24 Março 2025
"Reconhecer que nunca conseguiremos, em definitivo, extirpar o mal nada tem de fatalismo. Apenas implica que o compromisso pessoal e comunitário a favor da paz, da justiça, da fraternidade e da igualdade não tem nem fim nem descanso", escreve Jorge Wemans , 20-03-2025.
Houve um tempo em que pensei ter esta geração “achado graça junto de Deus”. Derrotamos a ditadura, pusemos fim à guerra colonial, demos um enorme salto no acesso à educação e aos cuidados de saúde, ao desporto e à cultura. Os povos do Sul da América Latina libertaram-se das ditaduras militares e centenas de milhões na Europa do Leste puseram termo aos regimes comunistas que os sufocavam. Mas agora as notícias sobre o mau estado do mundo não são seguramente exageradas. Deus nos abandonou?
É verdade que as desigualdades sociais, econômicas e culturais em Portugal não conheceram redução consistente e no mundo mais vasto as guerras de genocídio em África, a sinistra rigidez repressiva do regime comunista chinês, o conflito israel-palestina e a crescente violência quotidiana nas megacidades – para citar apenas algumas tragédias nunca superadas – nunca saíram da ordem do dia. Mas a geração dos trinta gloriosos anos [1945-1975] de crescimento económico europeu sempre pôde alegrar-se com outras realidades que trouxeram luz onde só existia escuridão.
Como é típico dos fenômenos sociais e das tensões internacionais, nem tudo mudou de uma só vez. A degradação democrática tem lugar aos solavancos, com avanços e recuos, mas torna-se progressivamente mais consistente e profunda. Entrámos em pleno reino da lei do mais forte sobrepondo-se à regulação dos conflitos de interesses e a tudo quanto antes regia as relações entre Estados. O genocídio do povo palestino perpetrado pelo Estado de Israel, a conquista de território e o saque de bens e vidas com que a Rússia devasta a Ucrânia e os massacres que vitimam populações indefesas na África oriental são os afloramentos mais sanguinários do reino da lei do mais forte.
Ao mesmo tempo, o paradigma da gestão gananciosa parece impor a execrável busca do maior lucro imediato contra a procura do bem da comunidade. “Money first” – é o verdadeiro lema daqueles que fingem colocar em primeiro lugar o interesse do seu país de modo a terem as mãos livres para tratarem de aumentar os seus lucros à custa de todos os outros.
Enquanto a economia crescia e as democracias se robusteciam, não nos demos conta de que o clima se deteriorava irremediavelmente. Mas a evidência do grito da Terra impôs-se de forma inequívoca. O ano passado ‘conseguimos’ pela primeira vez subir a temperatura média do planeta para além dos 1,5 graus Celsius acima da temperatura média da era pré-industrial (1850-1900). O planeta geme, espécies sem conta desaparecem de vez para nunca mais voltarem a ser parte da vida diversa e vária que durante milhares de anos caracterizou o nosso habitat, mas a humanidade continua a “acelerar em direção ao inferno climático”.
É neste contexto que um homem de 88 anos, enfraquecido e doente, escreve aos católicos do mundo inteiro sobre como viver os 40 dias que os separam da Páscoa (20 de abril) e os convoca a caminhar na “difícil passagem da escravidão para a liberdade, desejada e guiada pelo Senhor, que ama o seu povo e sempre lhe é fiel”. A caminhar não de qualquer maneira senão que juntos, “sem deixar que ninguém fique para trás ou se sinta excluído”. E pôr-se a caminho não de qualquer modo, mas animados com “a esperança de uma promessa”, a “esperança que não engana”, “a esperança que ajuda” cada um e todos “a ler os acontecimentos da história” e a todos “impele a um compromisso com a justiça, a fraternidade, o cuidado da casa comum, garantindo que ninguém seja deixado para trás”.
Prega Francisco a esperança em desespero perante o colapso do mundo que melhor do que ninguém sabe atravessado de injustiças, de fraternidades rompidas e de irrefletida destruição da casa comum? O convite a sermos peregrinos da esperança é apenas uma teimosia de quem, apesar de tudo o que vê, sabe e sente, não quer desistir?
Nem teimosia, nem desespero. Ou melhor, um pouco de salutar teimosia e nenhum desespero. A esperança que anima Francisco e em que ele nos propõe que vivamos não se baseia na convicção de que “vai ficar tudo bem”, de que “o justo será justificado”, ou que “a paz eterna será estabelecida”. Não é convicção certa e segura de que o “homem novo nascerá”, ou que os radiosos “amanhãs que cantam” finalmente encherão toda a terra, pois “apesar de ser necessário um contínuo esforço pelo melhoramento do mundo, o mundo melhor de amanhã não pode ser o conteúdo próprio e suficiente da nossa esperança” cristã. [Spe Salvi n. 30].
A esperança cristã supera, assim, a imagem concreta de “uma terra onde mana leite e mel” prometida ao povo hebreu. Não se alimenta de nos sabermos mais perto dessa terra prometida. Não definha apesar de todos os sinais indicarem estarmos mais longe dela, ou mesmo definitivamente impossibilitados de a vislumbrar.
O que alimenta e mantém a esperança dos cristãos é “o fato de estes terem um futuro: não é que conheçam em detalhe o que os espera, mas sabem em termos gerais que a sua vida não acaba no vazio” [Spe Salvi n. 2] e que o amor de Deus é “a garantia de que existe aquilo que intuímos só vagamente e, contudo, no íntimo esperamos: a vida que é ‘verdadeiramente’ vida”. [Spe Salvi n. 31]
Esta esperança não nega a irredutível presença do mal, a tentação da violência e a loucura do desejo de poder sem limites, mas recusa olhar o homem, a humanidade, como irremediável prisioneiro do mal, pois sabe que não é esse o seu destino. Pelo contrário, sabe que em quaisquer circunstâncias, no pior momento que a bestialidade humana pode impor a outros, haverá sempre homens e mulheres – sobretudo mulheres – capazes de gestos de amor, capazes de preservarem a sua liberdade e integridade interiores, de perseverarem na luta contra a sujeição e a escravidão, preferindo a luz à submissão às trevas.
A certeza de que o mal não aniquilará o bem não implica a convicção no advento do “paraíso terrestre”. Este, definitivamente, não será deste tempo e desta terra, porque a sua existência para todo o sempre negaria a liberdade humana, negaria a possibilidade do homem escolher o mal. De forma lapidar: “Visto que o homem permanece sempre livre e dado que a sua liberdade é também sempre frágil, não existirá jamais neste mundo o reino do bem definitivamente consolidado.” [Spe Salvi n. 24. b)].
Reconhecer que nunca conseguiremos, em definitivo, extirpar o mal nada tem de fatalismo. Apenas implica que o compromisso pessoal e comunitário a favor da paz, da justiça, da fraternidade e da igualdade não tem nem fim nem descanso. E a sua renovação constante encontra ânimo nos gestos concretos de humanidade e na certeza de que somos amados, destinados a um futuro de vida plena, mais do que na alegria dos progressos de percurso.
As citações são da carta encíclica Spe Salvi de Bento XVI, publicada a 30 de novembro de 2007.