05 Junho 2020
"O Reino de Deus não é uma experiência individual, solipsista, mas essencialmente coletiva. Não se reza apenas pela própria salvação, mas também das outras pessoas, vivas ou falecidas. Por isso, não se deve almejar viver bem individualmente, mas coletivamente", escreve Jordhan Gularte Francisco, estudante de Filosofia e missionário em Curitiba-PR.
A história da humanidade mostra que o ser humano sempre buscou refúgio para a finitude de sua existência em um outro mundo. As divindades mitológicas foram criadas para justificar os fenômenos naturais, tais como as tempestades, os terremotos, as guerras etc. O mundo era visto como um lugar estranho ao homem, passageiro, repleto de males e sofrimentos. Por isso, o seu maior desejo era partir, subsumir, migrar para um lugar bem melhor que este.
Por conseguinte, povos se consideraram predestinados por Deus, crendo que foram escolhidos como o povo eleito, desconsiderando as demais culturas. O sobrenatural, além de ocasionar os males, castigando os ímpios, foi considerado o responsável por uma seleção natural dos que são dignos da paz, da felicidade, como também daqueles que sofrerão eternamente. Isso significa que nem toda a criação, de fato, é boa.
Neste contexto de supremacia e descontentamento, a novidade é a figura de Jesus, o galileu. Em seus aproximados trinta e três anos de vida, sabe-se que a sua missão foi anunciar o Reino de Deus às nações (Mt 24,14). Devolvendo a visão aos cegos, erguendo os caídos, saciando os famintos, ressuscitando os mortos, transformando a água da triste em vinho da alegria, Jesus mostrou à humanidade o valor e a importância que a vida presente tem. Apesar de suas dificuldades e acontecimentos, a vida carrega em si um tesouro, conduzido por mãos de barro, que não pode ser descartado em vista de uma vida futura. Viver não é um castigo, mas um desafio.
Uma das críticas do filósofo Friedrich Nietzsche ao cristianismo consiste na influência de Platão sobre o mesmo. Considerando o corpo como o cárcere da alma, não se hesitou em guerrear em prol da religião, uma vez que o mais importante é a salvação da alma, não esta fonte de pecado: o corpo. Agostinho (2018, p. 295), em sua obra Confissões, apresenta o corpo humano como a sua miséria, tendenciosa ao pecado, valorizando apenas a alma, na qual habita o Mestre Interior, isto é, Cristo.
A importância que se dá ao corpo é importante porque é a partir dela que se pode falar sobre o Reino de Deus entre os homens. Se não há algum valor no corpo, então não há porque discutir sobre uma fraterna vivência entre os homens, uma vez que a paz anunciada por Jesus pertencerá somente ao âmbito transcendente, sem quaisquer resquícios neste mundo. E se assim for, então o que resta aos homens é o isolamento social, a constância na oração e a eterna espera pela vida futura.
Quando, no século XX, o então papa João Paulo II propõe uma teologia do corpo, a afirmação de que é possível viver o Reino de Deus no mundo presente ganha espaço. O corpo deixa de se tornar uma máquina manipulável e passa a possuir uma dignidade específica, inerente à vida. Já não se envia pessoas para o front em prol da religião, pois a vida presente também tem importância. Nos céus não se precisará dividir o pão, porque não haverá fome; não se precisará devolver a visão aos cegos, pois verão face a face; não se precisará transformar a água em vinho, pois a alegria estará completa.
Se nos céus nada disso será necessário, então porque Jesus realizou tais atos durante a sua vida? Ele quis mostrar que o Reino de Deus começa aqui, no mundo, tendo a sua plenitude nos céus. Por isso, no Evangelhos de Lucas (17, 21) lê-se: “eis que o Reino de Deus está no meio de vós”. Apesar de sua plenitude ser nos céus, há “resquícios” dele no mundo, porque se não fosse assim, “se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar.” (1 Jo 4, 20).
O grande paradoxo consiste na atualidade. No Brasil, por exemplo, a maioria da população se diz cristã. Ao mesmo tempo, é o país em que mais cresce o índice de violência, dos mais diversos tipos. Mas o Reino de Deus não deve estar no meio de vós? A intolerância religiosa mascarou-se de respeito ao diferente, desde que ele fique em seu lugar, não interferindo em minha vida. Mas não foi Jesus quem disse “quem não é contra nós é por nós”? (Mc 9, 40). Atualmente, deve ser inadmissível a existência de pessoas (ainda mais cristãs!) racistas. Se todos são irmãos, por que se deve matar o outro por ser diferente, considerado até mesmo inferior? Talvez a supremacia não seja um pensamento abolido.
O Reino de Deus não é uma experiência individual, solipsista, mas essencialmente coletiva. Não se reza apenas pela própria salvação, mas também das outras pessoas, vivas ou falecidas. Por isso, não se deve almejar viver bem individualmente, mas coletivamente. Se um irmão ainda passa fome, todos tem culpa nisso, sobretudo nós, os cristãos. É preciso que os governantes, os empresários, os economistas – principalmente os que reconhecem os ensinamentos de Jesus –, trabalhem em prol da boa convivência entre as nações, entre as culturas, entre as religiões. Em um mundo onde a economia vale mais do que a vida, o projeto de Deus não pode ser concretizado. O Reino de Deus só estará no meio de vós quando não houver mais fome, miséria e violência.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luzia Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2018. (Coleção espiritualidade)
BÍBLIA de Jerusálem. São Paulo: Paulus, 2002.
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O Reino de Deus está no meio de vós? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU