08 Junho 2023
Governo Lula cria Grupo de Trabalho, reunindo 14 ministérios, com essa missão. E um desafio, urgente e estrutural: enfrentar a desigualdade sistêmica, patriarcal e racializada, que submete mulheres e meninas. Sem isso, há o risco do resultado ser inócuo.
O artigo é de CFEMEA, publicado por Outras Palavras, 05-06-2023.
O CFEMEA é uma organização feminista antirracista que existe para incomodar, deslocar e transgredir. Fundada em, 1989, por um grupo de mulheres feministas, que assumiram a luta pela regulamentação de novos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988. Em 30 anos de existência, a organização desenvolveu ações de advocacy (promoção e defesa de ideias); articulação e comunicação política; ações de formação e mobilização; controle social das políticas para as mulheres e, mais recentemente a promoção do autocuidado e cuidado entre ativistas. Nosso objetivo é a sustentabilidade do ativismo, sabendo que só assim permaneceremos na luta. Estamos junto às nossas companheiras no front da luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, no enfrentamento aos fundamentalismos e a todas as formas de violência contra as mulheres e na luta contra o racismo.
Cuidar do povo brasileiro, este tem sido um compromisso reiterado do presidente Lula, desde a sua campanha. Não por acaso, foi na solenidade do 8 de Março, no Palácio do Planalto, que ele assinou o decreto de criação de um Grupo de Trabalho Interministerial, [1] composto por 14 ministérios e pela Fenatrad – Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, para definir a Política Nacional de Cuidados. Afinal, a incorporação dessa questão na agenda governamental se dá em resposta às demandas feministas, de militantes revolucionárias [2] e de movimentos sociais, há muito colocadas e agora assumidas também por organismos internacionais no sistema das Nações Unidas.
O GTI está encarregado de definir a Política Nacional de Cuidados e sua coordenação é responsabilidade dos ministérios das Mulheres (MM) e de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). À solenidade de lançamento do GTI, além da ministra Aparecida Gonçalves (MM) e do ministro Wellington Dias (MDS), também compareceram a ministra de Gestão e Inovação de Serviços Públicos, Esther Dweck, e o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, acompanhados/as de algumas importantes dirigentes de órgãos governamentais e multilaterais que tratam do tema. Na plateia, representantes de algumas dezenas de entidades dos movimentos de mulheres e feministas, além de entidades de direitos humanos, organizações sindicais [3] e acadêmicas.
Apesar de ser uma pauta colocada por movimentos sociais desde o início do século XX, [4] hoje alguns dos conceitos que dão sustentação à necessária discussão sobre as políticas públicas de cuidado ainda parecem frágeis e, certas vezes, capturados por agendas políticas estranhas aos interesses das mulheres.
Uma política nacional de cuidados tem de reconhecer o relevante papel das mulheres na garantia dos cuidados e sustentação da vida, para então enfrentar as desigualdades que as afetam, em decorrência da divisão sexual e racial do trabalho e da superexploração de todo o seu labor na esfera da reprodução social, resultante de relações patriarcais, racistas e capitalistas que estruturam a nossa sociedade.
O ministro Wellington Dias, do MDS, quando definiu o propósito da reunião do GTI afirmou: “estamos falando de quem cuida de crianças; de quem cuida de adolescentes; de quem cuida de pessoas com deficiência ou com alguma limitação”, e completou com uma visão um tanto confusa do processo: “há uma certeza: todos nós, de alguma forma, somos cuidadores; e todos nós, de alguma forma e em algum momento, vamos precisar de cuidados. Portanto, não há uma política provavelmente mais humana do que a política de cuidados”.
O ministro dos Direitos Humanos, por sua vez, relacionou a condição das trabalhadoras ao processo de construção do capitalismo brasileiro, baseado no escravismo e reforçou que ao se dispor a debater uma política de cuidados trata de compreender uma dimensão do futuro da nação e não apenas de uma dimensão de afetos. Na mesma linha seguiu a ministra Cida Gonçalves quando citou que as mulheres gastam, em média, 22 horas semanais com trabalhos domésticos não remunerados.
Pelas organizações da sociedade civil, destacou-se a manifestação da coordenadora-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista: “Mesmo sendo feito a maioria por mulheres negras sem nenhuma escolaridade ou com pouquíssima escolaridade, nosso trabalho é importante para o desenvolvimento da sociedade”.
No final do ano passado, o direito e as políticas públicas de cuidado foram o tema central da XV Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe [5], organizada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). E em preparação aos debates realizados entre os dias 7 e 11 de novembro em Buenos Aires, a Articulação Feminista Marcosur (AFM) produziu uma série de debates e reflexões com feministas sobre o tema e apresentou os resultados em um documento síntese intitulado 10 teses para abordar nos debates e nas políticas para uma sociedade do cuidado, [6] apresentadas nos seguintes tópicos:
1. Frente à crise ambiental e de cuidados, o debate sobre estes deve estar fundamentado por uma proposta de sustentabilidade da vida;
2. Os debates sobre cuidado não podem ser feitos sem considerar o tempo e a utilização do tempo como um eixo político e filosófico;
3. A noção de cuidado é polissêmica e é um conceito em construção. Definir, para além dos termos coloquiais, aquilo que é cuidado, permite determinar o alcance das políticas e evitar que estas se esvaziem de conteúdo;
4. As desigualdades na América Latina e no Caribe se expressam em injustiças territoriais, e estas, no uso do espaço;
5. O cuidado e os encargos que estes impõem às mulheres variam de acordo com diferentes sistemas de exploração e opressão – capitalista, patriarcal, racista, heteronormativo;
6. Não é possível pensar em políticas sem rever a situação das mulheres de acordo com as suas experiências de vida interseccionadas por múltiplos sistemas de opressão: raça, identidade de gênero, identidade sexual, classe, nível socioeconômico, idade, entre outros;
7. Uma política feminista do cuidado deve questionar o lugar atribuído às mulheres na sociedade patriarcal e neoliberal;
8. O trabalho de cuidado não remunerado se expressa também em iniciativas comunitárias que fazem parte do ativismo social e das estratégias de sobrevivência dos setores populares – para os quais as mulheres tanto contribuem – que expressam as múltiplas formas de solidariedade social;
9. Reconhecer o papel das cuidadoras, valorizar seus trabalhos e colocar o cuidado com as cuidadoras no centro das políticas do cuidado é fundamental;
10. Para transformar a injusta divisão sexual do trabalho que sustenta as nossas economias e a reprodução da vida, é necessária uma mudança cultural nas relações sociais entre mulheres e homens e entre gerações.
As análises críticas feministas sobre o tema do cuidado abrangem tanto a compreensão do processo político-histórico de construção de nossas sociedades patriarcais, racistas e colonizadas, quanto o processo econômico de dominação e exploração do trabalho das mulheres no capitalismo, o usufruto do trabalho das mulheres pelos homens (como grupo) e a construção de um sistema de gênero que se articula no processo de crise histórica, ambiental e social neste século XXI.
Vendo assim, é claro que a política de cuidado é mais complexa do que quis expressar o ministro do MDS ao afirmar que “todos nós, de alguma forma, somos cuidadores”. Não há igualdade ou simetria de gênero, [7] de raça e classe nesse mundo. Não somos todos/as/es iguais. Nem é possível construir uma política de cuidado sem compreender isso!
Quando o trabalho que exercem é remunerado, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, ainda em 2023, as mulheres ganham 21% menos que homens. Não bastasse isso, são a maioria entre desempregados, têm maiores taxas de subocupação e de desalento (que desistiram ou não conseguem procurar emprego), do total de pessoas fora da força de trabalho, quase dois terços (64,5%) são mulheres, e há também o racismo: de 2,3 milhões de desalentadas, 1,6 milhão de negras [8].
Para construir uma política pública de cuidado, as mulheres trabalhadoras reivindicam a construção e reorganização de equipamentos públicos essenciais, tais como: creches públicas em tempo integral e com funcionamento durante todo o ano, uma política massiva de restaurantes comunitários e populares em todas as regiões consideradas vulneráveis e, desta forma, incluir todas as pessoas no acesso ao direito fundamental à alimentação (Artigo 6º da CF). Tal medida pode diminuir muito a carga de trabalho das mulheres mais pobres, que vai desde a arrecadação de alimentos até a preparação e a divisão entre a família, 65% das famílias em insegurança alimentar são negras. [9] A ampliação das políticas de habitação popular, de saúde com SUS fortalecido, de equipamentos públicos para cuidado e convivência de pessoas idosas, pessoas com deficiências e tantas outras limitações que demandam atenção, atualmente respondida no âmbito familiar e comunitário e prestada quase que exclusivamente pelas mulheres, às expensas de sua autonomia econômica e seus direitos sociais.
A construção de uma política pública do cuidado também se relaciona com as oportunidades das mulheres e meninas em nossa sociedade. É urgente construir políticas públicas para romper o ciclo de exclusão imposto às meninas nas tarefas de cuidado, nos lares, em substituição às mães ou em casas de terceiros no trabalho doméstico infantil. Os dados do Fórum Nacional pela Erradicação do Trabalho Infantil, [10] de 2019, revelam que a maioria dos casos de trabalho doméstico infantil é de meninas (85%), negras (70,8%), adolescentes de 14 a 17 anos (94% do total), sem deixar nenhuma dúvida sobre a urgência de incidir neste modelo de reprodução da desigualdade, que necessariamente, se relaciona com a imperativa mudança do modelo educacional que ainda cria e reproduz restrições às mulheres, procura disciplinar a sexualidade das meninas e se baseia na supremacia masculina, da educação infantil à universitária.
Em uma sociedade que se construiu a partir da superexploração, da aniquilação e da transformação de indígenas em não-humanos, de africanos(as) sequestrados(as) e transformados em mercadoria, não basta a legislação tratar como iguais homens e mulheres. As políticas públicas precisam ser construídas considerando a desigualdade que impera, respondendo com urgência ao direito de todas e cada uma das pessoas ao cuidado e, ao mesmo tempo, respondendo ao desafio estratégico de construir alternativas sistêmicas à forma subordinada, dominada e colonizada do cuidado assegurado pelas mulheres, em sua grande maioria racializadas. A sustentação da vida garantida pelas mulheres não pode ser vetor da acumulação privada das grandes corporações, alicerce invisível da lógica de mercado que transforma tudo em mercadoria.
O fato é que, objetiva e subjetivamente, o cuidado é essencial à manutenção da vida, desde uma perspectiva ecossocial. É um princípio ético que deveria nortear responsabilidades compartilhadas, solidárias, recíprocas, livre de subalternidades, dominações, explorações, seja nas relações afetivas, seja nas relações sociais de uma maneira geral, ou nas nossas relações humanas com os Comuns. Por isso mesmo, o cuidado tem que ser diretriz para as finanças e as políticas públicas, orientada ao compartilhamento de responsabilidades (não apenas a responsabilizar as mulheres), ao enfrentamento das desigualdades e das injustiças, para poder ser direito de todas/os/es: um bem comum essencial.
[1] Disponível aqui.
[2] Ver a manifestação de Ana Montenegro na Revista Novos Rumos nº 75, em 1960, criticando o “esquecimento” do V Congresso do PCB sobre o papel das mulheres. Disponível aqui.
[3] Ver matéria da Agência Brasil de 22 de maio de 2023: “Governo avança para criação de política para cuidadores”. Disponível aqui.
[4] Recomendamos a leitura dos textos de Alexandra Kollontai iniciando por “Os Fundamentos Sociais da Questão Feminina” de 1907, disponível aqui.
[5] Disponível aqui.
[6] Articulación Feminista Marcosur (AFM)- 10 teses para abordar nos debates e nas políticas para uma Sociedade do Cuidado. Disponível aqui.
[7] “A maioria das sociedades faz uso, de maneira explícita, de apenas dois gêneros (masculino e feminino) e que correspondem ao sexo biológico de machos e fêmeas. No entanto, ao longo da história foram registrados grupos que adotaram papéis de gênero para indivíduos cujo comportamento configurava o oposto daquele atribuído ao sexo biológico ou à crianças nascidas com as marcas genitais de ambos os sexos. Como exemplo, podemos citar certos grupos nativos da América do Norte que possuíam quatro papéis de gênero: homens-masculinos, mulheres-femininas, homens_xfffe_femininos e mulheres-masculinas, sendo os dois últimos identificados como possuidores de uma espiritualidade dupla.” Zirbel, Ilze Uma teoria político-feminista do cuidado. Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis – SC, 2016. p. 34. Disponível aqui.
[8] Mulheres ganham 21% menos que homens e são maioria entre desempregados, diz Dieese. Disponível aqui.
[9] Disponível aqui.
[10] Disponível aqui.
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Caminhos para uma política pública do Cuidado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU