A Igreja e a Amazônia: fé, ética e responsabilidade na COP30. Artigo de Marcos Aurélio Trindade

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10 Outubro 2025

"A presença da Igreja na COP30 é um lembrete: não se trata apenas de salvar florestas, mas de salvar vidas; não é apenas questão de diplomacia, mas de justiça. Se quisermos ser fiéis ao futuro, precisamos ouvir tanto os cientistas quanto os povos indígenas, tanto os filósofos quanto os camponeses, tanto as encíclicas quanto os movimentos sociais. Só assim poderemos, juntos, responder ao clamor da Terra e ao clamor dos pobres, na direção do único horizonte possível: o horizonte do bem"

O artigo é de Marcos Aurélio Trindade, católico, mestre em Bioética PUCPR e mestre em Antropologia Social UBA, membro da Sociedade Brasileira de Bioética.

Eis o artigo. 

A realização da COP30 no Brasil será mais do que um encontro diplomático: trata-se de uma encruzilhada civilizatória. O que está em jogo não é apenas o futuro da política ambiental, mas a sobrevivência digna da humanidade em sua relação com a Terra. Nesse contexto, a Igreja Católica Apostólica Romana tem uma responsabilidade singular, pois sua tradição espiritual e sua voz ética podem iluminar caminhos que a política, muitas vezes, não consegue percorrer sozinha. Não se trata de substituir a ciência ou a negociação diplomática, mas de recordar que o cuidado com o planeta é inseparável do cuidado com os pobres, e que a crise climática é, antes de tudo, uma crise de justiça.

O papa Francisco, na encíclica Laudato Si’, deixou claro que “esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou”. A imagem da Terra como irmã, ferida e explorada, não é apenas poética, mas profundamente política. O documento insiste em mostrar que a destruição ambiental e a exclusão social são duas faces da mesma moeda. Quem paga o preço das enchentes, das secas, da contaminação da água e da perda da biodiversidade não são os grandes investidores ou os chefes de Estado protegidos em palácios refrigerados. São, sobretudo, os pobres, os indígenas, as populações periféricas que vivem em áreas de risco. Cuidar da casa comum é, portanto, um ato de amor preferencial pelos que sofrem.

Infelizmente, assistimos a uma onda de negacionismo climático que mina qualquer esforço coletivo. Líderes como Donald Trump, e tantos outros chefes de Estado alinhados a interesses corporativos, recusam-se a admitir a gravidade do aquecimento global. Esse negacionismo não é apenas ignorância: é um cálculo político que aposta no lucro imediato, sacrificando vidas humanas e ecossistemas inteiros. Trata-se de uma forma de violência contra os mais pobres, pois cada decisão de adiar a redução de emissões significa multiplicar o sofrimento daqueles que têm menos condições de se adaptar. Governos que se omitem diante da crise climática estão praticando um verdadeiro desagravo contra os vulneráveis.

É nesse ponto que o pensamento filosófico contemporâneo ajuda a clarear nossa responsabilidade. Hans Jonas, em sua obra sobre o princípio da responsabilidade, afirma que a ética do futuro deve ser capaz de responder não apenas às necessidades do presente, mas às demandas das gerações futuras. Somos responsáveis, diz Jonas, até mesmo pelos que ainda não nasceram. A técnica moderna multiplicou nosso poder de transformação, mas também nossa capacidade de destruição. Diante disso, não basta esperar que o mercado se ajuste sozinho ou que a ciência resolva os problemas. Precisamos de uma ética que inclua o amanhã como critério decisivo para o agir de hoje.

José Roque Junges, refletindo sobre os Desafios da crise ambiental, alerta que a lógica do “desenvolvimento sustentável” tantas vezes anunciada ainda reproduz padrões de exploração. Para ele, não basta pintar de verde um modelo econômico que continua sendo extrativista e desigual. O verdadeiro desafio é reconhecer que sociedade, cultura e ambiente estão interligados, e que um projeto de justiça social só é possível se contemplar o equilíbrio ecológico. Não se trata, portanto, de escolher entre progresso econômico ou defesa da natureza, mas de assumir que qualquer economia que destrói os fundamentos da vida é, na verdade, antieconômica.

A pesquisa publicada, intitulada Da ética ambiental à bioética ambiental: antecedentes, trajetórias e perspectivas, ajuda a entender essa transição conceitual. A ética ambiental, nascida como reação ao impacto da modernidade sobre os ecossistemas, abriu caminho para uma bioética ambiental, que não se limita a dilemas clínicos ou hospitalares, mas enfrenta os problemas da sobrevivência humana em escala planetária. Van Rensselaer Potter, ao trazer luz ao termo bioética, já intuía que se tratava de uma “ciência da sobrevivência”, capaz de integrar ciência, cultura e valores. Hoje, essa visão retorna com força: não há sentido em cuidar apenas de tecnologias médicas se não cuidarmos do meio ambiente que sustenta a vida.

Esse debate ganha ainda mais densidade quando aproximamos a reflexão filosófica de propostas como a de Bruno Latour. Sua noção de “ecologia de saberes vibrantes” e de “actantes” rompe com a visão que separa sujeito humano e objeto natural. Para Latour, rios, florestas, espécies animais, tecnologias, populações humanas e instituições políticas fazem parte de uma mesma rede de relações, todos atuando uns sobre os outros. Isso significa que a crise climática não é apenas resultado de escolhas humanas: é também resposta da própria Terra, que age, reage, impõe limites. Reconhecer os actantes é reconhecer que a natureza tem agência, que não somos os únicos protagonistas da história. Essa perspectiva converge, curiosamente, com a hipótese de Gaia, de James Lovelock, que entende o planeta como organismo vivo capaz de autorregulação. Quando ultrapassamos os limites dessa autorregulação, provocamos desequilíbrios que retornam contra nós mesmos em forma de catástrofes ambientais.

Na mesma linha, o artigo Net-ativismo e ecologia da ação em contextos reticulares mostra como os movimentos sociais e ambientais têm se articulado em redes digitais, mobilizando saberes diversos e ampliando a pressão por mudanças. Essa ecologia da ação em rede é um sinal de que o cuidado com a casa comum não é responsabilidade exclusiva dos Estados nacionais, mas também dos povos organizados que se reconhecem como parte de uma mesma luta planetária. Nesse sentido, a Igreja, com sua presença capilar em comunidades do mundo inteiro, pode ser também uma voz que potencializa e legitima esses movimentos, oferecendo uma fundamentação ética que vai além da política imediata.

Por isso, a pergunta do artigo “Por que a Igreja vai à COP30?” tem uma resposta evidente: porque ela não pode se calar diante do clamor da Terra e do clamor dos pobres. Sua missão profética a obriga a denunciar o pecado estrutural que devasta a criação e gera desigualdade. Mas sua presença não é apenas denúncia: é também anúncio de uma esperança. A Igreja leva à COP a convicção de que é possível construir uma ecologia integral, onde fé e ciência, espiritualidade e política, se unem pelo único valor que deve orientar nossas escolhas: o bem. O bem da vida, o bem da Terra, o bem dos que virão depois de nós.

A COP30 não pode ser mais um palco de promessas vazias ou de discursos sem consequência. É hora de assumir compromissos reais, com metas claras, com responsabilidade histórica dos que mais poluíram e com justiça para aqueles que menos contribuíram para a crise, mas sofrem suas piores consequências. Se a Igreja insiste em participar, é porque sabe que a crise climática é também crise espiritual: revela o vazio de uma humanidade que se perdeu na idolatria do consumo e do poder. Como ensina a Laudato Si’, “quem mais sofre com as alterações climáticas são os pobres”. E cuidar dos pobres é o coração do Evangelho.

Diante disso, a presença da Igreja na COP30 é um lembrete: não se trata apenas de salvar florestas, mas de salvar vidas; não é apenas questão de diplomacia, mas de justiça. Se quisermos ser fiéis ao futuro, precisamos ouvir tanto os cientistas quanto os povos indígenas, tanto os filósofos quanto os camponeses, tanto as encíclicas quanto os movimentos sociais. Só assim poderemos, juntos, responder ao clamor da Terra e ao clamor dos pobres, na direção do único horizonte possível: o horizonte do bem.

Eu Marcos Aurélio Trindade finalizo pensando ainda mais que a realização da COP30 em Belém é um divisor de águas, não apenas para a política internacional, mas para a consciência ética e espiritual da humanidade. Creio que a Igreja Católica, ao se somar ainda mais aos cientistas, povos indígenas, filósofos e ativistas, reforça a ideia de que cuidar da Amazônia é cuidar do futuro de todos nós. Em minha visão, não se trata de uma pauta distante, mas de um chamado à responsabilidade: não podemos continuar sacrificando vidas e ecossistemas em nome de um lucro efêmero. A fé, a filosofia e a ciência convergem num mesmo ponto: a urgência do bem, entendido como compromisso com a vida, com os pobres e com a Terra que nos sustenta. Por isso, afirmo que a COP30 só terá sentido se for mais do que diplomacia; ela precisa ser ato de justiça e de conversão ecológica, capaz de marcar um novo início para a história humana.

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