11 Abril 2025
Plenária no Acampamento Terra Livre 2025 discutiu mesa de conciliação sobre Lei 14.701 no STF e caminhos para superar as atuais ameaças aos direitos indígenas.
A reportagem é de Tiago Miotto, publicada por Cimi, 09-04-2025.
Na tarde desta quarta-feira (9), indígenas de todo o país reuniram-se na tenda principal do Acampamento Terra Livre (ATL) 2025 para acompanhar as discussões da plenária intitulada “O Acordo sem Voz: A Câmara de Conciliação no STF e a Reconfiguração da Política Indigenista no Brasil”.
O debate ocorreu no terceiro dia do ATL, que reúne cerca de seis mil indígenas em Brasília (DF), e pouco depois da notícia de que os representantes do Congresso Nacional e da União pediram a prorrogação da Comissão criada pelo ministro Gilmar Mendes para discutir a Lei 14.701/2023.
Em agosto do ano passado, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) retirou-se da mesa, por considerá-la uma “conciliação forçada” de seus direitos. Apesar disso, as discussões seguiram, com graves ameaças aos direitos constitucionais indígenas – e, agora, com uma possível prorrogação do prazo. Advogados indígenas e indigenistas, professores, juristas e lideranças discutiram caminhos para enfrentar as atuais ameaças na plenária.
“Em pleno ATL, o Congresso Nacional juntou nesse processo um pedido para que a Câmara de Conciliação se mantenha. E recentemente, a União também se manifestou para que essa Conciliação continue. Até quando vamos esperar? Para os povos indígenas, esse tempo é de décadas, de séculos, com um custo muito alto, de sangue sendo derramado”, relatou o advogado Maurício Terena, assessor jurídico da Apib.
“Nossa estratégia de luta precisa passar por esse momento de organização e mobilização social. O trabalho técnico e jurídico é importante, mas só conseguimos nossos direitos fazendo luta. E essa luta, independentemente do governo que esteja no poder, precisa seguir acontecendo”, afirmou Maurício.
“Essa Câmara precisa ser encerrada e o Supremo precisa cumprir o seu papel de declarar inconstitucional a tese do marco temporal. Essa lei está sendo utilizada para liberar atividades econômicas, flexibilizar a consulta livre, prévia e informada”, defendeu o assessor.
Enquanto mantém a Lei 14.701 em vigor, a Mesa de Conciliação tem analisado a minuta de um novo projeto legislativo, que poderia eventualmente substituir a Lei do Marco Temporal.
Uma das principais ameaças atuais aos direitos indígenas, a reivindicação ruralista de indenização pela “terra nua” em casos de demarcação de terra indígena – o que é vedado pela Constituição.
“O direito ao território é originário, anterior à própria Constituição. Não podemos abrir mão de um direito que conquistamos com muita luta. Indenização por terra nua é algo que, se a gente permitir, será mais uma das muitas desculpas utilizadas para não se demarcar terras indígenas”, apontou o advogado Guila Xukuru.
“ Se estamos vendo impossibilidade de demarcação sem precisar indenizar terra nua, vamos imaginar o cenário se ela tiver que ser indenizada. É mais um ponto da legislação para inviabilizar totalmente a demarcação desses territórios”, refletiu.
Na avaliação de Maurício Terena, a consequência prática dessa proposta seria uma reedição da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 – que, entre outros ataques, prevê a transferência da atribuição de demarcar terras indígenas do poder Executivo para o Legislativo.
“Quantas lideranças aqui lutaram para derrubar esse projeto? Colocar terra nua como condição para demarcação de terra indígena é dar a competência de demarcação de terras para o Congresso, sim. O orçamento público é votado no Congresso, é lá que se estabelece as prioridades financeiras do governo. Com esse Congresso que nós temos, será que a demarcação vai ser prioridade? A gente já venceu essa luta. E agora querem novamente trazer isso de volta”, apontou o advogado Terena.
“O STF em nenhum momento falou que o direito à indenização pela terra nua existe na nossa Constituição Federal”, reforçou a advogada Paloma Gomes, assessora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “O Supremo falou que isso tem que ser avaliado caso a caso, e a indenização que caberia é por evento danoso: se o Estado causou um dano a alguém, ele tem a responsabilidade de indenizar”.
“É falacioso quando se diz que o STF reconheceu a indenização por terra nua em caso de demarcação de terras indígenas. Não é constitucional. Quem diz que o Supremo reconheceu isso é quem quer receber pelas terras que ocupou de forma indevida, com invasão”, destacou Paloma.
A Lei 14.701 foi aprovada pelo Congresso Nacional em represália à decisão do STF no Tema 1031, de repercussão geral. Em setembro de 2023, o plenário da Suprema Corte decidiu que o marco temporal era inconstitucional e reafirmou o caráter originário dos direitos indígenas. A discussão, que já havia sido superada pela Corte, agora retorna na mesa de conciliação – caracterizada por Guila Xukuru como uma “aberração jurídica”.
“Quando o STF se permite colocar nessa situação de negociar direitos indígenas que o próprio STF acabou de reconhecer, a gente vê a possibilidade do surgimento de uma aberração”, refletiu o advogado Xukuru.
“A mesma instituição que disse que o marco temporal era inconstitucional reconhece uma pressão utilizada pelos ruralistas, pelos latifundiários do país. A lógica estabelecida foi essa: vocês querem que o marco temporal seja inconstitucional? A condição é a seguinte: reconheça aí a indenização por terra nua. O marco temporal já é inconstitucional! Isso é uma aberração jurídica”, disse Guila.
“O projeto de lei colocado lá [na Mesa] teve o seguinte sentido: vamos derrubar o marco temporal e, em contrapartida, vamos estabelecer retrocessos em todos os outros direitos indígenas”, analisou o advogado do Instituto Socioambiental (Isa), Maurício Guetta.
“O processo de demarcação vai ser travado, vai ter indenização para terra nua, vão tentar liberar mineração, garimpo, hidrelétrica e tudo que tiver de empreendimento em terra indígena. E quando o indígena não quiser, vão liberar mesmo assim, porque é o que está escrito no projeto de lei do ministro Gilmar Mendes”, avaliou.
Com a presença do povo Xukuru de Ororubá no plenário, o advogado e jurista Carlos Marés relembrou o caso em que os indígenas de Pernambuco derrotaram o Estado brasileiro na Corte Interamericana.
“Tive a honra de ter sido o perito, junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, da causa Xukuru. E curiosamente, a pergunta mais insistente que me faziam era: ‘como é possível o povo Xukuru reclamar na Corte Interamericana de Direitos Humanos, se o Brasil tem a melhor estrutura jurídica de direitos indígenas?’”, relatou.
“Apesar da Constituição dizer o que dizia, apesar dos direitos estarem tão claros e escritos na Constituição, faltava a demarcação. E a reclamação dos Xukuru é que a demarcação estava tão demorada que o tempo significava a ausência de direito”, relembrou Marés.
“Não há direito se ele não é reconhecido e colocado em prática na hora. Dez, quinze, vinte anos depois, já se passaram gerações, o crime já foi cometido, há mortes, há sofrimento, há perdas. Então, o direito atrasado, que leva muito tempo para ser reconhecido, deixa de ser direito. Ao contrário do direito, sua ausência é injustiça. É crime”, destacou o jurista.
“Essa Câmara de Conciliação existe para atrasar o direito. O direito indígena existe. Está posto na Constituição, na Convenção 169 [da Organização Internacional do Trabalho], no mundo. E o que fazem então os senhores do poder? Atrasam a aplicação, dificultam a aplicação, para que, quando ele for aplicado, seja mais difícil e se aceite muito menos”, destacou Marés.
“Essa é a questão mais grave que o movimento indígena vive desde 1988. Temos um projeto absolutamente neutralizador das conquistas da Constituinte”, pontuou a jurista e advogada Deborah Duprat. “O que eles estão discutindo [na mesa] são estratégias de neutralizar a demarcação das terras indígenas – e, no final, de neutralizar as próprias terras indígenas”.
No anteprojeto apresentado pelo ministro Gilmar Mendes, destacou Duprat, “as terras indígenas voltam a um regime que é quase o regime da integração, da assimilação dos indígenas. Antes da Constituição de 1988, as terras eram concedidas aos indígenas porque eles eram ainda não integrados. Quando eles fossem integrados, essas terras tenderiam a desaparecer”.
“Por que esse projeto é tão perigoso? Porque o seu principal objetivo é abrir as terras indígenas para atividades econômicas como mineração, exploração de recursos hídricos. Essas atividades vão ser utilizadas para financiar a compra de terras para os indígenas. O objetivo final do projeto é acabar com o processo de demarcação como ele está no artigo 231 da Constituição. Tudo vai ser compra e venda. Tudo vai ser, no fundo, propriedade privada”, avalia a jurista.
“E aí a gente se pergunta: mas se volta o regime da propriedade privada, onde pararam os direitos originários pelos quais tanta gente aqui lutou? Vão acabar. É um projeto de poder, que reconhece a potência dos povos indígenas, reconhece o poder que os povos indígenas têm nos seus saberes, que misturam humanos e não humanos. É neutralizar a possibilidade de termos um mundo diferente, de vencermos as grandes crises da atualidade. Só saberes diferentes desse saber do grande capital é que são capazes de salvar a humanidade. Mas eles não querem esses saberes”, refletiu Duprat.
Na avaliação da professora Eloísa Machado de Almeida, a mesa de Conciliação é “inconstitucional, injusta, ilegítima e imoral”.
“Ela é injusta porque ela é feita como uma ameaça aos povos indígenas. Que, se eles não sentarem na mesa de conciliação, a Constituição vai ser alterada, uma emenda constitucional vai ser aprovada e todos os direitos reconhecidos vão desaparecer. Ninguém concilia sob ameaça, e é isso que está acontecendo nessa mesa de conciliação”, avalia a professora.
“Os povos indígenas sentam na mesa em condição de desigualdade, em menor número e sem ter garantias de que sua voz vai ser ouvida”, destacou. “E ela é ilegítima porque, diante desse absurdo, os povos indígenas saem da mesa de conciliação e ela continua”.
A defensora Diana Freitas de Andrade, da DPU, destacou ainda que a proposta oriunda do anteprojeto em análise na mesa de conciliação pode resultar num instrumento “absurdo”: uma lei imune ao controle de constitucionalidade.
Isso porque, caso a minuta apreciada pela Comissão de Conciliação de fato tornar-se uma Lei e tiver sua constitucionalidade contestada, a Suprema Corte ficaria sem condições de analisar uma lei forjada dentro do próprio STF.
“Como o STF poderá dizer depois que uma lei fruto de uma minuta forjada dentro do STF é inconstitucional? Se essa previsão se consumar, estaremos admitindo no ordenamento jurídico brasileiro um instrumento totalmente teratológico e absurdo, que é uma lei imune ao controle de constitucionalidade”, aponto Diana.
“Já se passaram um ano e quatro meses com a Lei 14.701 em vigor. Essa foi uma das primeiras questões postas: como você vai sentar à mesa, se a lei está em vigor? Sem saber qual a metodologia posta? Qual o objeto discutido? Em vários momentos, a Apib peticionou nos autos pedindo que esses elementos fossem esclarecidos. Os pedidos sequer foram considerados. Então, foi muito legítimo e extremamente importante a saída dos povos indígenas da mesa de conciliação”, relembrou Paloma Gomes.
A advogada do Cimi destacou que, enquanto a Mesa de Conciliação segue sem a presença dos povos indígenas, o STF protela o julgamento dos embargos de declaração do Tema 1031, onde o marco temporal já foi derrotado.
“É necessário convencer o Supremo, primeiro, a declarar inconstitucional a Lei 14.701; segundo, que o presidente Barroso conclua o julgamento do Tema 1031. O ministro Fachin, relator, já disponibilizou o processo para inclusão na pauta e pediu preferência ao ministro Barroso. Falta uma decisão política do presidente do STF para pautar os embargos de declaração no Tema 1031”, ressaltou a advogada.
“Lá será o espaço legítimo, onde vai ter onze ministros e todos os advogados aqui para fazer a disputa processual. Não numa Câmara de Conciliação sem os povos indígenas e atravessada pelos interesses mais obscuros”, salientou Paloma.
“É preciso união, como na PEC 215, como no Parecer 001/2017, como no caso de repercussão geral do marco temporal. Agora, nesse caso da conciliação, é preciso se mostrar forte e unido, para a gente ganhar mais uma”, destacou o advogado Maurício Guetta.