22 Fevereiro 2025
Texto de mesa formada por Gilmar Mendes enfraquece entendimento da própria Corte e ameaça fundamentos estabelecidos pela Constituição Cidadã de 1988; minuta vai para plenário.
A reportagem é publicada por ClimaInfo, 21-02-2025.
Uma “mesa de conciliação” formada pelo ministro do STF Gilmar Mendes em 2024, para tratar da infame lei do marco temporal (14.701/2023), apresentou nesta semana uma minuta de projeto de lei que piora o que já era muito ruim, fragilizando direitos constitucionais indígenas. A mesa surgiu na esteira da aprovação da lei pelo Congresso Nacional logo após a mesma Corte declarar a tal tese inconstitucional.
Há vários absurdos no texto que irá ao plenário do STF e que, caso aprovado, seguirá para o Congresso Nacional, como a liberação da mineração em Terras Indígenas e a flexibilização da consulta livre, prévia e informada, o que permitiria que projetos sigam mesmo que as populações afetadas discordem deles, explica ((o))eco. O risco é imenso especialmente se a atividade for considerada estratégica pelo governo e o Congresso Nacional, seja ela mineração, obras de infraestrutura como rodovias, ferrovias e hidrelétricas, e quaisquer outros empreendimentos, informa a Folha.
A proposta surpreendeu o Poder Executivo, em especial a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Ministério dos Povos Indígenas, que participam da mesa. “Essa questão de mineração é algo que precisa de debate bastante aprofundado, inclusive em questões técnicas, que escapam completamente à seara jurídica”, declarou Eliana Torelli, representante da PGR. Já o MPI disse em nota que se coloca contrário à inclusão do tema na proposta, “cujo conteúdo não resultou de construção conjunta”.
Segundo o InfoAmazonia, o artigo da mineração foi baseado em uma sugestão do advogado Luís Inácio Lucena Adams, representante do Partido Progressista (PP) na “conciliação”. O mesmo Adams advoga para a mineradora Potássio do Brasil, que é detentora de um projeto aprovado para a instalação de uma mina sobre um território reivindicado pelo Povo Mura, no município de Autazes, no Amazonas.
O professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes, em artigo na Folha, destaca que “nos bastidores se viu ministro do STF em eventos patrocinados, por exemplo, pelo Ibram, o instituto da mineração. Advocacia lobista circulando”.
A minuta traz outros retrocessos, como um mecanismo que pode inviabilizar a destinação a indígenas de terras demarcadas que estejam ocupadas por não indígenas desde antes da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
O texto prevê que, mesmo demarcadas, as terras só poderão ser desocupadas após pagamento de indenização pelas benfeitorias. Pior: indo além do que previa a lei do marco temporal aprovada pelo Congresso, acrescenta uma indenização pela terra nua – ou seja, o próprio terreno –, que só não ocorreria em áreas ocupadas após a data de promulgação da Constituição. Caso a proposta seja aprovada, a conta das indenizações por desocupações aumentará bastante e será paga pelo governo federal – ou melhor, pela população brasileira.
E tem mais: o ocupante da TI já demarcada receberia uma proposta de indenização da União, a qual poderia recusar, e seguir em negociação sobre o valor. Até que houvesse o pagamento, ele poderia ficar na terra mesmo que demarcada.
Para Maurício Terena, coordenador jurídico da APIB, as propostas contidas na minuta reescrevem “o ‘Capítulo dos Índios’ da Constituição Federal”: “Essa iniciativa do ministro Gilmar Mendes pode entrar para a história como uma das mais violentas no que diz respeito à luta pelos Direitos Indígenas no Brasil.”
O colunista da Folha Conrado Hübner Mendes também destaca que o ministro anunciou “conciliação”, mas entregou coerção. “O erro estava na ideia, na instauração, na arquitetura, na condução, nos bastidores da promiscuidade. Está no produto final. Na ideia porque o conceito de direitos fundamentais não se sujeita a conciliação e serve basicamente para uma coisa: impedir transação ou venda da sua dignidade e liberdade. Na instauração porque não há norma que dê institucionalidade à câmara [mesa]. Na arquitetura porque forjou sub-representação de indígenas, convidados a sentar à mesa com atores que lutam pela extinção de Terra indígena. Na condução pela violência simbólica e grosseria verbal no tratamento.”
Carta Capital, CNN, Jota e ISA também repercutiram a proposta da mesa de “conciliação” do ministro Gilmar Mendes.