a pobreza é uma escolha teológica fundamental, imitativa de Cristo e libertadora. “Amar a pobreza como a uma mãe”, como dizia Santo Inácio, significa abraçar uma forma de existência que desocupa o eu para que Deus atue, e que permite a autêntica proximidade com os pobres reais, não como objeto de proselitismo, mas como sujeitos privilegiados da revelação divina.

Esta diferença não é meramente doutrinária; é experiencial. Francisco bebeu de uma tradição que vê na “humildade amorosa” um “acatamento por amor”, que se traduziu em obras de serviço. Seu papado foi uma contínua “inversão da pirâmide” de poder. Malafaia, por outro lado, parece preso a uma hermenêutica da funcionalidade: a fé é um instrumento para a conquista de espaços no mundo. A pobreza teológica de seu projeto não está no que ele afirma, mas no que ele ignora: a dimensão kenótica (do esvaziamento) do mistério cristão, o escândalo de um Deus que se faz servo. É uma teologia que, ao não conseguir integrar a Cruz como potência e não apenas como tropeço passageiro, acaba por canonizar os valores do mundo que diz transcender.

O discernimento comunitário - a sinodalidade como antídoto ao autoritarismo

Uma das contribuições mais radicais do Papa Francisco para a Igreja contemporânea é a sua insistência na sinodalidade. Este não é um conceito administrativo, mas a expressão eclesial do discernimento inaciano aplicado à comunidade. É um “caminhar juntos” onde a autoridade, longe de se diluir, é exercida de forma mais autêntica através da escuta, do diálogo e do discernimento comunitário.

Enquanto o modelo de liderança de Malafaia é unipessoal e centralizador – o pastor como general inquestionável de seu exército –, Francisco propõe um modelo em que o líder é um “servidor em ação” dentro de uma rede de corresponsabilidade. Isto exige uma “conversão (metanoia) de todos na Igreja”, um renunciar ao controle para criar espaços onde o Espírito pode falar através de todos, especialmente dos marginalizados.

O Sínodo que convocou é a antítese do comando centralizado do “teólogo do bunker”. Um opera pela lógica do decreto; o outro, pela lógica do processo do discernimento e da discretio spirituum. Um fala em nome de uma verdade já possuída; o outro promove um “encontrar a Deus em todas as coisas”, inclusive na voz do outro que me desafia.

O desfecho inaciano

O duelo entre o “grito” e o “silêncio” é, em última instância, a disputa entre duas respostas à crise de sentido da pós-modernidade. O projeto de Malafaia oferece uma resposta reativa e identitária: fortalece o “nós” através da demarcação clara contra um “eles”. É uma solução baseada no medo e na insegurança ontológica, que oferece certezas binárias em um mundo complexo.

A cultura inaciana que Francisco encarnou ofereceu uma resposta proativa e integradora. Ela não temeu a complexidade, a volatilidade, a incerteza e a ambiguidade do mundo contemporâneo (o que os especialistas chamam de ambiente VICA) – Volatilidade, Incerteza, Complexidade e Ambiguidade. Pelo contrário, ela viu nesse ambiente um “verdadeiro campo de possibilidades” , porque confia que Deus atua mesmo no squilibrio (desequilíbrio). A proposta de Francisco operou em uma espiritualidade para adultos, por assim dizer, que não oferece respostas pré-mastigadas, mas ensina um “modo de ser” discernidor. Ele convidou a uma “peregrinación hacia la hondura del mundo, donde Dios trabaja”.

Enquanto Malafaia constrói um império, Francisco cimentou um ecossistema. O império é visível, ruidoso e mensurável em cifras e influência. O ecossistema é mais lento, mais silencioso e sua força está na sua resiliência, na sua capacidade de se adaptar e de dar frutos a partir das periferias. A Polícia Federal pode, eventualmente, conter os excessos de um projeto de poder. Mas não pode conter as sementes de um projeto de civilização que, como a espiritualidade inaciana, ensina a “ser creativos y en tomar decisiones movidos por grandes deseos”, desarmando, com o silêncio da ponte e a coragem da parresia, a guerra civilizatória que o grito tanto almeja.

A disputa entre esses dois projetos transcende o momento político brasileiro atual, revelando-se como a encenação contemporânea de uma tensão filosófica milenar. Para compreendê-la em sua totalidade, é necessário situá-la no âmbito da história das ideias, onde se confrontam duas modalidades fundamentais de relacionar-se com a transcendência e com o mundo temporal.

O projeto de Malafaia, em sua essência, atualiza o voluntarismo teológico nominalista do final da Idade Média, onde a vontade divina (e, por extensão, a de seus representantes) torna-se a fonte única da lei e da verdade, liberada de qualquer mediação racional ou tradição comunitária. Como bem observou o historiador da filosofia Remi Brague, o nominalismo preparou o terreno para o absolutismo político moderno, pois um Deus concebido como Deus absconditus, cuja vontade é inescrutável e arbitrária, abre espaço para que seus supostos representantes na Terra exerçam um poder igualmente absoluto e não submetido ao crivo da razão ou do bem comum. A relação com o divino é, portanto, extrínseca e transactional: obedeço para ser recompensado, e a recompensa é mensurável em bens terrenos. É uma religiosidade que, paradoxalmente, seculariza o sagrado, tornando-o funcional aos desígnios do poder mundano.

A resposta de Francisco, ao contrário, está ancorada na tradição da analogia, própria da síntese tomista e resgatada pela visão inaciana. Nesta perspectiva, existe uma harmonia profunda, ainda que não identitária, entre a razão humana, a ordem da criação e o Deus revelado. A realidade é portadora de significado, e a tarefa humana é a de um discernimento paciente que busca “encontrar Deus em todas as coisas”. Esta visão gera uma relação intrínseca e contemplativa com o mundo: o mundo não é um campo de batalha a ser conquistado, mas um jardim a ser cultivado, uma rede de relações a ser curada. A política, nesta ótica, não é a guerra pelo poder, mas a “forma eminente da caridade”, como ensinava o pensador católico Jacques Maritain.

O duelo entre o teólogo do bunker e o profeta da ponte é, no fundo, o duelo entre duas imagens de Brasil. Uma, refém do medo, ergue fortalezas. A outra, inspirada por uma esperança teologicamente fundada, constrói pontes. A história nos ensina que, no longo curso do tempo, são as pontes, e não os bunkers, que acabam por unir as margens e permitir o avanço da civilização. A questão que fica para cada um de nós é: qual dessas obras queremos, afinal, ajudar a erguer? Por fim, o escritor destas linhas deseja expressar um sentimento: Francisco deixou-nos muitos e diversos ensinamentos, intelectuais, com sua Teologia do Corpo, e seu despojamento e sacrifício pessoal. Mas o coração que traçou estas linhas pulsa de saudade. E reza todos os dias para o seu querido pai Jorge Mario Bergoglio, SJ, o Bispo de Roma, Papa Francisco.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021. (Nota: O autor analisa as relações entre poder, vida e direito, desenvolvendo o conceito de "estado de exceção" como paradigma de governo moderno)

BRAGUE, Rémi. A Lei de Deus: História Filosófica de uma Aliança. São Paulo: Edições Loyola, 2022. (Nota: O filósofo francês explora as relações entre teologia e direito, analisando o voluntarismo nominalista que influencia certas teologias contemporâneas)

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium: A Alegria do Evangelho. São Paulo: Paulus, 2020. (Nota: Exortação apostólica que fundamenta a “teologia do encontro” e a “Igreja em saída”, base do projeto pastoral do atual pontífice)

GIROUD, Jean-Claude. A Força do Silêncio: Contra a Ditadura do Ruído. São Paulo: Editora Planeta, 2023. (Nota: Analisa o valor do silêncio como resistência política e espiritual em tempos de excesso de informação)

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. (Nota: O historiador britânico oferece o contexto do colapso das grandes utopias que abriu espaço para novos movimentos religiosos)

LÓPEZ, José Luís. A Teologia Política de Carl Schmitt e seus Críticos. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2023. (Nota: Estudo atualizado sobre o pensamento do jurista alemão, fundamental para entender a lógica amigo-inimigo)

MARTINAIS, Emmanuel. A Revolução Silenciosa: Sociologia do Avanço Evangélico no Brasil. São Paulo: Todavia, 2024. (Nota: Pesquisa recente sobre a transformação demográfica e política do campo religioso brasileiro)

PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática. Vol. 3. São Paulo: Paulus, 2021. (Nota: O teólogo alemão desenvolve conceitos escatológicos relevantes para compreender diferentes perspectivas sobre o tempo histórico)

RICŒUR, Paul. O Conflito das Interpretações. São Paulo: Editora Perspectiva, 2022. (Nota: O filósofo francês analisa as diferentes formas de interpretação, incluindo a linguagem do testemunho)

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2023. (Nota: Obra fundamental onde o jurista alemão define que “soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”)

SPADARO, Antonio. A Sabedoria do Tempo: Uma Teologia da Espera. São Paulo: Paulinas, 2023. (Nota: O jesuíta italiano analisa a espiritualidade do tempo em Francisco, contrastando com as escatologias urgentistas)

TILLICH, Paul. A Coragem de Ser. São Paulo: Editora Paidós, 2022. (Nota: O teólogo alemão desenvolve o conceito de “demonização do contingente”, útil para entender as ansiedades existenciais exploradas por certos discursos religiosos)

Glossário de termos filosóficos e teológicos

Analogia (Tradição da): Pensar que existe uma relação de semelhança, ainda que não completa, entre Deus e a criação. Como quando dizemos que Deus é “bom” - não exatamente como uma pessoa é boa, mas de uma maneira mais perfeita que nos ajuda a entender algo sobre Ele.

Antropologia teológica: Como diferentes tradições religiosas entendem o que é o ser humano, sua natureza, seu propósito e seu lugar no mundo. Cada religião tem uma “antropologia” própria.

Binária (lógica): Pensamento que divide tudo em dois campos opostos e excludentes: bem e mal, certo e errado, nós e eles. Não admite meio-termo ou nuances.

Demográfico (fenômeno): Transformações na sociedade que podem ser medidas em números - como a mudança no percentual de católicos e evangélicos no Brasil revelada pelo IBGE.

Demonização do contingente: Termo de Paul Tillich para descrever o medo patológico de tudo que é incerto, passageiro e fora do nosso controle. A incapacidade de aceitar que a vida inclui riscos e imprevistos.

Discernimento (inaciano): Na espiritualidade de Santo Inácio, não é apenas "tomar uma decisão". É um processo paciente de buscar perceber onde Deus está me chamando, através dos sentimentos, pensamentos e circunstâncias da vida.

Escatologia: Como diferentes tradições religiosas entendem o “fim dos tempos” e o destino da humanidade. Pode ser uma esperança ansiosa pelo fim do mundo ou uma confiança no Deus que já age na história.

Estado de exceção: Conceito do jurista Carl Schmitt para descrever situações em que as leis normais são suspensas em nome de uma “emergência”. Quando alguém se arroga o direito de decidir quando a lei vale ou não.

Hegemonia: Domínio ou influência predominante de um grupo sobre outros. No texto, refere-se ao período em que o catolicismo era a religião majoritária e culturalmente dominante no Brasil.

Hermenêutica: A arte e a ciência da interpretação. No caso religioso, como diferentes grupos interpretam textos sagrados como a Bíblia.

Kenótica (teologia): Vem da palavra grega “kenosis” que significa “esvaziamento”. Refere-se à ideia de que Deus, em Jesus, "esvaziou-se" de sua glória para se fazer humano. Uma teologia que valoriza a humildade, o serviço e a vulnerabilidade.

Metafísico (duelo): Uma disputa que vai além das questões materiais ou políticas, envolvendo visões diferentes sobre a natureza da realidade, de Deus e do sentido da existência.

Nominalismo (voluntarismo teológico): Corrente filosófica medieval que enfatizava o poder absoluto e arbitrário de Deus, em detrimento de sua racionalidade. Preparou o terreno para concepções autoritárias de poder.

Parresia: No grego antigo, significava “dizer tudo”. Coragem de falar a verdade, mesmo sob risco. No texto, aplicada ao silêncio eloquente do Papa Francisco, que é também uma forma de dizer verdades difíceis.

Performática (retórica): Discurso que não busca apenas informar, mas criar uma realidade através da própria encenação. O ato de fala como espetáculo que produz efeitos imediatos no público.

Sinodalidade: Palavra-chave no papado de Francisco. Vem de “sínodo” (caminhar juntos). A ideia de que a Igreja deve ser uma comunidade que decide caminhando junto, ouvindo a todos, especialmente os mais simples.

Teologia política: Campo que estuda as relações entre conceitos teológicos (como soberania, milagre, autoridade) e conceitos políticos (como poder, lei, Estado).

Teologia da prosperidade: Corrente teológica que enfatiza o sucesso material e financeiro como sinais da bênção divina. Muito influente no neopentecostalismo brasileiro.

Vulnerabilidade sacramentada: A ideia de que a fragilidade humana, longe de ser apenas uma limitação, pode se tornar um lugar de encontro com o sagrado. O que é fraco aos olhos do mundo pode revelar força divina.

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