28 Março 2025
"Depois de dois meses do governo Trump, já possível dizer que a barbárie bate à nossa porta, independentemente da região em se viva. As ameaças que o presidente estadunidense desfia não levam em consideração país, continente ou aliados (basta ver as ameaças contra o Canadá e a Groelândia)", escreve André Márcio Neves Soares, doutorando em Política Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL/BA.
Quem tem alguma familiarização com a obra de Hannah Arendt deve conhecer um pequeno livro, que ela escreveu uma década depois da Segunda Guerra Mundial, intitulado “Men in the dark times” (Homens em tempos sombrios). (1) Nesse livro Arendt selecionou dez pessoas que ela considera relevantes para mostrar como as vidas delas foram significativamente afetadas pelo tempo histórico da primeira metade século XX, com todas as mazelas políticas e morais decorrentes. A expressão “tempos sombrios” no respectivo título remete ao poema de Bertold Brecht, “À posteridade”, que denunciou os desastres que irromperam no referido período, os quais Arendt afirmou não serem visíveis a todos ou, melhor, que não eram passíveis de compreensão.
O “sistema/establishment” do mundo de então não foi capaz de iluminar todos os assuntos dos homens de maneira honesta, deixando-se influenciar pelo que ela, Arendt, chamou de “sombras em que se extinguem fossos de credibilidade” e “governos invisíveis” que degradam a verdade sob o manto de uma banalidade sem sentido, o que não era fato novo. Ela lembrou que Sartre e Heidegger, nos seus respectivos livros “A náusea” e “O ser e o tempo”, já haviam provocado mal-estar em um mundo opaco e em um futuro sem sentido. Os “tempos sombrios” de Arendt nada têm de raridade. Ao contrário, em muitos momentos da história do homem as sombras aparecem quando a luz dos atos e palavras verdadeiras se extingue, por força de discursos que varrem para debaixo do tapete todos os crimes e catástrofes, sob o pretexto de sustentar antigas verdades.
É precisamente aqui que começa nosso breve texto.
Depois de dois meses do governo Trump, já possível dizer que a barbárie bate à nossa porta, independentemente da região em se viva. As ameaças que o presidente estadunidense desfia não levam em consideração país, continente ou aliados (basta ver as ameaças contra o Canadá e a Groelândia). Como um jogador de pôquer acostumado a rodadas de milhões, Trump aposta tudo no que mais sabe fazer: ameaçar, intimidar, chantagear. Não vou aqui desperdiçar o tempo dos leitores repetindo tudo que o já foi dito sobre ele desde 20/01/2025, quando tomou posse. Prefiro olhar um pouco mais para frente e levantar uma questão ainda pouco falada, e que suspeito estar nas entrelinhas de cada um dos que tentam responder a tempos tão indecentes, a saber, o que acontecerá quando chegar a hora de Trump sair do governo. Será que alguém imagina que ele sairá de cena tranquilo e aliviado de um cenário político que ele vem moldando à sua imagem e semelhança?
Entendo que existem dois cenários possíveis após o final do mandato de Trump. O primeiro seria aquele em que Trump conseguiu realizar todas as mudanças de ordem “necropolítica” no mundo e, mesmo contrariado, aceitará sair sob pressão da sociedade americana, assim também de muitos dos seus pares do Partido Republicano, que não concordam com sua forma errática de governar, mas desejam o poder para eles. Penso que essa opção é a menos provável, embora o estrago que Trump vem fazendo no velho status quo mundial nas últimas semanas aponte que tempos indecentes realmente chegaram.
O segundo cenário seria de caos histórico, se Trump novamente se recusasse a sair do poder pela via pacífica. Histórico porque nunca houve um ditador nos Estados Unidos, não obstante toda a mentalidade bélica por trás da construção daquela nação. Caos porque regrediríamos ao Império Romano, na medida em que, desde que saímos da antiguidade, nenhuma potência predominante mundialmente se legitimou no poder através de uma ditadura. É verdade que tivemos inúmeros países se alternando como principal potência do mundo, mas desde que Roma caiu, nenhum deles foi capitaneado por um tirano. Mesmo o grande Império Britânico do século XIX era parlamentar e, portanto, sujeito aos sabores políticos, econômicos e sociais da sua sociedade. Pode parecer distópico, mas acredito que esse cenário é menos improvável hoje, do que o primeiro.
Evidentemente, essas hipóteses podem ser contestadas assertivamente por alguns sob fundamentos diversos: de que hoje a China já é mais poderosa economicamente do que os Estados Unidos; de que, para tal desidério, Trump vai precisar de asseclas que reforcem sua ditadura mundial, a exemplo de Putin, Netanyahu, Milei, Erdogan, Meloni, Órban, Elon Musk, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos etc. (daí o título desse texto estar no plural); além do que a sociedade americana nunca vivenciou uma ditadura.
De fato, todas essas contestações são válidas. Deixe-me apenas rebatê-las com os argumentos que hoje possuo.
Com relação à primeira, é fato que a China já é a maior potência econômica do planeta. Contudo, esse poderio econômico ainda não se traduziu em termos de maior poder militar. Ora, quem conhece um pouco da história desse país milenar sabe que a China nunca foi afeita a grandes movimentos imperialistas. Inclusive, ela tem problemas internos demais, para se arvorar a uma grande guerra mundial pelo poder totalitário. De fato, os movimentos chineses não apontam para uma tentativa de dominar o mundo pela força, pelo menos enquanto esse poder não estiver consagrado pelas vias econômicas e culturais. E essa briga com os Estados Unidos ainda está longe de acabar. O pragmatismo chinês sabe que afrontar abertamente o domínio americano agora pode ser ruim para todos.
A segunda objeção é mais complicada. É verdade que o mundo deu uma guinada para a direita, quiçá extrema-direita, em muitos países. Hoje Trump reúne um grupo de governantes que adoraria ver o “circo pegar fogo”, numa sua eventual tentativa de desidratar as instituições representativas para assumir o poder de forma ditatorial. Na verdade, ele já tem feito isso, por exemplo, por meio da queda de braço com o judiciário estadunidense. As deportações ao arrepio da lei são uma clara afronta ao Estado de Direito americano. Essa iniciativa cancela também as instituições sociais que procuram minimizar os efeitos neoliberais dentro do próprio país. A questão é que resta ainda um longo tempo de mandato e a última pesquisa de opinião foi negativa para Trump. Ademais, muitos desses citados governantes podem vir a mudar a sua inclinação política e Trump não ter mais a mesma quantidade de candidatos a ditadores como agora. Nesse sentido, essa segunda objeção é a menos distinguível no momento.
A terceira objeção seria a contestação do governo Trump pela própria sociedade americana. Nessa toada, ainda que seja possível torcer para que Trump cometa as mesmas burrices do seu primeiro mandato – a exemplo da sua postura em relação à pandemia e ao assassinato de George Floyd –, não acredito que ele incorrerá no mesmo erro duas vezes. Trump pode ser tudo, menos burro. Outrossim, ele teria que ser muito azarado para acontecer uma nova pandemia em seu governo ou coisa que o valha. Parece mais evidente que, à medida que o progresso tecnológico avança em espiral, com novas capacidades de prazer individual a curtíssimo prazo, bem como a dispensa de mais trabalhadores que outrora foram indispensáveis para a acumulação de capital (não estou entrando no mérito da mais-valia marxiana), a tendência para o aumento do sentimento nacionalista nos Estados Unidos e nos outros países do planeta desvela um cenário preocupante de forte xenofobia. Nesse ponto, não acredito que Trump será freado por intenções mais humanistas da sociedade americana, salvo uma grande pisada na bola.
Por conseguinte, apesar de ser ainda muito cedo, é preciso olhar para frente e delinear uma estratégia democrática para evitar o pior dos cenários, qual seja, a tomada do poder de maneira definitiva pelo grupo trumpista (se bem que em se tratando de história nada é definitivo). As conversas entre Trump e Putin, sobre a divisão do butim da guerra entre Rússia e Ucrânia, e a política de extermínio palestino deflagrada por Netanyahu, com apoio incondicional da Casa Branca, denotam uma ação explícita para a futura divisão do mundo entre ditadores mal disfarçados.
Por outro lado, as manifestações públicas contra o status quo nas universidades dos Estados Unidos, as passeatas contra o genocídio palestino em vários países do planeta e até os protestos de ruas na Argentina e na Sérvia demonstram que a capacidade orgânica do povo de se indignar perante a indecência das novas elites, como por exemplo os bilionários das Bigh Techs, é resiliente, como prova a ascensão de novos e velhos líderes mais democráticos, como a presidenta do México, Claudia Sheinbaum, o presidente do Irã, Ebrahim Raisi, o presidente do Uruguai, Yamandú Orsi, e até o retorno do presidente Lula, em 2023.
Em 1795, o filósofo alemão Immanuel Kant escreveu um opúsculo intitulado “À Paz Perpétua”, onde, à guisa de tentar estabelecer as condições ideias para que o mundo entrasse numa era auspiciosa de paz permanente, estabeleceu os três princípios definitivos que, se aplicados, poderiam levar a humanidade para longe do estado de natureza. São eles:
1) A constituição civil de todo Estado deve ser republicana;
2) O direito das gentes deve ser fundado em um federalismo de estados livres;
3) O direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal. (2)
A utopia de Kant foi acreditar numa sociedade global em permanente condição de paz baseada na razão. Ainda que em parte ela tenha acontecido após a Segunda Guerra Mundial - afinal já são decorridos 80 anos sem uma nova guerra mundial -, a verdade é que a Liga das Nações durou poucos anos entre as duas guerras mundiais, e a sua substituta, a ONU, claudica atualmente com o desaparelhamento promovido pelo governo Trump (a mais nova informação desta semana dá conta do movimento da base de Trump de tentar convencê-lo a sair da principal instituição internacional).
Apesar da razão kantiana ser republicana e não democrática, apesar da sua visão cosmopolita abarcar um Estado universal que, muito facilmente, poderia desembocar na coerção de uma instituição totalitária mais ampla (o tal do Big Brother de George Orwell), e apesar de uma clara visão contra a colonização e o imperialismo europeu, ainda que ele reconheça a globalização da política, esta formulação de Kant para a paz duradoura entre os povos, escrita há mais de duzentos anos, ainda é bem melhor do que os arranjos políticos que ora se apresentam no cenário global.
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Petrópolis: Vozes, 2020.