15 Junho 2024
O artigo é de Joachim Negel, professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Friburgo, publicado por Religión Digital, 09-06-2023.
Queridos membros da Faculdade de Teologia, queridos amigos:
Para alguns, ele é, de acordo com seu nome de batismo, um verdadeiro Gottseibeiuns (apelido alemão para o diabo, o "que Deus esteja conosco") que soou a campainha de morte para todo conhecimento de Deus; para outros, é o gigante da mente a quem a razão humana deve o conhecimento de si mesma. Trata-se de Immanuel Kant (1724-1804), cujo tricentenário está sendo celebrado pelo público nestes dias e semanas.
Seu colega judeu Moses Mendelsohn (1729-1786) o chamou de "triturador de tudo", porque Kant havia demonstrado a inanidade das provas clássicas da existência de Deus; o poeta-dramaturgo Heinrich von Kleist (1777-1811), o "obstaculizador de todo conhecimento da verdade", porque Kant havia demonstrado que o homem, em seus atos de conhecimento, não reconstrói o mundo, mas o constitui; o "grande chinês de Königsberg" e "cristão tortuoso no fim das contas", segundo Friedrich Nietzsche (1844-1900), porque, apesar de suas críticas às vezes acerbas à religião, Kant manteve até o fim de sua vida um "profundo respeito pelo Criador de todas as coisas"[1], como atesta particularmente a frase final da Crítica da razão prática, que ainda hoje adorna a lápide de Kant na catedral de Königsberg (Kaliningrado): "Duas coisas enchem a mente de uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes, à medida que a reflexão se ocupa delas mais frequentemente e mais permanentemente: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim"[2].
Qualquer pessoa que se interesse minimamente pela situação intelectual do homem não pode ignorar Kant. Por isso, a teologia não pode evitar um confronto com ele. Afinal de contas, o próprio Kant examinou várias vezes a teologia, a primeira das três faculdades universitárias clássicas. O que poderia, e deveria, a teologia aprender com ele?
Sabemos que a obra de Kant pode ser resumida em três grandes perguntas:
(1) O que posso saber?
(2) O que devo fazer?
(3) O que posso esperar?
Enquanto a primeira pergunta pretende determinar com a maior precisão possível o alcance da faculdade humana de conhecer, a segunda se refere à vocação ética do homem para agir corretamente. Kant está convencido de que a dignidade do homem reside em sua capacidade de fazer o bem pelo bem; precisamente nisso se realiza sua liberdade, que implica sempre o respeito à liberdade dos outros: "Age sempre de tal modo que a máxima de tua ação seja a máxima da legislação universal".
A base dessa ideia, conhecida como "imperativo categórico" (isto é, um mandamento incondicional, válido em todo tempo e lugar, independentemente da língua ou cultura), é a convicção de que o mundo tem um fundamento moral. Certamente, o homem se dá a si mesmo o mandamento de agir conforme a ele e, nessa medida, é ao mesmo tempo legislador, acusador, defensor e juiz em sua consciência[4]; no entanto, esse "tribunal interior" se refere precisamente a uma "originalidade" de toda moral à qual o homem se sente chamado. Nesse sentido, em toda autonomia moral intervém um momento heterônomo[5]: embora eu me determine a agir de modo bom, estou precisamente chamado a fazê-lo como o que me é próprio, porque se eu não agisse segundo essa máxima, estaria me contradizendo.
Podemos ver até que ponto o pensamento de Kant se inscreve em uma tradição que vai desde a Bíblia e a filosofia antiga (Platão, Aristóteles, Epicuro e os Estoicos) até a Escolástica e além.
No entanto, há uma ruptura na qual Kant está trabalhando, e não deve ser subestimada. Com o progresso das ciências naturais em sua época, não apenas se rompe o pensamento cosmológico dos Antigos e sua referência ao todo (à natureza e à história, à unidade do bom e do belo), mas também se tornam questionáveis as grandes concepções metafísicas da época moderna: os conceitos de uma mathesis universalis (Leibniz), da inteligibilidade do mundo (Spinoza) ou da suposta autoevidência do cogito como substância que se pensa a si mesma (Descartes).
Kant leva em conta essa ruptura concedendo às ideias de unidade do mundo e de constância do eu o status de "ideias reguladoras", nada mais. A filosofia kantiana situa-se assim sob o signo de um grande "como se"[6]. Não sabemos se um "eu" subjaz às minhas autopredicações; temos que postular sua constância ao longo do tempo se quisermos pensar coerentemente sobre o eu e o mundo (e, portanto, sobre a capacidade de conhecimento do homem e sua responsabilidade por seus atos).
O mesmo pode ser dito das grandes ideias metafísicas da liberdade da vontade, da imortalidade da alma e da existência de Deus. Também neste caso, nenhuma dessas três ideias pode ser demonstrada no sentido estrito do termo, e no entanto devem ser consideradas como "postulados da razão prática", sem os quais o conhecimento e a ação do homem ficariam em suspenso. Pois sem um eu consistente, não pode haver conhecimento válido; sem liberdade da vontade, não pode haver ação atribuível à responsabilidade; e sem os postulados da imortalidade da alma e da existência de Deus, não pode haver ética substancial[7]. Mas como?
Kant conhece melhor do que ninguém a aporia da ética, ou seja, que podemos perecer fazendo o bem. O escândalo clamoroso de que haja pessoas que, por suas boas ações, caiam na angústia e na miséria, enquanto vilões e canalhas passam sua vida na prosperidade e na paz, exige um Deus que, além de toda finitude, proporcione uma compensação. Caso contrário, não apenas o mandato categórico de agir bem correria o risco de ir contra a legítima aspiração do homem à felicidade, mas também seria impossível considerar razoável um mundo em que a ação boa contradissesse sua própria moral e moralidade.
E assim, a segunda das perguntas orientadoras, "O que devo fazer?", engendra uma terceira: "O que posso esperar?" Essa pergunta é decididamente religiosa, mas também se coloca "dentro dos limites da simples razão"[8]. O importante dessa pergunta é a nova modalidade: em vez de posso ou devo, temos direito a. Segundo Kant, não há obrigação de esperar um mundo em que as pessoas moralmente boas sejam mais felizes. Mas faz sentido esperar um mundo assim, da mesma forma que temos direito a supor que o mundo é razoável.
Porque, de outra forma, o dever de fazer não só iria contradizer a legítima necessidade de bem-estar humano[9], mas também e sobretudo o "mérito da felicidade"[10] daqueles cujo testemunho de vida nos anima a levar uma vida moralmente boa. (Poderíamos nos conformar seriamente com o fato de que não haja esperança para um Paul Grüninger[11] ou um Carl Lutz[12]? Ou que sobre os irmãos Scholl ou um Alexander Navalny triunfem seus assassinos?.) Em nenhum momento Kant afirma que Deus e a imortalidade da alma existem; apenas diz que devem existir se não quisermos que este mundo seja em última análise simplesmente absurdo.
Se observarmos o contexto aqui esboçado, fica claro que nada mais distante da realidade do que dizer que "segundo Kant" já não podemos acreditar em Deus. Ao contrário, o próprio Kant afirma que teve que "suprimir o conhecimento para deixar espaço à fé"[13]. Resta saber se essa fé cumpre suas promessas, mas em qualquer caso é uma fé que se diferencia da mera opinião ou crença em que é razoavelmente considerada. Como expressão de uma compreensão do mundo interior da razão, essa crença dá testemunho de um novo tipo de metafísica, da qual nenhuma filosofia (por mais esclarecida que se creia) pode prescindir. Por outro lado, falar de "pensamento pós-metafísico"[14], na medida em que reivindica um valor filosófico, é uma contradictio in adjecto. Mesmo a negação cética das três grandes ideias "Deus", "alma" e "liberdade", se não quiser se tornar absurda, reivindica uma pretensão decididamente metafísica, mas apenas naturalista ou ateia.
Isso nos leva a outra noção fundamental. Ela se expressa na pergunta que Kant já não formulou explicitamente, mas que resume seu questionamento da crítica do conhecimento ("O que posso saber?"), da ética ("O que devo fazer?") e da religião ("O que posso esperar?"). Essa quarta e última pergunta é simplesmente: o que é o homem?[15] Como responder a isso?
Como responder? Talvez na forma daquela intuição não ideológica que Kant deve à educação pietista de seus pais, e em particular à sua piedosa mãe (a quem ele lembrou com carinho durante toda a vida). Essa intuição é a seguinte: "Não é possível para o homem ver tão longe em seu próprio coração que possa estar completamente seguro da pureza de sua intenção moral e da honestidade de seus sentimentos, nem mesmo em uma única ação [...]"[16], o que explica por que "não se pode fazer nada completamente reto de uma madeira tão torta como a de que é feito o homem"[17]. Onde quer que o homem dê conta dessa dialética, ele já está implicitamente além dela.
Essa última observação nos leva a uma última pergunta: por que se interessar por Kant além da ocasião de seu tricentenário? O que podemos aprender hoje com ele (além de estudar sua obra, que se situa com razão na tradição das obras de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino)?
Pelo menos três coisas, me parece: em primeiro lugar, o valor de se colocar as grandes perguntas:
De onde eu venho?
Para onde eu vou?
O que acontece com os mortos?
E os que não podem com a vida?
O que acontece comigo mesmo?
Quem sou eu realmente?
Kant fazia essas perguntas. A filosofia acadêmica atual, por outro lado, ignora cada vez mais essas perguntas, porque não podem ser respondidas a partir de uma perspectiva puramente imanente. Ao fazê-lo, o pensamento se encolhe. Ao se tornar cada vez mais insensível às questões últimas, ao fazer com que os enigmas vitais do bem e do mal, da morte e da imortalidade, da alma e de Deus deixem de ser o centro da filosofia contemporânea, a razão se torna apática e entediante. O mal-estar onipresente diante de uma cientificidade não apenas fria, mas também irrelevante do ponto de vista existencial, pode ter algo a ver com isso. A quem ainda interessa o que se ensina em nossas faculdades de filosofia e teologia?
Apesar de sua coragem em abordar as grandes questões, também podemos aprender de Kant uma atitude de modéstia no pensamento. A modéstia de pensamento não é sinônimo de pusilanimidade e desânimo; ao contrário, é a expressão da humildade intelectual e da piedade existencial, como Kant formulou admiravelmente na frase final de sua Crítica da razão prática, já citada: "Duas coisas enchem a mente de uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes, à medida que a reflexão se ocupa delas mais frequentemente e mais duradouramente: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim."[18]
Por último, mas não menos importante, a obra de Kant dá testemunho de uma atitude de pensamento crítico que cada vez encontramos menos em nossas universidades. O objetivo de uma universidade, diz Kant, "não é aprender pensamentos, mas aprender a pensar"[19]. [Em nossas universidades e escolas superiores desfiguradas pela reforma de Bolonha, nas quais a busca por financiamento externo, os sistemas ECTS, a avaliação permanente, as jaulas de módulos e a obsessão pela didatização sufocam cada vez mais a liberdade de estudar, Kant nunca teria podido escrever, e muito menos publicar, sua quase inesgotável Crítica da razão pura; não só o livro nunca teria passado pelo processo de revisão por pares (os colegas de Kant inicialmente o consideraram ilegível), mas o fato de que Kant demorou dez anos concentrando-se exclusivamente neste projeto, deixando-o mudo aos olhos dos que o rodeavam[20], mostra até que ponto já não somos livres para pensar e trabalhar por nós mesmos.
Nesse sentido, é em última análise a atitude de um homem da Ilustração, sempre disposto à autocrítica, que devemos nos inspirar. Qual é, então, a magnífica frase com a qual Kant respondeu à pergunta sobre o que é a Ilustração (Aufklärung)? Ele disse:
"A Aufklärung [Ilustração] permite ao homem sair da imaturidade da qual ele mesmo é responsável. A imaturidade é a incapacidade de utilizar o próprio entendimento sem ser guiado por outros. Esta imaturidade é atribuível não à falta de entendimento, mas à falta de resolução e coragem para utilizá-lo sem a orientação de outro. Sapere aude! Tenha coragem de usar seu próprio entendimento! Esse é o lema da Ilustração"[21].
Essa frase se aplica a todos nós, pertençamos à faculdade que pertencermos, e mais ainda nestes tempos de Bolonha.
[1] Otfried Höffe, Der Weltbürger aus Königsberg. Immanuel Kant heute. Person und Werk, Wiesbaden, Marix Verlag, 2023, p. 46.
[2] Crítica da razão prática, A 289 (solução), em Immanuel Kant, Werke in 10 Bänden, ed. de Wilhelm Weischedel, vol. 6, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1983, p. 300.
[3] Crítica da razão pura, B 833 s. / A 805 s., em ibid, vol. 4, p. 677.
[4] Metafísica dos costumes, A 100 (Parte 2: Doutrina Elementar da Ética, § 13: «Do dever do homem para consigo mesmo como juiz inato de si mesmo»), citado de ibid. em vol. 7, pp. 572-576; aqui: pp. 573 ss.
[5] «O homem está submetido a uma lei que ele mesmo se dá» (ibid., p. 574, nota de rodapé).
[6] Cf. Hans Vaihinger, Die Philosophie des Als-Ob (1876-78), primeira edição Leipzig, Verlag von Felix Meiner, 1911, completada por um segundo volume ibid. 1921.
[7] Crítica da razão prática, A 238-241 (Livro II: Dialética da razão pura prática, segunda parte principal, capítulo VI: «Dos postulados da razão pura prática em geral»), em Immanuel Kant, Werke in 10 Bänden, vol. 6, pp. 264-266.
[8] Este é o título da obra de Kant sobre a religião: A religião dentro dos limites da simples razão [1793/94].
[9] Crítica da razão prática, A 194 (Livro II: Dialética da razão pura prática, primeira parte principal), em ibid, vol. 6, p. 235.
[10] Crítica da razão pura, B 837 / A 809 (Metodologia transcendental, segunda seção: O cânone da razão pura, seção 2: Sobre o ideal do bem soberano), em ibid, vol. 4, p. 679.
[11] Paul Grüninger (1891-1972) salvou a vida de vários centenas de judeus alemães e austríacos emitindo documentos falsos em 1938 e 1939, quando era responsável pela polícia de fronteiras em São Galo. Quando essa prática foi descoberta, Grüninger foi suspenso, condenado a 10 meses de prisão e teve seus direitos de pensão retirados. Foi reabilitado em 1995.
[12] Marc Tribelhorn, Der Judenretter aus Walzenhausen. Als Diplomat in Budapest bewahrte Carl Lutz vor 80 Jahren 60.000 Menschen vor dem Holocaust - die Schweiz dankte es ihm mit Missachtung [O salvador dos judeus de Walzenhausen. Como diplomata em Budapeste, Carl Lutz salvou 60.000 pessoas do Holocausto há 80 anos - a Suíça o agradeceu com desprezo], em: Neue Zürcher Zeitung, ano 245 / No 115, 21 de maio de 2024, p. 9.
[13] Crítica da razão pura, segunda edição, Prefácio, B XXX, em Immanuel Kant, Werke in 10 Bänden , vol. 3, p. 33.
[14] Jürgen Habermas, Nachmetaphysisches Denken. Philosophische Aufsätze [Pensamentos pós-metafísicos: ensaios filosóficos], Frankfurt, Suhrkamp, 19893. - Veja-se a crítica a respeito de Hans-Dieter Mutschler, Ästhetik und Metaphysik. Die abgerissene Verbindung [Estética e Metafísica: A ligação rompida], Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 2023, pp. 153-172.
[15] Veja-se A antropologia do ponto de vista pragmático [1798/1800], em Immanuel Kant, Werke in 10 Bänden, vol. 10, 395 e ss.
[16] Metafísica dos costumes, A 25, em ibid, vol. 7, p. 523.
[17] Idée d'une histoire générale à visée cosmopolite, A 397, em ibid. vol. 9, pp. 31-50;: p. 41.
[18] Veja-se a nota 2.
[19] Nachricht von der Einrichtung seiner Vorlesungen im dem Winterhalbenjahre von 1765-1766 [Nota sobre a organização de suas conferências durante a metade invernal de 1765-1766], A5, em Immanuel Kant, Werke in 10 Bänden, vol. 2, pp. 903-917, p. 908.
[20] Otfried Höffe, Immanuel Kant, Munich, Verlag C.H. Beck, 20005, 32-37.
[21] O que é o Esclarecimento, A 481, em: Immanuel Kant, Werke in 10 Bänden, vol. 9, pp. 51-61, p. 53.
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Joachim Negel: “A obra de Kant dá testemunho de uma atitude de pensamento crítico que cada vez encontramos menos em nossas universidades” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU