15 Abril 2025
Encerramento da mobilização em Brasília foi marcada por violência policial, ausência de Lula e nenhum avanço na demarcação de terras. STF e Congresso negociam o “marco temporal” sem voz indígena. Próximo passo: comissão exige escuta decisiva na COP30.
A reportagem é de Carolina Fasolo e Ester Cezar, publicada por Instituto Socioambiental, 11-04-2025.
Na carta final do Acampamento Terra Livre (ATL) 2025, divulgada nesta sexta-feira (11/04), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou o maior ataque institucional aos direitos indígenas desde a promulgação da Constituição de 1988.
O documento, que marcou o encerramento da principal mobilização indígena do planeta, também alertou para a urgência da crise climática, condenou os projetos de energia e combustíveis fósseis que violam os territórios tradicionais, e exigiu o arquivamento imediato das propostas anti-indígenas em tramitação no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF).
O ATL 2025 foi marcado pela presença de mais de sete mil pessoas de diferentes povos para celebrar os 20 anos da Apib, reivindicar a garantia de direitos constitucionais e mostrar a potência da força ancestral.
Além das marchas “Apib Somos Todos Nós: Nosso Futuro não está à venda!” e “A resposta somos nós”, a programação contou com mesas e plenárias que discutiram o futuro desses povos em espaços como a COP30 e a Câmara de Conciliação do STF.
A ausência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que costuma visitar o evento, a falta de anúncio de novas demarcações e a violência policial contra a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) e outros indígenas durante a marcha desta quinta-feira (10/04) também marcaram o acampamento. A expectativa, de acordo com o coordenador nacional da Apib, Kleber Karipuna, é a de que novos anúncios de demarcação de Terras Indígenas sejam feitos ainda em abril.
Na carta final, a Câmara de Conciliação do STF, que discute a Lei do Marco Temporal sem a legítima representação do movimento indígena, foi denunciada como o maior ataque institucional desde a promulgação da Constituição. “O Ministro Gilmar Mendes propôs um novo anteprojeto de lei que fragiliza o direito à consulta livre, prévia e informada, criminaliza retomadas, indeniza invasores e altera profundamente o procedimento de demarcação. Pior: sinalizou a abertura de nova negociação sobre a mineração em terras indígenas”, diz o texto.
No Legislativo, a bancada ruralista pressiona pela aprovação de Propostas de Emendas à Constituição (PECs), como a PEC 48, do Marco Temporal, e a PEC 132, da indenização da terra nua, além da CPI da Demarcação das Terras Indígenas. “Exigimos o arquivamento imediato de todas as propostas legislativas de caráter anti-indígena em tramitação no Congresso Nacional”, diz o documento.
A carta ainda reforça que os conhecimentos tradicionais indígenas são essenciais para combater as crises climática e alimentar, defendendo a demarcação de terras como política ambiental urgente e o financiamento direto para a proteção territorial.
“Nossa ciência e sistema ancestral, expressa na agroecologia, nas economias indígenas, na gestão coletiva dos territórios, na nossa relação espiritual com a Mãe Natureza, preserva a biodiversidade, todas as formas de vida, incluindo os mananciais e sustenta sistemas alimentares saudáveis e equilibrados”.
Na quarta-feira, a plenária “O Acordo sem Voz: A Câmara de Conciliação no STF e a Reconfiguração da Política Indigenista no Brasil” reuniu lideranças indígenas, parceiros e representantes de órgãos públicos.
A Câmara, instituída pelo ministro Gilmar Mendes para “pacificar” as partes em conflito pela Lei 14.701 – a Lei do Marco Temporal, encerraria em 2 de abril, mas a Câmara dos Deputados e o Senado Federal solicitaram sua prorrogação. O pedido foi corroborado pela União e deve ser avaliado por Mendes.
A Apib se retirou das negociações logo na segunda sessão, alegando falta de nitidez sobre o processo. Ainda assim, o ministro decidiu continuar as negociações, sem a participação da parte mais interessada no processo.
Na plenária, o coordenador adjunto de política e direito do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta, criticou a continuidade da Câmara de Conciliação no STF sem a representação da Apib. “Eu nunca vi conciliação sem as partes. A Apib é a autora da ação e a legítima representante, segundo o STF, dos povos indígenas do Brasil. O Supremo está permitindo que se conciliem os direitos dos povos indígenas sem sua representação legítima”, afirmou.
O debate contou também com a participação da defensora Pública da União, Diana Freitas de Andrade; da liderança do povo Xukuru Guila Xukuru; do jurista e professor Carlos Marés; do advogado indígena Ricardo Terena; da advogada representante da Apib, Heloísa Machado e da ex-subprocuradora-geral da República Deborah Duprat.
Mauricio Terena, coordenador jurídico da Apib, falou sobre a importância do fortalecimento do movimento indígena para contrapor os retrocessos constitucionais em curso. “A nossa estratégia de luta precisa passar por esse momento de organização e mobilização social. O processo jurídico é importante, mas a gente só conseguiu o que conseguiu fazendo luta”, ressaltou.
Os participantes manifestaram preocupação com a proposição, pelo STF, de um anteprojeto de lei que propõe inúmeros retrocessos, como explica Maurício Guetta. “O processo de demarcação vai ser travado. Vai ter indenização para Terra Indígena. Vão tentar liberar mineração, garimpo, hidrelétrica e tudo o que tiver de empreendimento em Terra Indígena. Quando o indígena não quiser um empreendimento de branco no seu território, vão liberar mesmo assim, porque é o que está dito lá no projeto de lei do ministro Gilmar Mendes.”, lamentou.
Além disso, é atípico que o órgão responsável pelo controle constitucional proponha leis, “muito menos leis sobre minorias vulneráveis, como são os povos indígenas do ponto de vista jurídico”, explica Guetta. “E se essa lei viesse a ser aprovada, qual é a legitimidade do Supremo, depois, para exercer o seu papel que está na Constituição [que é avaliar sua constitucionalidade]?”.
A manifestação da defensora pública da União, Diana Freitas de Andrade, foi no mesmo sentido. “A grande preocupação da Defensoria Pública é muito elementar. É que não exista, no ordenamento jurídico brasileiro, uma lei imune ao controle constitucional dado pelo STF”, afirmou.
Ex-subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat disse que o projeto abre as Terras Indígenas para as atividades econômicas para acabar com o processo de demarcação, como está estabelecido no artigo 231 da Constituição. “Tudo vai ser compra e venda. Tudo vai ser no fundo propriedade privada”, definiu.
“A principal neutralização do projeto é a criminalização absoluta das retomadas”, continua Duprat. “As retomadas foram a maior inteligência que o movimento indígena desde sempre teve para forçar processos de demarcação. A gente sabe que, sem as retomadas, muitas demarcações não aconteceriam. Pelo projeto de lei, as retomadas são tratadas como crime”, explicou Deborah Duprat.
“Não há direito se ele não é reconhecido e colocado em prática na hora”, afirmou o jurista Carlos Marés, um dos maiores especialistas em direitos indígenas no país. “O direito atrasado, que leva muito tempo para ser reconhecido, já deixa de ser direito, porque teve um tempo longo de ausência. Essa câmara é nada mais nada menos que uma tentativa do seu atraso . Ao meu entender a luta é para que se encerre [a câmara]”, sinalizou.
Guila Xukuru classificou a instalação da câmara de conciliação como “aberração jurídica”, que vai de encontro à determinação do STF. “A primeira coisa que a gente não pode abrir mão é que o direito dos povos indígenas é originário. A indenização da terra nua é para inviabilizar totalmente a demarcação desses territórios. A União não está pronta para cumprir com essa determinação que eles mesmos estão colocando”, enfatizou.