21 Junho 2025
"À medida em que a guerra em curso se prolonga e intensifica, a Otan aumenta seu arsenal, não apenas para suprir a Ucrânia, mas também em vista da ampliação do confronto".
O artigo é de João Quartim de Moraes, publicado por A Terra é Redonda, 16-06-2025.
João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular).
Eis o artigo.
Enquanto a Otan alimenta a escalada belicista, a história alerta: as lições de 1812 e 1941 ecoam como um aviso à Europa submissa aos interesses do Pentágono.
1.
Sistematicamente destilada por monocórdica e incessante campanha de intoxicação promovida pelos grandes meios de comunicação daquém e dalém mar, a russofobia prospera na Europa dos monopólios e dos trustes. Ela se prepara para entrar diretamente na guerra em curso entre a Federação Russa e a Ucrânia criptofascista.
Sempre é importante lembrar que, contrariamente ao que sustentam os sabujos do imperialismo, esta guerra começou com o golpe de Estado parlamentar de 22 de fevereiro de 2014, que depôs o presidente Victor Yanukovych porque ele era contrário aos que pretendiam quebrar o estatuto de neutralidade da Ucrânia para fazê-la aderir à União Europeia e à máquina de guerra comandada pelo Pentágono.
De Barack Obama, dos líderes da União Europeia e da direita em geral, vieram aplausos aos golpistas. Mas as populações de língua russa da região do Donbas (Lugansk e Donetsk) recusaram-se a aceitar o golpe. Proclamaram a independência dispostas a defendê-la de armas na mão.
Entrementes, a junta criptofascista que assumira o poder na Ucrânia desfechou uma vaga de perseguições contra russos em geral e comunistas em especial, revogando a lei que reconhecia o russo como língua oficial em regiões onde ele predominava.
As fontes minimamente objetivas (muito raras no “Ocidente”) reconhecem que Vladimir Putin empenhou-se em evitar uma escalada no confronto, solicitando publicamente aos dirigentes das duas já proclamadas repúblicas populares de Lugansk e de Donetsk que postergassem o referendum para ratificar a independência, de modo a permitir negociações com o governo instalado em Kiev.
As negociações não prosperaram. A junta golpista logo recorreu à solução de força, atacando as regiões insubmissas e ocupando boa parte de seu território. Destacou-se nesta ofensiva uma tropa de choque neonazista, que após se apoderar, em junho de 2014, da cidade de Mariupol, no litoral do mar de Azov, adotou o nome de batalhão Azov. Assumiu na sequência as dimensões de um regimento, que foi formalmente integrado à Guarda Nacional Ucraniana.
Cabe-lhe a principal responsabilidade pelos métodos de guerra suja contra a população de língua russa (torturas, estupros, pilhagem e “limpezas étnicas”). Em agosto, porém, os autonomistas do Donetsk viraram a sorte das armas, infligindo pesada derrota aos agressores em uma batalha nas redondezas da cidade de Ilovaisk, que constrangeu a junta de Kiev a retomar as negociações.
2.
Em setembro de 2014, uma discussão trilateral com a participação da Rússia, da Ucrânia e da União Europeia em Minsk (Belarus) estabeleceu um protocolo de cessar-fogo em Lugansk e Donetsk. O êxito foi muito pequeno; os combates se reativaram até que um novo encontro, em fevereiro de 2015, dito Minsk II, reduziu a intensidade do confronto (retirada de armamento pesado da linha de frente, troca de prisioneiros etc.), mas sem chegar a um acordo durável.
A extrema direita ultranacionalista, instalada na cúpula do Estado ucraniano, preferiu manter o estado de guerra, multiplicando os ataques às duas regiões conflagradas e continuando a considerá-las “territórios ocupados”, a serem recuperados com o apoio de seus protetores ocidentais.
As tensões se agravaram lenta, mas inexoravelmente. Relativamente ao objetivo estratégico da Otan, manter a Rússia cercada na frente europeia, a Ucrânia é peça essencial. Para a Rússia, estratégico é o objetivo de não se deixar asfixiar pela Otan. O desencadeamento, em 24 de fevereiro de 2022, da “operação militar especial”, transformou em guerra aberta a guerra larvada que prosseguia há mais de sete anos.
Difícil saber se ao tomar a iniciativa e assumir os riscos de invadir a Ucrânia, o governo russo esperava uma vitória rápida e decisiva sobre o regime de Volodymyr Zelenski ou se pretendia primordialmente garantir a independência de Lugansk e de Donetsk. Mas certamente visava também a comprovar, no campo de batalha, que o cerco da Otan podia ser rompido.
Foi grande a comoção orquestrada no “Ocidente” perante a “operação militar especial” russa na Ucrânia. Podemos, entretanto, duvidar da sinceridade da pretensão “humanitária” dessa reação. Ou a defesa dos direitos e valores humanitários é uma posição de princípio abrangendo toda a humanidade, ou é uma fórmula retórica vazia.
A atitude majoritariamente tíbia, quando não conivente, da opinião pública “ocidental” perante o genocídio do povo palestino de Gaza, mostrou a que ponto sua compaixão é seletiva. Nessa incoerência de sentimentos coletivos, além da russofobia, há uma boa dose de racismo e de nostalgia colonialista.
Considerada no complexo de suas consequências, a guerra da Ucrânia reativou o ódio por “Moscou” dos tempos da guerra fria, voltando a polarizar o antagonismo geopolítico entre o bloco hegemônico comandado pelos Estados-Unidos e o bloco eurasiático Rússia/China.
Sem dúvida, esses blocos não são monolíticos, nem abrangem todos os países relevantes. Mas influenciam em larga medida o curso dos acontecimentos. Sem o apoio financeiro e militar de seus patronos do “Ocidente”, o fantoche Volodymyr Zelenski já teria sido varrido para a lata de lixo da história.
À medida em que a guerra em curso se prolonga e intensifica, a Otan aumenta seu arsenal, não apenas para suprir a Ucrânia, mas também em vista da ampliação do confronto.
“Se a Europa quer evitar a guerra, ela deve se preparar para a guerra” escreveu em 19 de março passado um plumitivo francês, retomando o velho argumento que sempre justificou as corridas armamentistas. A propósito dessa e de outras ameaças europeias, Vladimir Putin lembrou como terminaram as invasões de seu país por Napoleão em 1812 e por Hitler em 1941.
Leia mais
- A Europa se prepara para a guerra. Artigo de Flávio Aguiar
- Haverá guerra na Europa? Artigo de Laura Destro
- A Europa se prepara para a guerra. Artigo de Flávio Aguiar
- Apelo dos bispos para a União Europeia. “A guerra não é inevitável”
- Zuppi em Moscou: o espinho ucraniano. Artigo de Lorenzo Prezzi
- Rússia: desaceleração ecumênica. Artigo de Lorenzo Prezzi
- “O Patriarcado de Moscou está implodindo”, afirma especialista russo
- Os pedidos de Kirill ao parlamento russo. Artigo de Lorenzo Prezzi
- Rússia-Kirill: desligue as vozes livres
- Ucrânia quer levar Kirill ao Tribunal Penal Internacional
- O Patriarca da Rússia, Kirill, apelou aos russos para se unirem para derrotar as forças do mal. “O exército, os políticos e a igreja devem unir-se para a vitória”
- “A guerra na Ucrânia é a demonstração de que hoje somos mais manipulados do que nunca”. Entrevista com Ignacio Ramonet
- Os ucranianos enviados à morte
- Papa Francisco convida Patriarca Kirill para uma reunião no aeroporto de Moscou?
- Kirill agora é um “pacifista”, mas antes falou em uma “guerra justa”, e assim explicou o ataque à Ucrânia: “É certo lutar, é uma guerra contra o lobby gay”
- Ria Novosti: Kirill e Zuppi concordam em dizer que as Igrejas devem servir a paz
- O cardeal Zuppi encontra apenas um funcionário de nível médio no Kremlin e trabalha para repatriar 20.000 crianças ucranianas
- Zuppi em Moscou: D. Pezzi (bispo russo), “ótimas notícias. Após os últimos acontecimentos, a urgência e a disponibilidade para a paz parecem ter aumentado”
- Parolin: “espero pela paz na Ucrânia, mas no momento não vejo perspectivas”
- A agência russa Ria Novosti ataca a missão de paz do Papa? A missão de Zuppi é como aquela em Moçambique
- Dias após tentativa de golpe de Estado, Papa Francisco envia cardeal para negociações de paz
- Parolin: “espero pela paz na Ucrânia, mas no momento não vejo perspectivas”
- As convergências entre o Papa e Putin
- Rússia, o silêncio do Papa e a iniciativa de Kirill
- Patriarca de Moscou Kirill pede apoio ao presidente Putin
- Kirill: “Digo não a uma escalada do conflito”