17 Julho 2018
Em 2002, com 17 anos, chegou à Espanha vendida por 300 euros por uma rede de tráfico que operava desde a Romênia. Passou por 40 prostíbulos. Conseguiu sair cinco anos depois, uma vez que a consideraram descartável. Define-se como uma combatente contra o tráfico. Tomou consciência da escravidão a qual a submeteram a partir do descobrimento de leituras feministas.
“O povo em geral repete o discurso proxeneta porque chega em todas as partes: os meios de comunicação colocam como referência a supostas mulheres que é como que fazem o papel de Pretty Woman, o filme que tanto dano fez com a romantização da violência, da prostituição, do “putero”. E creio que a nossa sociedade nos toca replantarmos que a prostituição, ainda que nos queiram vender que tem rosto de mulher, é um mundo de homens”. Assim afirma Amelia Tiganus. É romena, mas se expressa em perfeito espanhol. Na Espanha chegou há 16 anos vendida por 300 euros para ser explorada em 40 prostíbulos durante cinco anos. Sobreviveu e relata. Simples, franca e direta. Esmiúça nesta entrevista como foi captada, como funciona o sistema de prostituição na Espanha e como fez para sair: “Me deixaram sair porque não dava mais de mim e isso não importava porque depois de cinco anos haviam feito um monte de dinheiro. E mais, estavam entrando três novas garotas de 18 anos recém cumpridos”.
A entrevista com Amelia Tiganus foi concedida à Sonia Santoro, publicada por Página/12, em 16-07-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
De onde tu és Amélia?
Nasci em 1984, em Galati, no leste da Romênia. Uma cidade industrial. Uma família de classe trabalhadora, sou a maior de duas irmãs. E bem, minha vida era como a de qualquer outra nessa situação. A destacar meu bom nível de estudo e meu desejo de ser professora ou médica, também que nunca passei por necessidades econômicas. Talvez, sim, sofri as necessidades a nível emocional porque dentro do núcleo familiar era uma situação generalizada. Talvez porque é uma sociedade... que passou pela época do comunismo, de viver em ditadura e tanto as mulheres como os homens tinham uns horários, eram umas dinâmicas bem marcadas e que se deixava como à margem a vida afetiva, o valor do afeto. Então nos criamos, da minha geração e as que viveram essas épocas de mudança, nessas dinâmicas de ausência do afeto parental.
O que passou? Qual foi o desencadeante, como caiu na exploração sexual?
Bem, eu sempre digo que vi isso com a perspectiva do tempo e tive as ferramentas para analisar o que havia vivido... Estou 16 anos na Espanha. O desencadeante, o que mudou minha vida foi ter sofrido aos 13 anos uma violação múltipla. Eram meninos do bairro, conhecidos. Na rua, voltando do colégio me rodearam e começaram a insistir e isso se desencadeou em uma violação múltipla. Porém isso não foi o pior porque foi um fato muito traumático, porém que minha mente guardou em um rincão e sinto que se apagou da minha memória o pior foi o que veio depois quando meu entorno não soube responder a aquilo, talvez por medo ou por falta de ferramentas...
Contou aos seus pais?
Não contei aos meus pais porque tinha muita vergonha, medo de desapontá-los, não queria que sentissem vergonha nem que colocassem em dúvida o que aconteceu.
Pensava que podiam lhe culpar de algo...
Sim, pensava, porque eram muito conservadores. E me criei com essa ideia de que se acontece algo a uma mulher é porque não teve o cuidado suficiente ou porque estava vestida de alguma maneira. Essa mensagem eu tinha incorporado muito bem. Porém logo se expôs a fora, se difundiu e me marginalizou. Primeiro, e mais importante, as notas baixavam porque já não rendia, diziam que tinha me tornado uma vagabunda e não viram os indicadores. Tampouco a vizinhança, que se dedicava a me apontar, a dizer que eu era uma puta. Os pais das minhas amigas não as deixavam falar comigo porque diziam que iam as ocorrer o mesmo...
Então, seus pais se inteiraram.
Sim. Seguramente lhes gerou muita dor, penso agora, porém nesse momento me senti bastante desprezada pela sua atuação. Pois me vi totalmente marginalizado por uma sociedade, muito vulnerável. Então nessa situação, onde ademais as violações se tornam sistemáticas porque me perseguiam, tinha duas opções: uma era me suicidar por não aguentar tudo isso e outra era assumir que isso era assim, que eu era uma puta. E adquiri essa falsa salvação, me agarrei dessa ideia... A partir desse momento pensei “bem, não passa nada, me deito com todos” porem também para evitar as situações de maior violência, para sobreviver, um mecanismo de defesa.
Quanto tempo isso durou?
Isso desde os 13 anos até os 17 anos e meio. E aos 17 e meio foi quando começaram a me falar de ir à Espanha para exercer a prostituição para em alguns anos, ter uma casa, um carro. Me colocam de exemplo a outras meninas que vinham de ali, que eram muito queridas e admiradas, porque dentro do sistema é o que tem, o valor que tens. E me iludi muito, acreditei e disse que sim. Tinha 17 anos, era menor de idade e esse homem me vendeu por 300 euros. Ele possuía um prostíbulo em Alicante, onde em seguida cumpri a maioridade. Assim foi como cheguei à Espanha e ao sistema de prostituição.
E com seus pais, nunca mais?
Nessa equação meus pais ficaram de lado porque eu tentei sobreviver da minha maneira, aos 16 anos comecei a trabalhar na fábrica, colocar minha vida em frente e eles ficaram em algum lugar secundário.
Repensou esse consentimento que supostamente deu a essa idade?
Claro. O mais chamativo é que eu não me identifiquei como vítima de tráfico até quatro anos atrás. Ou seja, sete anos depois de sair do sistema prostituinte, sem apoio – logo consegui porque ninguém se salva sozinho –, em tremenda solidão. Eu durante todo esse tempo pensei que como dei meu consentimento, sem pensar como lhe dei, tenho que me conformar. A revitimização que sempre ou quase sempre nós mulheres sofremos. E pelo feminismo me dei conta de que era vítima do tráfico...
Como chegou ao feminismo?
De causalidade, começando a ler. Foi um momento de abrir os olhos, me dar conta que todas as perguntas que me foram rondando a cabeça, tudo tinha um sentido, uma explicação e então pude colocar palavras ao vivido. Pode entender minha história e tirá-la da pessoa ao político, e assim entender que parte da minha história pessoal formava parte de um grande entremeado que lança na prostituição milhões de mulheres em todo o mundo. E logo comecei a estudar sobre o tráfico e fui conhecer o Protocolo de Palermo, foi quando me dei conta de que eu tinha sido vítima de tráfico. Primeiro porque dei esse “consentimento” sendo menor de idade e segundo, ainda que não tivesse sido menor de idade, em uma condição de vulnerabilidade como a que eu estava, tampouco. Por isso penso que o consentimento é um termo muito enganoso porque não é possível demonstrá-lo.
Disse uma vez que os prostíbulos são campos de concentração.
Sim, depois de escutar a Sonia Sánchez que disse que a prostituição “é um campo de concentração a céu aberto”, comecei a refletir sobre isso, a fazer conexões e então comecei a pensar que era a prostituição dentro dos prostíbulos, que era o que eu conhecia. Passei por mais de 40 prostíbulos durante os cinco anos que fui explorada na Espanha. E ter os sentidos postos em sobreviver as 24 horas do dia; estar exposta a ver pornografia (filmes) as 24 horas do dia e como forma de tortura, como mandando uma mensagem muito clara de “para isso estás e serve”; ter que fazer fila para tudo, para mudar os lençóis, para comer, para entrar nos quartos com os “puteros”. Também a desconexão total com a sexualidade, com o desejo, simplesmente um ato mecânico para dominar. Ser em função do que os outros te demandam porque primeiro perde a identidade, te transformas em uma mulher utilizável, descartável; em um corpo e podes resistir a tudo isso por um mecanismo de desvio porque é quando se quebra a tua humanidade.
Quando pensou pela primeira vez sair, escapar?
A primeira vez fio a três semanas de chegar ao Estado espanhol quando me dei conta que o proxeneta que havia me comprado não cumpria com sua parte porque me havia dito que depois de pagar a dívida que havia acumulado pelo passaporte, a viagem, os lucros iriam se repartir em 50% para cada. Porém me dei conta que depois de pagar essa dívida, esse 50% que teriam que dar a mim, me descontava o alojamento, as roupas de cama. Me haviam dito primeiro que era para ganhar muito dinheiro e sair logo em dois anos, e se não cumpria era porque não me esforçava o suficiente. Também há um sistema de multas por não cumprir os horários, por não estar as cinco em ponto nas salas quando se abria a porta (ali entravam os “puteros” e estávamos em fila outra vez). Por demorar mais nos quartos, por mastigar chicletes, por responder mal a um “putero” porque o proxeneta vai perder a clientela e porque esse (o prostituinte) lhe dirá a outros que ali tem garotas complicadas. E me dei conta como ficava sem nada. O que me restava era sobreviver e seguir enganchada à droga e ao álcool. Nos viciamos nisso para poder resistir e sobreviver. E às três semanas quando me dou conta disso tudo, porque estava ainda bastante lúcida, decidi escapar no dia em que tive o passaporte em mãos (tinham o retirado de mim no primeiro dia. Me disseram que tinham um cofre para guardarem porque as garotas poderiam me roubar). Porém só me devolveram o passaporte um dia que o proxeneta recebeu o chamado de um policial lhe avisando que essa noite haveria uma batida policial: nessa noite, todas tínhamos os passaportes em mãos e as que pareciam menores de idade nem estavam lá. E o que fiz foi pedir a algum “putero” que me levasse a outro prostíbulo. E as pessoas me diziam “se tu estava tão mal, por que foi para um prostíbulo? ”. Primeiro, fica claro que não queria voltar à Romênia e segundo, estava em um país totalmente desconhecido, não falava o idioma. Desconhecia meus direitos. E ainda pensava que isso era possível que eu ganhara esse dinheiro para solucionar minha vida. E acabei em outro prostíbulo. E dali em outro e outro porque trabalhavam em rede e a cada 21 dias renovam para ter garotas novas, para ter mercadoria sempre variada e nova para que os “puteros” não se entediem. E o sistema era o mesmo: explorar. Estive cinco anos. Demorei cinco anos porque resistia a sair sem levar nada. Tinha dor de sair disso sem levar nada e me prometia um ano mais, outro ano mais, até chegar a cinco. Autoengano.
Como saiu?
Saí. Um dia me sentei em uma cadeira e pensei que não queria que ninguém mais me tocasse. E me aguentei por duas semanas. Me faziam muitas pressões porque acumulava dívidas com o clube. Porém estava totalmente bloqueada, tentava pensar, mas não tinha ferramentas para fazê-lo. Pedi a um “putero” que me levasse a sua casa em troca de sexo. E eu pensei que essa seria uma maneira de buscar um trabalho, poder pagar um aluguel. Foi assim, porém me deixaram andar porque depois de todas essas insistências era simplesmente que não dava mais de mim e isso não importava porque depois de cinco anos haviam feito um monte de dinheiro. E ademais, estavam entrando três novas de 18 aninhos recém cumpridos, com as mesmas ilusões.
O que a lei espanhola diz sobre prostituição?
É alegal. Quer dizer, é uma nuvem que beneficia a proxenetas, ao Estado. Significa que não está penalizada nem para quem exerce, nem para quem explora – os “puteros”. É perseguido o proxenetismo, de uma maneira enganosa tem prostíbulos nas rodovias, cada vez mais apartamentos. Não se persegue o rufianismo nem o proxenetismo coativo. E voltamos ao consentimento, isso é, se uma mulher consciente, sem terem conta a vulnerabilidade, ser explorada, não acontece nada.
Tem pressões para legalizar?
Muitíssimas, quando exercer a prostituição não é ilegal. E a quem beneficia? Aos proxenetas porque querem converter a exploração sexual em exploração laboral. E dessa equação quem ganha é o proxeneta porque se converte em empresário que explora. E tem muitíssima pressão e o lobby proxeneta a nível global. E a gente em geral repito o discurso proxeneta porque chega por todas partes: os meios de comunicação põem como referentes a supostas mulheres que é como fazer o papel de Pretty Woman, o filme que tanto dano fez com a romantização da violência, da prostituição, do “putero”. E creio que a nossa sociedade nos cabe repensarmos que a prostituição, ainda nos querem vender que tem rosto de mulher, é um mundo de homens. A mim quando me perguntam que é a prostituição, responde que é um mundo masculino. Para poder analisar tem que ver o sistema, tem que falar do Estado que permitir que existe e que lucra com eles porque na Espanha o dinheiro que move o tráfico está incluído no cálculo do PIB desde 2014. Depois estão os proxenetas e os tratantes: quando cai alguma rede, sempre caem os estrangeiros. Os intocáveis são os poderosos.
As garotas são também em geral estrangeiras...
Sim porque as que estamos em situação de prostituição e tráfico, se retroalimentam e solapam. Uns 90% são países de origem das redes de tráfico. E aí está o grande invisibilizado que é o “putero”.
O cliente, dizemos por aqui...
Porém chama-lo cliente é eximi-lo de responsabilidade porque cliente podemos ser qualquer um que compra e aí se acaba. E o chamamos lá de “putero”, e aqui, “prostituidor”. Porém o chamamos assim porque é o homem que paga para ter o corpo de uma mulher, não é qualquer cliente.
Qual é o seu sonho de agora?
Tenho muitos, graças ao universo não perdi a capacidade de sonhar nem de perder as esperanças. Meu sonho é que esta sociedade possa abrir os olhos e pensar sobre qual modelo de Estado, de sociedade queremos. Se supõe que se lutamos para que nossos direitos como mulheres estejam assegurados, é ingênuo pensar que legalizando a prostituição podem nos garantir isso porque o mesmo ato em sim é discriminatório para todas as mulheres porque as põe à disposição dos homens em lugares físicos onde as mulheres que estão ali são convertidas em ralos, em mulheres utilizáveis e descartáveis.
Como vive hoje?
Eu levo meu ativismo pelo site feminicidio.net e quando falo o faço em nome de uma organização... não sou sozinha, tenho uma equipe multidisciplinar detrás. O primeiro que fazemos é ir contra os feminicídios no Estado Espanhol, os do sistema prostitucional (prostituinte). Desde o ano 2010 até hoje, temos documentados 42 casos. Seguramente haverão sido mais. O que fazemos é rastrear as notícias dos periódicos e por meio disso fazemos informes. Um dado muito importante para destacar do informe é que a grande maioria dessas 42 mulheres foram assassinadas por “puteros”. A grande maioria provinha de países de origens das redes de tráfico (no Leste Europeu, Romênia e Ucrânia. Na América Latina, Brasil e República Dominicana. Na Ásia, China. Na África, Nigéria), todos os pontos onde as mulheres fomos convertidas em matéria-prima para sermos exploradas. Também que esses assassinatos são levados a cabo com grande ódio, deixando em evidência a misoginia. É como se esses “puteros” tivessem feito uma declaração, como se o corpo dessas prostitutas fossem o campo de batalha da misoginia, violência contra todas as mulheres. Dentro da organização coordeno um projeto de sensibilização, formação e prevenção da prostituição, tráfico e violência sexual. Me dedico a dar oficinas, sensibilizar, a fazer ativismo.
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“Te transformas em uma mulher utilizável, descartável”. Entrevista com Amelia Tiganus, vítima do tráfico de mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU