No entardecer dos tempos perigosos, emergem os homens sombrios

Arte: Mateus Dias | IHU

Por: Cristina Guerini | 31 Março 2025

“O velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. A frase de Gramsci (traduzida de diferentes formas para português) dá o tom dos nossos tempos. Nesse entardecer, surgem homens sombrios que tomam o poder em uma espiral que parece nos levar à escuridão. As luzes que emergem nessas sombras são poucas, mas irradiam esperança, mesmo nos momentos mais turbulentos, a exemplo do Papa Francisco. Enquanto o mundo enfrenta seu crepúsculo, a crise climática não arrefece. À vista, mais uma rodada de discussões na COP30, ainda que soterrados pelo lobby dos combustíveis fósseis. Essas e outras notícias nos Destaques da Semana do IHU

Confira os destaques na versão em áudio.

Homens sombrios

Putin, Netanyahu, Milei, Erdogan, Orbán, Elon Musk, Bukele, mas especialmente Donald Trump, são sintomas desse mundo “indecente” que vivemos. São tempos que culminaram na presença de homens sombrios, em que “já é possível dizer que a barbárie bate à nossa porta, independentemente da região em se viva. As ameaças que o presidente estadunidense desfia não levam em consideração país, continente ou aliados (basta ver as ameaças contra o Canadá e a Groenlândia)", aponta André Márcio Neves Soares no texto Homens sombrios em tempos indecentes. A presença de Trump, sinaliza o pensador Massimo Recalcati, é a “evaporação da política que ocorreu nas últimas décadas e deixou às suas costas um deserto cultural que assim acaba sendo saturado pela dimensão carismática e hiperativa da nova liderança, que não se baseia em um programa político, mas na promessa nacionalista de restaurar a glória perdida. Esse é o ponto de maior convergência de Trump com Putin”.

Bode expiatório

O drama humano das migrações bateu novo recorde no número de mortos: em 2024, 8.938 pessoas morreram nas rotas de migração. Uma tragédia que agora é acompanhada pelas deportações ao arrepio da lei nos Estados Unidos e o envio de migrantes para o cárcere em El Salvador. A extradição dos migrantes para a prisão de Bukele é uma nova modalidade de tráfico humano, classificou a nota da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Para o sociólogo holandês Hein de Haas, transformar os imigrantes em bodes expiatórios, como propõem os discursos radicais pelo mundo, desvia a atenção da busca por soluções reais para problemas reais. E quando pensamos que as medidas acabaram, o presidente americano lança dois novos ataques: a retirada dos advogados de quase 30 mil crianças migrantes para acelerar sua deportação e o fim da “liberdade condicional humanitária", uma autorização de imigração que permitiu a aproximadamente 532 mil migrantes cubanos, haitianos, nicaraguenses e venezuelanos residência temporária. Em meio às deportações, as prisões dos migrantes legais que se opõem às medidas autoritárias de Trump prosseguem. Algumas igrejas santuário resistem às pressões.

50 mil mortos depois...

... a paz é uma miragem. Em Gaza: 540 dias de holocausto, de genocídio, de limpeza étnica, de um longo processo de desumanização. Mais de 50 mil palestinos mortos, em sua maioria, mulheres e crianças. Assim, o Estado de Israel segue dizimando a população da Faixa de Gaza, ao mesmo tempo que cria uma agência para expulsar o povo palestino. Em uma longa e densa entrevista essa semana, a professora Silvia Ferabolli analisou o drama palestino. “A situação do povo palestino representa uma das maiores tragédias morais e políticas da era contemporânea, revelando o fracasso coletivo da comunidade internacional – e, em especial, das nações árabes – em assegurar a autodeterminação de um povo submetido a décadas de ocupação e violência”, assinala.

Segundo a pesquisadora em relações internacionais, o vídeo de Trump, publicado há alguns dias, mostrando seu projeto para a “Riviera de Gaza”, “revela uma lógica profundamente colonial: apaga a história, o sofrimento e a resistência de um povo, reduzindo um território devastado a um potencial ativo econômico. Do ponto de vista pós-colonial, essa atitude reatualiza a fantasia de dominação e reordenamento dos espaços do Sul Global segundo os desejos e interesses do Norte. É uma tentativa de reescrever a realidade por meio da tecnologia e da propaganda, despolitizando a ocupação e desumanizando os palestinos”.

No horror do colonialismo, um brasileiro de 17 anos foi assassinado na prisão de Bibi e o vencedor do Oscar, Hamdan Ballal, foi preso após ele ser linchado por colonos. 

Cenário internacional

No Sudão do Sul, uma guerra civil, iniciada nas décadas de marginalização social e econômica, hoje está acompanhada de uma crise humanitária e da escalada de violência, ressaltou a pesquisadora portuguesa Daniela Nascimento. Na Europa, o modo de guerra está ligado no turbo. O pacifismo foi abandonado. Na América, as ameaças e as medidas de Trump continuam elevando a tensão. O mandatário voltou a defender a anexação da Groenlândia e elevou as tarifas para os veículos fabricados fora dos EUA. O tarifaço deve aumentar nos próximos dias, promete ele. Em contrapartida, Brasil e Alemanha já acenam para criar uma política de reciprocidade.

O que não passou desapercebido essa semana também foi o vazamento dos planos secretos da Casa Branca para um jornalista. O amadorismo seria um método de governo? Para José Luís Fiori, “Donald Trump está se propondo refazer sua primazia através de uma nova mudança radical de sua estratégica internacional, combinando doses altíssimas de destruição, com algumas propostas disruptivas e inovadoras no campo geopolítico e econômico, partindo de uma posição de força e sem pretensões éticas ou missionárias, e orientando-se apenas pela bússola dos seus interesses nacionais”.

Banco dos réus

No país dos golpes, decisão histórica do STF colocou no banco dos réus o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete aliados, entre eles, quatro militares de alta patente, por atentarem contra a democracia. A presença de parentes de vítimas da ditadura militar no plenário, como Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel, e Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, simbolizaram um "não à anistia". Fazendo referência ao processo que anistiou os culpados pelas atrocidades da ditadura militar, Hildegard declarou: “Estamos aqui para que não se repita a anistia perversa de 1979”. Após a deliberação do Supremo, rapidamente o parlamento brasileiro se alvoroçou e o PL, maior bancada da Câmara, ameaçou paralisar os trabalhos no Congresso enquanto o famigerado projeto de anistia não fosse votado. O presidente da casa, Hugo Motta, descartou a possibilidade e marcou uma reunião com os partidos do Centrão. Em uma efetiva paralisação, quem vai arcar com as consequências, mais uma vez, é a população mais pobre, que depende das decisões do Estado para garantir seus direitos. Resta saber quais parlamentares vão se arriscar nessa aventura de apoio à golpista um ano antes das próximas eleições. 

Crise climática

O recuo acentuado das geleiras pelo quinto ano consecutivo, que deve afetar 2/3 da agricultura irrigada e a disponibilidade de alimentos, é mais um dado irrefutável de que o colapso climático está acontecendo, a despeito do negacionismo que impera na maior potência do mundo. Com o Brasil pressionado por conta da realização da COP30 por uma nova política do clima, a Petrobras e o governo continuam insistindo no petróleo da Foz do Amazonas. O InfoAmazonia desconstruiu a frase usada para defender a exploração de petróleo na região. A pesquisa afirma que não há dependência brasileira do petróleo amazonense. O cacique Raoni pretende se manifestar sobre o assunto com Lula. Ainda falando em espoliação do meio ambiente, pesquisadores afirmaram que a exploração de águas subterrâneas afeta a dinâmica climática e põe em risco a segurança hídrica dos brasileiros. Além disso, a negligência do governo gaúcho com a proteção ambiental também foi discutida.

Resgatar a utopia

Diante aos desafios que o mundo nos coloca, o jornalista espanhol Paco Cano faz uma proposta a partir do pensamento de Pepe Mujica e da lucidez do Papa Francisco. Para ele, é hora de “aceitar nossa pluralidade esquerdista significa aceitar batalhas, comportamentos e conhecimentos que nos são estranhos, mas que não são menos valiosos por isso. Não é necessário compartilhar todas as convicções, estratégias ou táticas daqueles que compõem o 'nós', basta assumi-las e somar-lhes. Agora, mais do que nunca, devemos aprender a existir no plural, aceitando o circunstancial, o diverso e também o impuro. Podem me chamar de ingênuo, poeta ou cantor e compositor”. 

Presença da morte

De volta à Santa Marta, Papa Francisco, mais uma vez, é um farol para o mundo em guerra. Sua proximidade com a morte, relatada em detalhes por seu médico em entrevista, mostra não apenas a fragilidade da vida, mas que mesmo que nossa história esteja arruinada, com esperança podemos recomeçar. Desse momento de dificuldade, o teólogo Vito Mancuso levanta uma discussão que nos convoca a pensar no desafio da morte. “Do processo cósmico que nos gerou e que inevitavelmente nos levará à degeneração é um inimigo ou um aliado da nossa vida? Considerá-lo aliado significa aceitá-lo como ele é, incluindo a presença da morte, e isso, em minha opinião, é uma adesão madura à vida”, coloca. Para Mancuso, não há uma relação entre a angústia da morte e a fé. “A rendição confiante ao processo cósmico independe da crença ou não em Deus, e diz respeito àqueles que outrora se denominavam de ‘homens de boa vontade’”, aponta o professor.

Esperança que não ilude

A pregação de Francisco em torno da esperança, diante o mundo colapsado, “não nega a irredutível presença do mal, a tentação da violência e a loucura do desejo de poder sem limites, mas recusa olhar o homem, a humanidade, como irremediável prisioneiro do mal, pois sabe que não é esse o seu destino. Pelo contrário, sabe que em quaisquer circunstâncias, no pior momento que a bestialidade humana pode impor a outros, haverá sempre homens e mulheres – sobretudo mulheres – capazes de gestos de amor, capazes de preservarem a sua liberdade e integridade interiores, de perseverarem na luta contra a sujeição e a escravidão, preferindo a luz à submissão às trevas”, argumenta o jornalista Jorge Wemans. E se a esperança nos ensina a desafiar o mundo sombrio, Guillaume Le Blanc retoma a alegria do pensamento de Baruch Spinoza para que possamos aprender a nos afastar das paixões tristes.

Em tempo: memória

Na próxima semana, o Brasil fará memória ao aniversário de 61 anos do golpe de estado que culminou em 21 anos de uma ditadura civil-militar que matou, torturou, perseguiu e cerceou os direitos no país. Esse ano, o filme Ainda Estou Aqui é mais uma forma de lembrarmos os anos de chumbo. O IHU, desde o início, faz questão de colocar esse tema sempre em pauta, porque é nosso dever lembrar o passado, jamais esquecer, para nunca se repetir. Antes mesmo da data, deixamos aqui alguns materiais para olharmos para este passado nebuloso, almejando um futuro com garantia plena ao exercício da democracia, ancorado na justiça socioambiental.

Desejamos uma boa semana a todas e todos!