Peregrinos da esperança, sim, na luta por direitos. Artigo de Frei Gilvander Moreira

Foto: Reprodução do CNLB com Cartaz do Jubileu de 2025

03 Fevereiro 2025

"O papa Francisco conclama para o engajamento em peregrinação, caminhada, lutas coletivas que geram esperança e estanca o roubo de esperança que a lógica e a estrutura do sistema que idolatra o mercado estão nos impondo", escreve Frei Gilvander Moreira, em artigo enviado diretamente ao Instituto Humanitas Unisinos IHU, 29-01-2025.

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em filosofia pela UFPR; bacharel em teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica – SAB, em Belo Horizonte.

Eis o artigo.

Conforme o cartaz do Jubileu de 2025, proclamado pelo Papa Francisco, o tema do Jubileu é Peregrinos de Esperança, e não Peregrinos da Esperança. “de” e não “da”. Observemos o que nos diz a gramática e, especificamente, a semântica da língua portuguesa nesse caso. A diferença é grande e não está sendo percebida por muitas pessoas e lideranças religiosas que estão escrevendo ou falando sobre o tema do Jubileu.

As expressões “de esperança” e “da esperança” são locuções adjetivas. Entretanto, há uma diferença sutil, mas profunda no seu significado. A expressão “de esperança” corresponde a “esperançosos”. E a palavra “Peregrinos” é substantivo, que é mais forte que o adjetivo, pois o adjetivo apenas qualifica o substantivo. Peregrinos de esperança corresponde a peregrinos esperançosos. Peregrinos de esperança destaca a esperança como qualidade que faz parte dos peregrinos, entranhada na sua existência, como parte do seu caráter e das suas atitudes. Esperança de esperançar, como tão bem nos alertou nosso grande educador Paulo Freire. Se o tema fosse Peregrinos “da” esperança, sendo o “da” contração “de” + “a”, o “a” como artigo definido poderia nos induzir à ideia capenga de que a esperança fosse algo fora de nós a ser buscada.

Logo, em português, do Jubileu 2025

(Foto: Site Jubilee 2025 | Vaticano)

Qual o significado de Peregrinos no tema do Jubileu? Peregrino não se refere apenas a pessoas religiosas se dirigindo a um santuário para cumprir promessas e cultivar sua relação pessoal com Deus, Nossa Senhora ou seu santo/a de devoção. Peregrino/a é toda e qualquer pessoa que peregrina, não se restringe a peregrinos religiosos. O papa Francisco afirma que “Somos todos migrantes. Ninguém tem moradia fixa no planeta Terra”.

Não podemos reduzir a esperança à trituração feita pela teologia dogmática que, ao discorrer sobre “as três virtudes teologais” – fé, esperança e amor -, cindiu o que é inseparável. Com esta cisão indevida abriu-se a imaginação para se ver a fé, o amor e a esperança como entidades, coisas externas a nós às quais devemos agarrar.

Na Bíblia, no livro do profeta Habacuc se diz que “o justo vive(rá) pela fé/fidelidade” (Hab 2,4). A palavra hebraica geralmente traduzida por fé/fidelidade é emuná, que significa ao mesmo tempo “, esperança, amor”, de forma indissociável. Portanto, a melhor tradução de Hac 2,4 é “a pessoa justa vive(rá) pela fé/esperança/amor”. Portanto, não é justo separar fé, amor e esperança como se fossem apenas “três virtudes teologais”, separadas ou justapostas. A esperança exige amor e fé como complementos; são três dimensões de uma mesma realidade.

A esperança não pode ser reduzida a uma questão motivacional de autoajuda como se agarrar ao mote “tenha esperança!”, que tudo dará certo. Isso é discurso de couching (guru) que tenta animar quem está tendo a esperança estilhaçada pela lógica e estrutura do sistema do capital.

Segundo Nuno Cobra Júnior, nos livros O Músculo da Alma e Semente da Vitória, uma das doenças que mais matam na atualidade é o sedentarismo. Ele defende que é pelo movimento muscular que se irriga melhor o sistema circulatório, o que oxigena melhor o cérebro, ativa a memória e é antidoto ao baixo astral, à depressão e gera vida saudável.

Peregrinos/as sempre peregrinam em contextos históricos concretos e específicos. Peregrinar é caminhar, é lutar para se conquistar melhores condições de vida. A história demonstra que, durante a vida, quem peregrina isoladamente caminha para a morte lenta. Os pseudovalores capitalistas insistem pela ideologia dominante a impor caminhada individual, pois os patrões capitalistas sabem que quando os povos caminham coletivamente lutando pelos seus direitos e pelo bem comum, a caminhada se torna subversiva, pois mina os pilares que sustentam o edifício que reproduz, de mil e uma formas, violências sobre 99% da população e da biodiversidade.

Para sermos de fato peregrinos de esperança temos que enfrentar vários obstáculos, tais como o individualismo que a ideologia dominante trombeteia aos quatro ventos; o medo insuflado de forma planejada pela grande imprensa que ecoa os casos de violência segundo a versão da polícia, com a finalidade de deter a caminhada; a vertiginosa evolução tecnológica das big techs, ou gigantes da tecnologia, que estão confundindo o real com o virtual. Muita gente está priorizando as relações virtuais e se individualizando gradativamente, o que tem levado à ansiedade, depressão ou ao suicídio.

Quando somos invadidos pelo medo, a paralisia toma conta de nós e a marcha se torna algo temeroso que deve ser evitado. Na realidade, parar de caminhar/lutar coletivamente por direitos e pelo bem comum é muito mais perigoso, pois mata de inúmeras formas, aos poucos. São muito sábias as narrativas proféticas na Bíblia que exortam centenas de vezes: “Não tenha medo. Coragem!” De fato, o contrário de fé não é ateísmo, é o medo. Quem tem fé tem coragem. Logo, infundir medo nas pessoas é uma estratégia para lhes furtar a fé, a coragem, base para ser peregrino de esperança.

Há vários tipos de peregrinos/as. A humanidade está peregrinando. O planeta Terra peregrina sem parar em muitos movimentos, entre os quais dois se destacam: o de translação ao redor do irmão sol e o de rotação, ao redor de si mesmo. Com estes movimentos a Terra cria as condições biológicas e fisiológicas que reproduzem a vida de todas as espécies. Imagine se a Terra fosse parada e não estivesse em movimento, em peregrinação!?

As populações em movimentos migratórios internamente nos seus países ou externamente indo para outros países peregrinam em movimentos de emigração (saída, êxodo), em busca de condições melhores de vida e de imigração (entrada), muitas vezes driblando muros e barreiras impostas por xenófobos, sionistas ou fascistas como Trump e Netanyahu. É na migração/peregrinação que os povos se constroem. Ir e vir são direitos humanos fundamentais, assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, por vários Tratados Internacionais e pelas Constituições dos países.

Peregrinar implica enfrentar os contextos adversos e injustos. Logo, peregrinar inclui lutar por direitos e pelo bem comum. A luta por direitos e pelo bem comum é a mãe que gera a esperança. Sem luta por direitos a esperança morre aos poucos.

Experimentamos isso nas lutas por terra, território, moradia, por preservação ambiental e por todos os direitos humanos fundamentais e socioambientais. Ocupamos propriedades que não cumprem sua função social em grupos de pessoas unidas, organizadas, irmanadas nas lutas justas e necessárias, com amor no coração, utopia/esperança no olhar, pés firmes na marcha e ecoando lemas tais como “com luta e com fé, as casas ficam de pé!”, “com luta e com garra, a casa sai na marra!”, “Nossos direitos vêm, nossos direitos vêm, se não vem nossos direitos, o Brasil perde também...” direitos são conquistados e as pessoas que participam dessas lutas se enchem de esperança. Por outro lado, quem não luta coletivamente por direitos e pelo bem comum, vai sendo asfixiado paulatinamente e sente a esperança ser sugada até a desesperança se apoderar da pessoa, aniquilando-a.

“A esperança não é a última que morre”, pois a esperança é filha da luta coletiva por direitos e pelo bem comum, que faz parir a esperança. Se a luta coletiva por direitos morre, a esperança morre. Logo, não há esperança sem luta por direitos e pelo bem comum. E o inconformismo, a indignação e a rebeldia constituem o combustível para engrenar as lutas justas e necessárias. Nesse sentido afirma Paulo Freire: “Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a precisão de uma educação da esperança” (Freire, 2009, p. 11).

É na mobilização desencadeada pelas lutas coletivas que os sujeitos da luta pela terra e por todos os outros direitos saem do individualismo, da resignação, do pessimismo e, de cabeça erguida, passam a experimentar que podem transgredir o que o Estado e o capital impõem de forma autoritária e brutal.

Concluindo, “peregrinos de esperança” são quem se desvencilha dos vírus da ideologia dominante e se compromete com lutas por direitos, pelo bem comum, pela democracia. Na Bíblia, o Jubileu é tempo de libertação da Terra, cancelamento das dívidas e libertação de todos

os tipos de escravidão (Cf. Lv 25 e Lucas 4,16-21). Ao falar em “peregrinos de esperança”, Papa Francisco nos convida a ir além do espiritualismo que divide material e espiritual e propõe que pensemos em toda a humanidade e não somente nos companheiros e companheiras de fé.

O papa Francisco conclama para o engajamento em peregrinação, caminhada, lutas coletivas que geram esperança e estanca o roubo de esperança que a lógica e a estrutura do sistema que idolatra o mercado estão nos impondo. No próprio nome da bula que nos convida ao Jubileu, ele nos confirma que “a esperança não nos decepciona, pois o próprio Amor divino foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 16ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

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