27 Agosto 2024
“A alfabetização freireana parte desta constatação: não se deve iniciar pela palavra (o signo) que nada mais é que um desenho estranho para o analfabeto. Ela tem que iniciar justamente pelo significado afetivo da palavra para o educando. Somente assim ele ‘apreende’ a palavra”, escreve Rudá Ricci, sociólogo, com larga experiência em educação e gestão participativa, diretor do Instituto Cultiva.
Paulo Freire é um desses autores que são muito citados, porém, sem grande profundidade. Algo que acontece com James Joyce e sua obra Ulisses: muitos citam, mas poucos leram.
Nesse turbilhão de citações, alguns comentam Freire com ódio, sem nunca ter lido uma linha do que escreveu. Outros, citam frases amorosas como se este fosse o centro de sua lavra.
A confusão começa com o conceito de Educação Popular. Não foi Paulo Freire que o criou. O conceito já aparecia na América Espanhola desde o século XIX. Apareceu em meio à luta pela independência como educação nacional e popular. Educação popular significava educação nacional, a partir da cultura nativa, de indígenas, negros e o povo pobre trabalhador. Símon Rodríguez, mentor de Simón Bolívar, sugeria que a Educação Popular seria o dever do Estado para com a população da nação, se desvencilhando dos modelos europeus. Educação para “formar cidadãos”. O argentino Domingo Faustino Sarmiento citava o termo Educação Popular como “educação comum” para todos os cidadãos, como instrução pública.
O termo evoluiu para uma concepção mais transformadora com organizações populares e sindicais na Argentina, Peru e Bolívia.
Nikolai Severin, que criou colégios populares na Dinamarca, foi uma referência na América Latina neste período. Este criativo dinamarquês propôs a cogestão de colégios e autogestão pedagógica e foi o mote para a constituição de escolas sindicais, círculos de estudo, bibliotecas populares em parte da nossa região.
Severin foi muito importante até mesmo na primeira metade do século XX para a construção das Escolas da Cidadania no sul dos EUA. Myles Horton, educador que trouxe suas concepções para a alfabetização de negros e que impulsionou a luta por direitos civis, foi amigo de Paulo Freire.
Antes de Paulo Freire, Cuba desenvolveu uma enorme campanha de alfabetização, em 1961, que se alinha às teses do educador brasileiro. Lá, a referência foi Ana Echegoyen de Cañizares, estudiosa afro-cubana feminista que o Brasil nem estuda ou cita.
Chegamos à Freire. Depois da experiência exitosa de Angicos (RN) e no exílio no Chile, as teses do brasileiro se chocaram com a concepção de Educação Popular de Marta Harnecker. A chilena adotava uma linha mais tradicional de transferência de saber. Harnecker sustentava que a Educação Popular deveria ser educação política, traduzindo para linguagem simples os conceitos e análise marxista-leninista da sociedade.
Esta é uma importante diferença da teoria de Freire com as visões de educação que sustentavam que o conhecimento viria "de fora" da existência do educando. Paulo Freire contestou esta tese que considerava autoritária e equivocada no livro Pedagogia do Oprimido. Neste mais conhecido livro de Freire, o autor questiona o papel de revolucionários que pensam apenas em si. O ato revolucionário serviria para apenas colocá-lo no poder, elevando seu próprio status. O livro foi escrito no Chile, entre 1964 e 1968.
Aqui aparece um princípio freireano dos mais importantes. A relação educador e educando estaria relacionada com a libertação, contrária à prática de transmissão de conteúdos. O método educativo, portanto, deveria se basear no diálogo, na conversa, provocando os educandos.
A problematização, assim, substitui a mera informação ou transmissão de conhecimento. A dúvida proposta pelo educador leva a rupturas de paradigmas e o diálogo integra saberes (o educador se educa, aprende e reaprende no próprio diálogo com os educandos).
No seu livro Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire destaca que o papel do educador é o de criar a possibilidade de sua construção. Na prática, a sala de aula deixa de ser o espaço da certeza para dar lugar às dúvidas.
Mas, como provocar a dúvida se o método propõe o diálogo? Começando pela curiosidade do educando. Aqui se situa uma das maiores confusões quando se cita Paulo Freire no Brasil: ele se apoiava na fenomenologia.
Para a fenomenologia, o primeiro discurso de alguém sobre algo é dado pela emoção e pelo sensível (olfato, audição, tato etc.). Este seria o "primeiro discurso" sobre o mundo de todos nós. A teoria seria o "segundo discurso", mais reflexivo. Quando entro num ambiente absolutamente inusitado, o impacto se reflete no meu corpo: a pupila se dilata, a respiração se acelera. Meus sentidos procuram captar o maior número de informações para concluir se há algum risco naquele ambiente.
A percepção não é neutra. Ela é influenciada pela minha própria história pessoal e na relação com a sociedade. Minha percepção é sempre cotejada com a de outro sobre o mesmo fenômeno. É assim que assistimos um programa de televisão: comentamos com quem está ao nosso lado.
Assim, a formação da opinião se dá em movimentos circulares (na verdade, elípticos, superando cada momento anterior): eu, comigo mesmo; eu, trocando impressões com os outros; eu, formando uma visão mais racional do mundo. Este deveria ser o movimento do aprendizado.
A alfabetização freireana parte desta constatação: não se deve iniciar pela palavra (o signo) que nada mais é que um desenho estranho para o analfabeto. Ela tem que iniciar justamente pelo significado afetivo da palavra para o educando. Somente assim ele "apreende" a palavra.
O começo da alfabetização é quase um estudo antropológico: o educador ouve o educando, percebe sua existência, seus gostos, seu vocabulário. E é deste estudo que nasce a "palavra geradora": uma palavra que tem muito sentido para o analfabeto e que será o fio da meada.
O fio, portanto, nasce da intenção do educador e da realidade e cultura do educando. É uma interação. É justamente assim que se aprende: nasce de uma curiosidade pessoal que impele à mudança de leitura do mundo. Para Paulo Freire, a educação só tem sentido se promover autonomia.
Autonomia não é liberdade para fazer o que se quer, mas saber se posicionar frente ao coletivo. A tradução livre para autonomia seria "eu defino as normas de conduta" e, assim, administro meu desejo e minhas pulsões. Educação é um processo civilizatório. Pessoa educada sabe se relacionar.
Para terminar este artigo inicial sobre conceitos básicos de Paulo Freire, encaixo o de "Admiração". Trata-se de um exercício de provocação do educando para ele "se ver de fora" e ganhar autonomia. Lembre-se, tudo nasce com a dúvida sobre tudo.
Se eu admiro o mundo eu não o aceito de pronto. O mesmo em relação às minhas escolhas: se eu contemplo o que sou e faço, sou levado a ter maior consciência sobre meu papel e o resultado de minhas escolhas. Para mim, trata-se de um antídoto para a idolatria e o fanatismo.
Assim, na sala de aula, o educador tem que provocar a admiração sobre o mundo e sobre os nossos próprios pensamentos. Parece algo similar à psicanálise. Somente assim me vejo como parte consciente no mundo.
Fico por aqui. Este é um aperitivo para o pensamento de Paulo Freire. Algo muito distinto do que falam sobre ele, não?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Alguns conceitos básicos das teorias de Paulo Freire. Artigo de Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU