14 Mai 2025
"Enquanto houver uma criança Yanomami com fome, uma mulher Guarani chorando seus mortos, um ancião Xokleng rezando pela demarcação de seu território, nenhuma Eucaristia estará completa. O altar de Deus se estende até as florestas, os rios e os acampamentos. E ali, Deus nos espera, com os pobres, clamando por justiça", escreve José F. Castillo Tapia, SJ, padre jesuíta. Nasceu em Granada. Atualmente trabalha na Amazônia brasileira apoiando povos indígenas. Graduado em Filosofia e Teologia pela Pontifícia Universidade de Comillas e mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) de Belo Horizonte (Brasil).
A luta dos povos indígenas brasileiros por terra livre – expressão de sua autonomia e sobrevivência cultural – ecoa o grito dos pobres na história, um clamor que a teologia identifica como lugar privilegiado da revelação de Deus. São muitos os estudos e análises que se fazem hoje sobre a realidade indígena: relatórios antropológicos, abordagens sociológicas e denúncias políticas, todas extremamente necessárias e urgentes. No entanto, para nós cristãos, é imprescindível também uma leitura teológica, pois esta realidade interpela diretamente a fé. A Igreja tem uma palavra a dizer diante do sofrimento indígena, não apenas como aliada ética, mas como comunidade portadora de uma mensagem profética de justiça e reconciliação.
Desde Abel, cujo sangue inocente derramado “clama… desde a terra” (Gn 4,10), passando por Jó em sua dor protestante, até Jesus Cristo crucificado, a tradição bíblica reconhece no sofrimento dos inocentes um apelo que chega ao coração de Deus. Este texto propõe uma reflexão teológica sobre o movimento indígena Terra Livre no Brasil, entendendo a luta pelo território não apenas como demanda socioeconômica, mas como um lugar teológico onde “o clamor da terra” se confunde com “o clamor dos pobres” (Laudato Si’, 49) – um sacramento da presença de Deus entre os oprimidos.
Partindo de um panorama histórico e atual das lutas indígenas (1), examinaremos a dimensão teológica do grito da terra e do sangue à luz da Escritura (2), para então considerar a resposta cristã e eclesial inspirada em Jesus Cristo e no impulso do Concílio Vaticano II (3). A seguir, aprofundaremos o debate sobre o marco temporal como mecanismo legal de negação de direitos (4), e por fim, refletiremos sobre a opção preferencial pelos pobres aplicada aos povos indígenas e suas implicações espirituais e práticas (5). Em tudo, busca-se evidenciar uma espiritualidade encarnada, enraizada na realidade concreta, onde a causa indígena por terra livre seja reconhecida como parte da missão libertadora da Igreja e sinal da fidelidade de Deus aos pobres em nosso tempo.
A luta pela terra no Brasil é, para os povos indígenas, uma luta por existência, dignidade e continuidade histórica. Para compreendê-la profundamente, é necessário recordar que o país foi fundado sobre uma lógica colonial de ocupação, expulsão e apagamento. A chegada dos colonizadores europeus no século XVI inaugurou um processo de invasão das terras habitadas por centenas de povos originários, cada qual com sua organização social, língua, espiritualidade e relação sagrada com o território.
Durante séculos, o Estado colonial, e depois o Império e a República, operaram sob uma lógica que via os indígenas como “obstáculos ao progresso” ou “populações a serem assimiladas”. Os aldeamentos jesuítas e as frentes missionárias, embora muitas vezes impulsionadas por boa intenção, também colaboraram com essa lógica ao deslocar povos de seus territórios ancestrais em nome de uma “civilização” ocidental. A expulsão, a morte, o silenciamento e a destruição cultural foram práticas contínuas. O genocídio indígena não foi apenas físico, mas também simbólico, espiritual e territorial.
Essa história de violências estruturais atravessou a formação do Brasil moderno. Ao longo do século XX, especialmente durante a ditadura militar (1964–1985), o avanço da fronteira agrícola, os grandes projetos de infraestrutura (como hidrelétricas e estradas) e a expansão do agronegócio intensificaram os conflitos por terra. Muitos povos foram expulsos de suas áreas tradicionais sem qualquer consulta ou compensação, e suas terras foram convertidas em pasto, monocultura ou jazidas exploradas por empresas multinacionais. O Estado brasileiro, em vez de protegê-los, muitas vezes atuou como aliado dos interesses econômicos dominantes.
A Constituição Federal de 1988 representou um marco civilizatório ao reconhecer, no artigo 231, que “são reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Trata-se de um reconhecimento constitucional de que o direito dos povos indígenas à terra precede o próprio Estado brasileiro. A partir daí, iniciou-se uma lenta e complexa política de demarcação de terras indígenas, sob responsabilidade da FUNAI e do Poder Executivo.
Contudo, esse processo foi rapidamente travado por pressões políticas e econômicas. Durante os anos 1990 e 2000, surgiram constantes tentativas legislativas de rever ou limitar esses direitos: propostas como a PEC 215 (que transferia ao Congresso o poder de demarcar terras) e, mais recentemente, o PL 490/2007, tentavam desconstruir o espírito da Constituição de 1988, promovendo uma lógica anti-indígena que visava transformar o território ancestral em mercadoria ou propriedade produtiva.
Paralelamente a essas ameaças legais, a resistência dos povos indígenas cresceu em consciência e organização. Em abril de 2004, foi realizado em Brasília o primeiro Acampamento Terra Livre (ATL), reunindo lideranças de diversas etnias para denunciar a morosidade das demarcações e exigir respeito aos seus direitos. Desde então, o ATL se tornou o maior evento político indígena do país, ganhando reconhecimento nacional e internacional.
Nas palavras de uma liderança Kaingang durante o ATL de 2023: “Nosso marco é ancestral. Não é 1988. É milenar. Sempre estivemos aqui.” Esse testemunho rompe a lógica jurídica imposta pelo marco temporal e afirma uma outra temporalidade: a da ancestralidade, da memória, da permanência espiritual na terra.
O movimento Terra Livre representa, portanto, não apenas uma reivindicação de direitos legais, mas um grito profético e existencial, que nasce da experiência de injustiça histórica e se traduz em esperança coletiva. Os povos indígenas, ao lutar pela terra, lutam por sua cultura, sua espiritualidade, sua medicina, seus modos de vida e seus filhos. Lutam também por nós: porque ao defenderem a floresta, os rios e os territórios vivos, defendem a vida do planeta.
A Igreja Católica no Brasil tem, em muitos momentos, sido aliada dessa causa, especialmente por meio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), criado em 1972. Sua criação se deu em um contexto de verdadeiro genocídio, no qual os povos indígenas eram considerados atrasados, um obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento nacional, e, portanto, vistos como descartáveis. Inspirado na teologia dos anos setenta e no impulso do Concílio Vaticano II, o CIMI se comprometeu com a defesa incondicional dos direitos indígenas, reconhecendo que a luta pela terra é também uma expressão do Reino de Deus. O documento de Puebla (1979) já afirmava que os povos indígenas são “os primeiros habitantes das Américas” e que sua causa é “de vida ou morte” (DP 402–405). Francisco, em Querida Amazônia, reafirma esse compromisso, clamando por um modelo de desenvolvimento que respeite os saberes e a autonomia dos povos nativos (QA 26–27).
Hoje, mais de 305 povos indígenas vivem no Brasil, falam mais de 270 línguas e estão presentes em todos os biomas. Muitos ainda aguardam a demarcação de suas terras, enfrentam invasões, destruição ambiental, contaminação de seus rios e violências constantes. A luta continua. E nela, a fé cristã é chamada a se encarnar, a escutar e a caminhar junto. Como dizia o Papa Francisco: “A opção pelos pobres deve traduzir-se principalmente numa atenção religiosa privilegiada e prioritária” (Evangelii Gaudium, 200).
O clamor da terra – e o sangue derramado sobre ela – é um fio que atravessa toda a Escritura. Desde o Gênesis até o Apocalipse, a Bíblia revela um Deus que escuta o grito dos inocentes, dos expulsos, dos violentados. Mas é no Novo Testamento, e de modo definitivo na crucifixão de Jesus, que esse clamor encontra sua expressão mais radical e sua resposta mais profunda.
A tradição bíblica já havia indicado que a terra não é indiferente à violência: “A voz do sangue de teu irmão clama a mim desde a terra” (Gn 4,10). Esse grito continua ressoando em todo o Antigo Testamento e encontra eco no livro de Jó, que clama: “Terra, não cubras o meu sangue! E que o meu grito não encontre sepultura!” (Jó 16,18). O grito de dor é também um grito de memória, um protesto contra o esquecimento e a impunidade. No Novo Testamento, esse grito é assumido pelo próprio Jesus. Ele se identifica com todos os inocentes assassinados: “Para que caia sobre vós todo o sangue inocente derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo…” (Mt 23,35). Jesus reconhece, assim, que sua missão está em continuidade com os justos perseguidos de todas as gerações. Seu destino será semelhante ao deles.
O Evangelho segundo João nos relata que Jesus foi crucificado fora da cidade:
“Levando ele próprio a cruz, saiu para o lugar chamado Calvário, onde o crucificaram” (Jo 19,17-18). Também o autor da Carta aos Hebreus destaca este fato com força simbólica:
“Jesus sofreu fora das portas da cidade, para santificar o povo com o seu próprio sangue. Saiamos, pois, a ele fora do acampamento, levando o seu opróbrio” (Hb 13,12-13).
Ser crucificado “fora” da cidade não era apenas um dado geográfico: era um sinal teológico e político de exclusão. Fora da cidade estavam os impuros, os criminosos, os leprosos, os rejeitados. Era o lugar dos que não tinham cidadania, nem reconhecimento. Ao ser crucificado ali, Jesus se solidariza radicalmente com todos os que são considerados “descartáveis”.
Mais ainda: segundo o livro do Deuteronômio, aquele que fosse suspenso no madeiro era considerado maldito: “O cadáver de um homem enforcado não permanecerá na árvore durante a noite. Deves sepultá-lo no mesmo dia, pois quem é suspenso na árvore é um maldito de Deus, e assim não tornarás impura a terra que o Senhor teu Deus te dá como herança” (Dt 21,23). O apóstolo Paulo retoma essa ideia com profundidade teológica:
“Cristo nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se maldição por nós, pois está escrito: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro” (Gl 3,13).
Jesus, portanto, assume sobre si a maldição, o abandono, o escárnio reservado aos últimos. Ele morre como um “maldito”, rejeitado pelos homens, silenciado pelas instituições religiosas e políticas, excluído até do espaço sagrado da cidade santa. Sua morte fora da cidade é símbolo de sua identificação com todos os que estão fora do sistema, fora da proteção, fora da memória.
A experiência de crucifixão fora dos muros, própria de Jesus, pode ser profundamente relacionada com a condição histórica dos povos indígenas. Eles também foram – e continuam sendo – crucificados fora da cidade: fora das leis, fora das garantias, fora das decisões políticas que definem o futuro do país. Sua exclusão não é apenas econômica: é simbólica, espacial, espiritual.
Como Jesus, os povos indígenas são vítimas de falsas acusações (de serem “atrasados”, “obstáculo ao desenvolvimento”), são julgados por tribunais que não os entendem, e são entregues à morte por interesses econômicos e políticos. Como Jesus, muitos são assassinados por defender a vida, a terra e os pobres. Como Jesus, têm seu sangue derramado sobre a terra que lhes foi prometida como herança.
Na lógica do mundo, os corpos indígenas também são considerados “malditos”: vistos como obstáculo, como incômodo, como resto do passado. Mas na lógica de Deus, são corpos sagrados, crucificados com Cristo, participantes de seu sofrimento e de sua glória.
“O que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40).
A morte de Jesus fora da cidade também revela que a salvação acontece fora dos centros de poder. Não é em Jerusalém, no templo, nem no palácio de Pilatos, que Deus age plenamente. É na cruz, no Calvário, num lugar impuro, junto aos pobres e condenados, que o Reino se manifesta. Isso indica que a história da salvação passa pelas periferias, pelos povos originários, pelos campos e florestas onde o clamor da terra ainda é escutado.
Ao identificar-se com os crucificados, Jesus ressignifica o sofrimento: o grito dos povos indígenas não é sinal de derrota, mas de esperança pascal. A cruz não é o fim, mas o início de uma nova aliança. E essa aliança exige que a memória dos povos crucificados seja resgatada, suas vozes escutadas e suas terras devolvidas. A missão da Igreja é, portanto, sair da cidade, como ensina Hebreus, para se unir a Cristo nos espaços de dor e resistência: “Saiamos, pois, a ele, fora do acampamento” (Hb 13,13). É fora da cidade que a Igreja reencontra seu Senhor. É fora dos centros de poder que ela se converte ao Reino.
A resposta cristã ao sofrimento dos povos indígenas – e, mais amplamente, ao clamor dos excluídos – encontra seu fundamento e inspiração em Jesus de Nazaré. Sua vida, palavras e gestos não apenas revelam o amor de Deus por toda a humanidade, mas indicam o caminho concreto que os discípulos e discípulas devem seguir: um caminho de proximidade, solidariedade e libertação.
Jesus não nasceu entre os poderosos. Ele nasceu numa estrebaria, em uma terra ocupada por um império estrangeiro, foi exilado ainda criança (cf. Mt 2,13-15), cresceu em região marginal (cf. Jo 1,46), trabalhou com as mãos, e viveu entre camponeses, pescadores, mulheres excluídas e pessoas consideradas impuras pela religião oficial. Não apenas falou de Deus, mas revelou um Deus que se inclina, que escuta, que cura e que se deixa tocar pelos feridos. Ele mesmo anunciou seu programa messiânico ao ler o profeta Isaías na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres, enviou-me para proclamar a libertação aos presos, a recuperação da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19).
Ao colocar os pobres no centro de sua missão, Jesus manifesta que o Reino de Deus começa com aqueles que o mundo descarta. Isso não é romantização da pobreza, mas reconhecimento de que os pobres, por sua vulnerabilidade e resistência, são os primeiros a acolher a novidade de Deus.
O Concílio Vaticano II redefiniu a identidade e a missão da Igreja como Povo de Deus a caminho na história, solidário com as alegrias e sofrimentos da humanidade. O documento Gaudium et Spes afirma com clareza: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1).
Com Medellín (1968) e Puebla (1979), a Igreja latino-americana reconheceu que sua fidelidade ao Evangelho exige uma opção preferencial pelos pobres – uma escolha ética, pastoral e teológica. Tal opção implica um deslocamento do centro: não se trata de fazer pelos pobres, mas de caminhar com eles, escutando suas vozes, respeitando seus tempos, aprendendo com sua sabedoria e espiritualidade. Essa compreensão tem sido retomada e aprofundada pelo Papa Francisco, especialmente na Evangelii Gaudium, onde afirma:
“Cada cristão e cada comunidade é chamado a ser instrumento de Deus para a libertação e promoção dos pobres” (EG 187). E ainda: “Enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os povos, será impossível erradicar a violência” (EG 59).
O grito dos povos indígenas hoje é expressão dessa exclusão e desigualdade. É a violência estrutural e simbólica que os empurra para as periferias, que lhes nega o direito à terra, à cultura, à memória. E é nesse clamor que a Igreja é chamada a reconhecer o rosto sofredor de Cristo.
No capítulo 25 do Evangelho de Mateus, Jesus se identifica com os famintos, estrangeiros, nus, doentes e encarcerados: “Em verdade vos digo: todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40). Aplicada aos povos indígenas, essa palavra tem uma força profética: Jesus está presente na comunidade Yanomami esquecida pelo Estado, na mulher Guarani expulsa da terra sagrada, no ancião Xokleng que espera a demarcação. Está também nos jovens que lutam pelo direito de estudar em sua língua materna, nos pajés que rezam pela cura da floresta, nos corpos feridos por madeireiros, mineradores e fazendeiros.
A missão da Igreja, portanto, é reconhecer, anunciar e servir esse Cristo indígena. Como fez Simão de Cirene, é preciso ajudar a carregar a cruz do outro. Como as mulheres da Galileia, é preciso chorar com quem chora. Como Maria, aos pés da cruz, é preciso permanecer junto, mesmo sem palavras.
Francisco insiste que a Igreja deve ser “em saída”, não autorreferencial, mas missionária, encarnada, próxima dos pobres. Isso implica uma conversão profunda: cultural, pastoral, ecológica e espiritual. No Sínodo para a Amazônia, convocado em 2019, ele pediu uma Igreja com rosto indígena, que escute, respeite e valorize os povos originários como sujeitos eclesiais. Em Querida Amazônia, o Papa afirma: “Os povos originários não podem ser considerados como estranhos ou meramente receptores de uma evangelização que vem de fora. Eles são também protagonistas ativos dessa missão” (QA 55).
Portanto, a resposta cristã ao clamor indígena não pode se limitar à caridade ou à denúncia profética. Deve incluir o reconhecimento e a promoção de suas culturas, espiritualidades e teologias como parte integrante da missão da Igreja. É o que significa ser Igreja samaritana, Igreja servidora, Igreja povo de Deus.
A tese do marco temporal representa hoje uma das ameaças mais graves aos direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. Seu princípio é aparentemente simples: só teriam direito à terra os povos que a estivessem ocupando física e comprovadamente em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Porém, esse critério ignora as violências históricas, os deslocamentos forçados e as remoções que impediram muitas comunidades de estarem em suas terras nesse dia.
Essa tese foi formulada juridicamente em 2009, durante o julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Embora o STF tenha mantido a demarcação contínua do território, parte do voto do relator introduziu o argumento do marco temporal como possível critério futuro. Desde então, forças políticas ligadas ao agronegócio e ao extrativismo passaram a promovê-lo como mecanismo para restringir os direitos indígenas, usando-o como fundamento em dezenas de ações judiciais e em projetos de lei, como o PL 490/2007 e sua versão mais recente, o PL 2.903/2023, aprovado pela Câmara e pelo Senado em 2023.
Em setembro de 2023, o STF julgou novamente o tema no caso dos Xokleng, e por maioria dos votos, rejeitou a tese do marco temporal, considerando-a inconstitucional, pois contraria os direitos originários e imprescritíveis reconhecidos pelo artigo 231 da Constituição. Apesar disso, poucos dias depois, o Congresso Nacional aprovou o PL 2.903, tentando contornar a decisão judicial por via legislativa. O presidente sancionou a lei em parte, mas vários dispositivos seguem ameaçando os direitos indígenas, o que provocou nova judicialização.
A aplicação do marco temporal afetaria diretamente mais de 300 processos de demarcação em curso no Brasil. Povos como os Xokleng, expulsos de suas terras por colonos e frentes missionárias no século XX, hoje lutam para recuperar parte de seu território tradicional em Santa Catarina. Mas, como não estavam fisicamente lá em 1988 – por causa das remoções – o Estado argumentava que perderam o direito. Ignora-se, assim, o fato de que muitos retornaram somente após o fim da ditadura militar, quando foi possível reivindicar suas terras sem o risco imediato de repressão.
Outro caso emblemático é o dos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, um dos povos com maior índice de suicídios entre jovens e crianças no Brasil. Muitos vivem confinados à beira de estradas, em barracos de lona, justamente por terem sido expulsos de suas terras ao longo do século XX por fazendeiros e políticas estatais. Aplicar o marco temporal a esses povos é condená-los a um genocídio lento: sem terra, sem água, sem futuro.
O marco temporal também tem efeitos sobre os povos isolados e de recente contato, que, por natureza, não estavam em contato com o Estado em 1988. Negar-lhes o direito à terra é expô-los ao extermínio físico e cultural. É uma negação do direito de existir.
Teologicamente, o marco temporal é uma negação da própria lógica evangélica. O critério de 1988 transforma os oprimidos em réus: exige que provem sua presença na terra num determinado dia, esquecendo que essa ausência é, muitas vezes, fruto do pecado histórico da expulsão, da violência e da expropriação. É como exigir que o samaritano, ao encontrar o homem espancado à beira da estrada, pergunte: “Você estava aqui desde ontem?” antes de ajudá-lo.
O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, afirma que a justiça exige a restituição dos bens tomados dos mais fracos, e que a Igreja deve escutar “as angústias e esperanças dos pobres” (GS 1). Francisco retoma esse ensinamento dizendo que a terra é dom de Deus, “não um bem a ser explorado por interesses econômicos de curto prazo” (Laudato Si’, 93).
A opção preferencial pelos pobres exige, aqui, uma opção preferencial pelos territórios indígenas, como lugares sagrados de vida, de espiritualidade e de relação com o Criador. Ao relativizar esse vínculo com uma data arbitrária, o marco temporal rompe a comunhão que Deus estabelece entre o povo e a terra: “A terra pertence ao Senhor, e vós sois apenas estrangeiros e hóspedes” (Lv 25,23).
Diante dessa grave ameaça, a missão da Igreja não pode ser de neutralidade. Como dizia Dom Pedro Casaldáliga, “o lugar do cristão é ao lado dos pobres, ainda que isso lhe custe a cruz”. A Igreja deve levantar sua voz profética, denunciar os projetos de exclusão, apoiar juridicamente as comunidades afetadas, promover espaços de escuta e visibilidade, e integrar em sua liturgia e catequese a memória viva dos que lutam pela terra.
O marco temporal não é apenas uma questão jurídica: é um sinal dos tempos, um clamor histórico que exige da Igreja discernimento e coragem. Se a Igreja se cala, torna-se cúmplice. Mas se fala, age e caminha com os povos indígenas, torna-se sacramento do Reino: um sinal vivo de que Deus está com os pobres e não com os impérios.
Concluímos com a certeza de que o grito dos povos indígenas é o grito de Deus em nosso tempo. Como o sangue de Abel, ele clama da terra. Como Jó, ele pede que não seja sepultado em silêncio. Como os mártires do Apocalipse, ele exige justiça. O movimento Terra Livre é expressão concreta desse clamor. É o suspiro coletivo de centenas de povos que ainda hoje resistem ao extermínio, ao silenciamento e à negação de direitos. É também sinal do Reino, onde os últimos são os primeiros e a terra volta a ser lugar de vida.
A Igreja, se quer ser fiel ao seu Senhor crucificado e ressuscitado, precisa estar ao lado desses povos. Não por compaixão assistencialista, mas por fidelidade evangélica. A opção pelos pobres, neste caso, se traduz em acompanhar os indígenas em sua luta pela terra, pela memória e pela vida.
Enquanto houver uma criança Yanomami com fome, uma mulher Guarani chorando seus mortos, um ancião Xokleng rezando pela demarcação de seu território, nenhuma Eucaristia estará completa. O altar de Deus se estende até as florestas, os rios e os acampamentos. E ali, Deus nos espera, com os pobres, clamando por justiça.