12 Junho 2025
"O diagnóstico de uma ruptura com o neoliberalismo, para nós, já não surpreende: vivemos, de fato, uma crise iminente que atravessa três dimensões interligadas – da democracia, da globalização e dos ciclos de luta democráticos que, na última década, vinham democratizando e globalizando, mais adiante, o próprio neoliberalismo. No entanto, os nomes que herdamos para descrever a desordem mundial parecem cada vez menos capazes de acompanhar essas novas mutações", escreve Felipe Fortes, em artigo publicado por Rede Universidade Nômade, 09-06-2025.
Felipe Fortes é doutor em Filosofia e pós-doutorando no PPG de Comunicação e Cultura da UFRJ, com bolsa da FAPERJ. É membro dos grupos de pesquisa Laboratório Território e Comunicação (LABTeC) e da Rede Universidade Nômade. Com Giuseppe Cocco, ministra a cátedra “Aceleração Algorítmica, Democracia e Trabalho” pelo Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ (CBAE).
A insistência em tratar o “neoliberalismo” como a chave mestra para compreender uma série de transformações e rupturas históricas, que se intensificam com a emergência e os efeitos já visíveis do governo Trump 2.0, tem se repetido justamente quando essa chave se revela cada vez mais ineficaz para abrir qualquer porta. O próprio cenário político já aponta para mutações mais profundas e perigosas. Ainda assim, busca-se com frequência reatualizar o conceito, como se ele ainda pudesse dar conta das novas formas de dominação e das rupturas institucionais em curso.
O diagnóstico de uma ruptura com o neoliberalismo, para nós, já não surpreende: vivemos, de fato, uma crise iminente que atravessa três dimensões interligadas – da democracia, da globalização e dos ciclos de luta democráticos que, na última década, vinham democratizando e globalizando, mais adiante, o próprio neoliberalismo. No entanto, os nomes que herdamos para descrever a desordem mundial parecem cada vez menos capazes de acompanhar essas novas mutações. O que nos surpreende, portanto, é que tantos amigos sigam repetindo “neoliberalismo” como se ainda nomeassem algo de latente e vivo. Desse modo, a pergunta que fazemos hoje é: por que ainda insistimos nesse nome, quando os próprios ditos “neoliberais” parecem tê-lo abandonado como horizonte de sua política? Afinal, ele nos faz girar em falso – como a dança circular de um pião, que gira apenas até perder o eixo e tombar – e já não dá conta da crise em curso.
Responder a essa questão exige mais do que uma polêmica terminológica. Trata-se de interrogar o próprio vocabulário que compõe a caixa de ferramentas da crítica contemporânea e suas visíveis limitações. O termo “neoliberalismo”, ao permanecer como centro gravitacional de explicação das transformações das políticas globais, pode produzir um efeito paralisante: o de manter a análise prisioneira de um passado recente, é verdade, mas que já não está mais em disputa, enquanto o presente se reorganiza por dinâmicas novas, mais violentas, mais rápidas, mais difíceis de nomear e, em nossa perspectiva, antineoliberais[2].
Essa paralisia se torna ainda mais evidente quando lembramos que grande parte da doxa de esquerda assimilou, voluntariamente ou involuntariamente, o neoliberalismo como um dos simulacros do fim da história: um ciclo unicamente de derrotas, fechamento e regressão, no qual já não haveria espaço para antagonismos vivos. Com isso, tornou-se incapaz de perceber a potência de resistência e invenção que emergia justamente no interior das formas ambíguas de governamentalidade neoliberal. Diante das transformações atuais, seguir usando esse termo é como tentar ler o novo mapa do poder com o blueprint de um edifício que acaba de desabar.
Nossa intenção aqui não é negar a existência ou os efeitos do neoliberalismo, muito menos ignorar o quanto ele foi, por décadas, uma matriz eficaz de governamentalidade capitalista global. Na melhor das leituras inspiradas em Foucault, o neoliberalismo pode ser compreendido como um dispositivo de governamentalidade política que, se por um lado aprofundava uma lógica de comando, por outro abria campos inesperados de subjetivação, mobilização e antagonismo. Não apenas a lógica de produção de subjetividade, mas a subjetividade pensada dinamicamente como produção. Diferentemente de Foucault, porém, que, infelizmente, só viveu a aurora desse processo, nós o experimentamos em sua enésima potência e, também, em sua iminente crise terminal. E isso nos permite perceber com mais nitidez a ambivalência de sua matriz.
O paradoxo é conhecido, mas precisa ser reafirmado: o neoliberalismo foi também o terreno de emergência de uma série de ciclos de lutas que, em sua pluralidade, deram forma, ainda que disforme, às dinâmicas que, à época, chamávamos de alterglobalização. Do Occupy à Primavera Árabe, passando por Junho de 2013, e Maidan, o que chamávamos de neoliberalismo aparecia menos como uma totalidade fechada e mais como um campo de governamentalidade instável, prenhe de disputas, resistências, antagonismos e invenções.
O problema é que esse ciclo parece ter se esgotado. E talvez, não por acaso, 2013 tenha sido o canto do cisne do neoliberalismo – do ponto de vista do Brasil – enquanto campo de experimentação produtiva de ambivalências, no qual, por método, interpretávamos as crises como desestabilizações do sistema que projetavam ainda mais longe suas próprias contradições, abrindo, assim, brechas democráticas ao longo do percurso. Desde então, o que assistimos é ao bloqueio dessas derivas e sua inversão: a aceleração de dinâmicas que já não operam segundo a ambivalência ou a ambiguidade, mas segundo uma tentativa de fechamento e destituição daquele espaço global que, antes, almejávamos libertar em toda a sua potência e que, agora, precisamos, primeiramente, reconstruir.
Portanto, antes mesmo de definir o que está por vir, temos de nos perguntar o que esse nome esconde hoje. Quando um conceito sobrevive mais por inércia do que por precisão, corre o risco de se tornar um obstáculo: em vez de rastrear o presente, encobre-o; em vez de abrir possibilidades, fecha-as. É esse ponto cego que nos interessa explorar.
Esta reflexão nasce não de uma polêmica dirigida, mas da urgência crítica de reavaliar os nomes com que descrevemos as aporias do presente. Porque, em certos momentos, a fidelidade à realidade exige infidelidade ao vocabulário que herdamos. A pergunta, afinal, não é mais “o que é o neoliberalismo?”, mas: o que o apego a esse conceito nos impede de ver? E, mais ainda: quais lutas reais deixamos de reconhecer quando continuamos descrevendo o mundo com a mesma lente arranhada pelos últimos vinte anos?
Talvez seja hora de retomar o gesto de Espinosa – aquele que, ao polir lentes, não apenas olhava mais longe, mas olhava melhor, ensinando que ver o mundo exige fabricar novas superfícies de reflexão.
“Neoliberalismo” foi, apesar de sua inflação, durante décadas, um conceito eficaz: nomeou políticas, estratégias e racionalidades específicas de governo que marcaram a reestruturação global do capitalismo pós-fordista desde os anos 1970. Foi, sem dúvida, uma ferramenta importante para descrever uma fase determinada da articulação entre mercado, Estado e subjetividade.
Nomeou com precisão os dispositivos de desregulação – conduzida, contra a própria ideologia do mercado, por meio da intervenção direta do Estado, em momentos específicos, como regulador da liberalização –, da financeirização, da privatização da vida e da modulação da conduta individual sob a forma do empreendedorismo difuso. Mas, para cada um desses dispositivos, descobríamos, alegremente, seus avessos: formas transversais de cooperação, produção de saberes não capturáveis, explosões subjetivas e linhas de fuga que atravessavam os próprios mecanismos de controle.
O crédito, por exemplo, embora operasse como motor da dívida, carregava também uma tensão interna: podia servir à lógica da culpabilização individual, mas igualmente abrir espaço para experimentações coletivas baseadas em confiança, afeto e risco compartilhado. Nos bairros periféricos, entre migrantes e populações racializadas, surgiram práticas informais de rotação de crédito, associações de microempréstimo, solidariedades financeiras que desafiavam a lógica da escassez e da responsabilização individual. A figura do “pobre endividado”, longe de ser apenas passiva, revelava uma potência de organização econômica desde baixo – que, muitas vezes, escapava ao radar da crítica e à captura institucional e, infelizmente, também não encontrava ressonância em dinâmicas instituintes capazes de traduzi-la em novos direitos. As instituições, nesse caso, falharam em reconhecer e acompanhar a emergência dessas subjetividades, deixando sem tradução jurídica e política formas vivas de invenção social.
No contrapelo da precarização, abriu-se espaço para uma multiplicidade de subjetividades móveis, femininas, migrantes, cognitivas, que começaram a se reconhecer e a polinizar mutuamente suas lutas, atravessando o deserto das garantias na disputa por novos direitos. Plataformas e redes foram, desde o início, zonas ambíguas: simultaneamente veículos de invenção política e infraestruturas de captura. E, se sua potência de circulação e conexão nunca existiu separada da lógica de extração e modulação, isso não impediu que fossem atravessadas por práticas de cooperação, criação estética e organização democrática descentralizada.
A tensão, portanto, estava inscrita na própria forma do neoliberalismo. Essa era a ambivalência radical do neoliberalismo enquanto campo de governamentalidade: ele produzia antagonismo junto à modulação, resistência junto à captura, desejo de liberdade e autonomia junto à difusão social do comando. Não era um regime de pura dominação, mas um terreno instável de lutas.
Hoje, no entanto, essa fase está em crise, uma crise tríptica, que atravessa simultaneamente a globalização, a democracia e as formas contemporâneas de subjetivação política. Os laços institucionais da ordem internacional se rompem a cada novo decreto de exceção – como os de Trump – e a cada vez que representantes eleitos das democracias liberais flertam com a força bruta de regimes autoritários. Foi o caso da vergonhosa cerimônia em que o presidente Lula, eleito democraticamente, prestigiou o desfile militar de Putin, em Moscou, um gesto simbólico que, em nome de uma diplomacia pretensamente “equilibrada”, acaba por normalizar um regime que ataca frontalmente a soberania e a vida democrática de outros povos[3].
Ao mesmo tempo, muitos movimentos sociais enfrentam um impasse interno: em vez da contínua produção de novos pontos de vista – um perspectivismo radical das lutas, capaz de abrir composições e reorganizar estratégias –, observa-se frequentemente a cristalização do gesto político da cooperação transversal em lógicas identitárias de autodefesa, que reproduzem fronteiras e bloqueiam a criação de dinâmicas comuns. A diferença, que poderia ser força de invenção, é transmutada na repetição da identidade; e a cooperação, antes experimentada como motor político, cede lugar ao isolamento estratégico e ao esgotamento das lutas no entrincheiramento simbólico, o que, paradoxalmente, reforça as dinâmicas xenófobas e racistas da extrema-direita.
Essas infraestruturas hibridizam o artificial e o orgânico, um processo que, em si, carrega potenciais expressivos e cooperativos, mas que hoje vem sendo capturado por uma nova arquitetura de poder orientada ao fechamento das derivas democráticas. Essa reorganização opera pela saturação dos espaços de decisão e pela modulação dos afetos, da linguagem e da percepção, estreitando os horizontes do possível na tentativa de submeter a inteligência algorítmica a uma arquitetura de controle[4]. O que está em curso é a exploração de um novo nomos global – ainda instável e não inteiramente mapeado –, no qual alianças entre regimes autoritários e conglomerados tecnológicos moldam, em tempo real, os limites da política, da linguagem e da vida.
Importa afirmar com clareza: o problema não é a algorítmica em si – ela é, cada vez mais, o novo campo da luta. É nesse plano que se reorganiza hoje a disputa pela democracia, pela linguagem e pela imaginação política. Trata-se, portanto, de uma configuração emergente entre autoritarismo e tecnologias de controle, algo que, por aproximação, podemos chamar de tecnofascismo. A palavra é provisória e já aparece em muitos contextos diferentes, mas nos parece mais adequada para abrir a caixa-preta do presente do que seguir insistindo num conceito – “neoliberalismo” – que já não o descreve[5].
O efeito do uso inercial desse nome é o de uma crítica que gira em falso: ela continua descrevendo o inimigo com os mesmos termos, mesmo quando já admite que as formas de dominação, os dispositivos de governamentalidade e, por consequência, os focos de resistência têm se transformado radicalmente. Persistir em uma crítica ao “neoliberal” quando já se opera num regime tecnopolítico que, ao mesmo tempo, se declara pós-global – e o faz não pela complacência das democracias liberais (que ainda tentam conter a maré), mas pela militarização e pela multiplicação das zonas de guerra –, é como tentar decifrar o presente com um mapa antigo, onde as novas fronteiras sequer foram traçadas.
O problema, então, não está em ter usado esse nome, mas em seguir usando-o como se o presente ainda estivesse contido nele. O apego ao familiar produz um efeito de segurança, mas também de cegueira: ao manter a crítica onde ela já não opera com eficácia, não se vê o que está emergindo. Como toda lente desgastada, o conceito começa a distorcer mais do que esclarecer. E, pior: corre-se risco de não reconhecer como política e resistência aquilo que já está acontecendo, simplesmente porque acontece fora do vocabulário autorizado da crítica. É o caso da resistência ucraniana, que não usa vermelho, porque o vermelho, lá, é a cor preferida de seus carrascos.
A guerra da Ucrânia representa, hoje, um divisor tanto conceitual quanto político. Contra toda tentação de vê-la apenas como um “conflito geopolítico entre imperialismos”, o que se passa ali é muito mais profundo e urgente: uma resistência real, material e organizada, de uma população que se mobiliza para recompor instituições democráticas em meio à destruição. A resistência ucraniana, nesse caso, recoloca a política no terreno da imanência – não como ideologia, mas como prática cotidiana de defesa de um desejo democrático claro: o de viver em liberdade, reconstruir instituições e escolher seus próprios aliados, inclusive o ingresso na União Europeia e na OTAN. Zelensky foi eleito justamente com esse mandato, que, gostemos ou não, expressa um projeto político legítimo diante de um regime autoritário que nega à Ucrânia até mesmo o direito de existir enquanto país soberano.
Ao acusarem Zelensky de ser um “palhaço neoliberal”, é a própria esquerda que acaba vestindo o nariz vermelho. Não se trata ali de um projeto revolucionário transcendente, mas a defesa, com as ferramentas disponíveis, da continuidade de um processo democrático já instituído, mesmo que precário, incompleto e marcado por contradições. Reconstruir as cidades, manter escolas e hospitais funcionando, sustentar o vínculo coletivo sob o trauma: esse é o gesto radical da política em Kiev, Mykolaiv ou Kharkiv.
Mesmo em contextos distintos, como o da Faixa de Gaza, reconhecemos forças que resistem à destruição absoluta – ainda que sem um arcabouço democrático já instituído e atravessadas por mediações trágicas, como o ataque do Hamas a civis israelenses: expressão de um fundamentalismo religioso que, em si, já deveria preocupar seriamente a esquerda. A extrema violência dos bombardeios ordenados por Netanyahu contra os palestinos – os massacres sobre a população civil, os cercos prolongados, os cortes de água, luz e comida – e a catástrofe humanitária em curso produzem, sob os escombros, redes de solidariedade, formas elementares de organização coletiva, tentativas concretas de sustentar a vida.
Essas formas de resistência, diversas em suas condições, estratégias e horizontes, têm em comum a tentativa de sustentar a vida e recompor vínculos políticos sob ruínas. Mas é justamente na Ucrânia que essa resistência assume, de maneira mais explícita, a tarefa de reconstruir instituições democráticas já existentes, ainda que frágeis e atravessadas por contradições. É nesse terreno que se torna incontornável reconhecer o gesto político que ali se afirma.
Reconhecer esse processo não é romantizar nenhum nacionalismo tampouco apagar as contradições internas da democracia na Ucrânia. Trata-se de compreender que, diante da destruição militar e simbólica conduzida por Putin, a sociedade ucraniana produziu redes, formas de governo descentralizadas, alianças democráticas e práticas tecnopolíticas de resistência[6]. De modo paradoxal, a guerra tornou-se laboratório de reinvenção política – em que a defesa da democracia não é uma bandeira abstrata, mas um ato de sobrevivência e de criação institucional. Mesmo entre escombros e cercos, há um gesto tanto constituinte quanto instituinte – real, imanente, político – que se opõe tanto ao imperialismo russo quanto à normalização da exceção como regime global.
É pela luta da Ucrânia que passa o futuro da Europa, não porque ela represente um ideal de pureza ideológica ou um novo messianismo, mas porque ali, se torna visível a possibilidade concreta de recompor um espaço político comum em meio ao colapso. A defesa da Ucrânia é, nesse sentido, também a defesa da Europa enquanto projeto federativo inacabado e como campo em disputa onde a democracia ainda pode ser ampliada, reinventada e pluralizada. Frente à ascensão das extremas-direitas, à crise migratória manipulada por interesses xenófobos e à erosão da solidariedade transnacional, a experiência ucraniana recoloca a questão europeia como tarefa política – não como bloco geoeconômico fechado, mas como horizonte federativo aberto à recomposição democrática entre povos, línguas, culturas e lutas.
Sua luta opera no plano da urgência: reconstruir cidades, defender línguas, manter redes elétricas, proteger crianças, conectar redes civis, reorganizar a vida comum sob bombardeio. Essa dimensão material da resistência é justamente o que a crítica abstrata não consegue nomear porque não cabe no vocabulário consagrado da esquerda “anti-imperialista” e de seu foco monotemático no neoliberalismo.
A recusa, por parte de amplos setores da crítica global, em reconhecer essa luta como política revela mais sobre suas prisões conceituais do que sobre a realidade concreta em que a defesa da democracia se tornou possível apenas enfrentando, por dentro, a brutalidade da guerra. E aqueles que se recusam a armar a Ucrânia, em nome de um pacifismo abstrato, tornam-se também corresponsáveis pela erosão do espaço democrático.
A preocupação em “não legitimar o Ocidente neoliberal” transforma-se, nesse caso, em paralisia analítica e, em última instância, em cumplicidade passiva com a destruição dos espaços que ainda sustentam direitos e instituições. Trata-se não apenas de um erro político, mas de uma traição à própria pretensão de pensar o real a partir da dinâmica das lutas e da produção de direitos.
A pergunta, portanto, não é “qual é o lado certo da geopolítica?”, mas: onde estão, hoje, as forças que tentam recompor, por dentro do colapso, as condições constituintes e instituintes da democracia?
O mesmo se aplica à crítica das plataformas digitais, da inteligência artificial e da aceleração algorítmica. A tentação de fundi-las todas sob o rótulo de “neoliberalismo digital” ou de “capitalismo de vigilância” bloqueia a pergunta mais difícil e mais urgente: que tipo de intervenção política é possível nesse novo regime de abstração, controle e comando? Como disputar o poder que se exerce não apenas sobre os corpos, mas sobre as mentes, os dados, os vínculos, os afetos, os modelos de previsão?
A resposta, se quiser ser estratégica, não pode passar pela nostalgia de um Fora. O que o ponto de vista do “fora do neoliberalismo” nos deu, como cavalo de Troia, foram os regimes de Trump e Putin. Ela exige, portanto, a afirmação de um ponto de vista imanente às lutas que já acontecem: nos movimentos migratórios que escapam à vigilância – e que pouco ou nada se importam se estão “reproduzindo uma lógica neoliberal” quando, nas suas lutas, para além das ideologias, vão à América disputando um pedaço do futuro, pela constituição e instituição de seus direitos; nas redes de solidariedade em meio às multiplicações das guerras; nos experimentos ainda imberbes de lutas algorítmicas; nos embates contra o fechamento territorial e epistêmico.
A política, hoje, não se resume à resistência à dominação – ela passa pela invenção de formas de vida que desafiem o colapso. E isso não ocorre por fora, mas por dentro da crise, por dentro da guerra, inclusive para que a guerra não se alastre e não atinja também as “margens” onde a paz, mais do que uma opinião, é ainda, com todos os seus problemas, um direito constituído.
Deste modo, a política não se faz apenas nomeando os inimigos do passado, mas reconhecendo os embates do presente.
Por fim, o que escapa ao “neoliberalismo” é toda a dimensão da reconfiguração planetária das infraestruturas algorítmicas, agora concentradas sob formas de monopólio e oligopólio operadas pelas Big Tech – formas privadas pós-soberanas que não apenas extraem dados, mas modulam o desejo, a linguagem, os comportamentos e as decisões. Essa reorganização se articula com o retorno dos nacionalismos como barreiras ativas ao mercado global, produzindo uma estriação do espaço mundial que interrompe os circuitos de circulação e interdependência que marcaram, de forma aberta, as últimas décadas. Paralelamente, intensifica-se a tentativa de colapsar o regime dos direitos universais, substituindo-o por formas seletivas de exceção e por um apartheid jurídico-tecnológico. A multiplicação das zonas de guerra de alta intensidade – do Leste Europeu ao Oriente Médio – se entrelaça com guerras comerciais, expressas em tarifaços, sanções unilaterais e embargos cruzados.
Nesse cenário, o dólar, moeda global por excelência, sustentado por uma hegemonia construída não apenas pela força econômica, mas também pela estabilidade institucional e pela confiança depositada nas democracias liberais, começa a perder centralidade. Seu papel não se limitava à conversibilidade ou à reserva de valor: ele funcionava como uma âncora monetária de um certo horizonte de previsibilidade global, baseado em acordos jurídicos, marcos multilaterais e, mesmo que de forma desigual, na referência a uma base institucional democrática mínima.
O enfraquecimento do dólar, nesse sentido, sem que nenhuma outra moeda possa ocupar seu lugar, pois uma moeda não se constrói por decreto, não é apenas sintoma da decadência de um dispositivo técnico-financeiro associado à hegemonia americana em ruínas. É, sobretudo, um índice da erosão das condições políticas que sustentavam um tipo de articulação planetária aberta às disputas democráticas, à circulação e à negociação entre diferenças, e que permitiam a emergência de formas políticas transnacionais, redes insurgentes e experimentações democráticas globais.
O que ameaça emergir em seu lugar é um sistema fragmentado, orientado por esferas de influência, sustentado por forças muito mais mortíferas que o dólar – ou que qualquer moeda –, como o pânico nuclear, efetivo justamente na medida em que erode a confiança na democracia.
Soma-se a isso a emergência de formas de resistência que, paradoxalmente, também são acusadas de neoliberais – justamente por se despirem dos vernizes ideológicos consagrados pelas tradições. São lutas que não se reconhecem nas fórmulas herdadas, mas que operam no plano do concreto: da sobrevivência, da recomposição institucional, dos corpos sob cerco e, por isso mesmo, escapam à crítica que insiste em se orientar por uma cartografia conceitual já desatualizada.
Se há um nome a ser reinscrito no centro do debate, talvez seja outro: democracia. Não como fórmula esvaziada ou fetiche institucional, mas como campo instável de experimentação, defesa e reconstrução. Democracia como tarefa. Como processo. Como risco – mas também como segurança mínima de que é possível contestar sem temer a morte ou o assassinato político.
Processos democráticos podem ser perdidos, capturados, derrotados, mas devem ser disputados e experimentados pelo que são: campos de luta e de experimentação da liberdade, expressões tanto de poder constituinte quanto de poder instituinte. E que, por isso mesmo, precisam ser defendidos nos lugares concretos onde estão sendo ameaçados e reinventados: por dentro da guerra, e não fora dela; na Ucrânia, nas batalhas das redes, com os migrantes, os bombardeados, nas brechas das infraestruturas algorítmicas.
Mais do que “acertar o nome”, trata-se de reabrir a escuta para onde algo se move e, nomear, aqui, não é descrever: é escolher um campo de intervenção imediata. E talvez, neste momento, o nome mais incômodo, mais exigente, mais negligenciado seja justamente aquele que mais importa.
Repetimos, então: democracia.
[1] Doutor em Filosofia. É pesquisador de pós-doutorado pelo Programa Pós-Graduação de Comunicação e Cultura da UFRJ, com bolsa da FAPERJ. É membro dos grupos de pesquisa Laboratório Território e Comunicação (LABTeC) e da Rede Universidade Nômade. Com Giuseppe Cocco, ministra a Cátedra “Aceleração Algorítmica, Democracia e Trabalho” pelo Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ (CBAE). E-mail para contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
[2] Ideologicamente, muitas das novas dinâmicas podem até se apresentar com roupagens neoliberais – discursos de mercado, linguagem empresarial, retóricas de eficiência ou de liberdade individual. Mas o que importa não é a forma ideológica com que se anunciam, e sim suas implicações materiais. A forma de governo de Trump é um exemplo paradigmático: embora frequentemente associado ao “neoliberalismo”, ele rompeu com pilares centrais das práticas do neoliberalismo, adotando políticas protecionistas agressivas – como os tarifaços unilaterais contra China, Europa e México –, desmontando acordos multilaterais e reestruturando o papel do Estado como agente econômico nacionalista. Não se trata, portanto, de continuidade neoliberal ou apenas um deslocamento, mas de uma ruptura efetiva com sua lógica – econômica, jurídica e geopolítica.
[3] Lula representa, de forma exemplar, o impasse conceitual e político que este texto procura criticar. Ao mesmo tempo que denuncia, com razão, a violência perpetrada por Israel em Gaza, flerta sistematicamente com o putinismo – seja ao relativizar a responsabilidade da Rússia pela guerra na Ucrânia, seja ao reiterar críticas assimétricas a Zelensky e à resistência ucraniana. Esse posicionamento, travestido de diplomacia “equilibrada”, revela não uma neutralidade, mas uma clivagem cínica e seletiva que recusa reconhecer como política legítima a luta de um povo pela sua autodeterminação democrática.
[4] Temos chamado essa forma de poder de noopoder. Em: COCCO, Giuseppe; FORTES, Felipe. Aceleração Algorítmica, Crise da Soberania e Noopolítica: a Batalha pelo Controle das Redes. Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia, Rio de Janeiro, n. 72 (Guerras), seção “Rede Moitará”, p. 43–70, 30 abr. 2025. Disponível aqui.
[5] Como Marx nos lembra, é o ser humano que explica o macaco – e não o contrário. Do mesmo modo, não são os resíduos do neoliberalismo que explicam as transformações atuais do capitalismo, mas essas próprias transformações que reconfiguram o sentido dos elementos herdados. O empreendedorismo difuso, por exemplo, permanece – mas já não é mais um vetor de reorganização estrutural: é ponto de partida, não de chegada. As dinâmicas que interessam, aqui, são aquelas que desestabilizam a forma consolidada do sistema – não as que, embora incorporadas, persistem como resíduos dentro de um novo agenciamento social, um novo modo de acumulação, um novo nomos. O mesmo vale para o campo da inteligência: é a hibridização entre a inteligência humana e a artificial que desafia e redefine o que entendemos por inteligência – e não o contrário.
[6] Um exemplo concreto dessas práticas tecnopolíticas de resistência é o desenvolvimento, em meio à guerra, de tecnologias de desminagem territorial, realizadas por meio de parcerias público-privadas entre o governo ucraniano e startups locais. Tais inovações são orientadas não apenas por objetivos militares, mas também pela reconstrução civil e pela proteção da população. Ver: Innovation Under Fire: Inside Ukraine’s Race to Reinvent Demining, disponível aqui.