28 Agosto 2024
A reportagem é de José Lorenzo, publicada por Religión Digital, 28-08-2024.
“Hoje, adiando a habitual catequese, gostaria de parar convosco para pensar nas pessoas que – também neste momento – atravessam mares e desertos para chegar a uma terra onde possam viver em paz e segurança”. Assim, a tradicional audiência de quarta-feira do Papa começou esta manhã, novamente na Praça São Pedro, ensolarada e cheia de fiéis para ouvir o que se tornou um duro apelo contra “a cultura do descartável” que torna invisíveis as pessoas migrantes, que “só Deus vê e ouve o seu clamor."
Com uma cara séria, o Papa começou por contextualizar o que queria dizer com as palavras mar e deserto, “duas palavras que reaparecem em muitos testemunhos que recebo, tanto de migrantes como de pessoas que estão empenhadas em resgatá-los”. “No contexto da migração, refiro-me também ao oceano, ao lago, ao rio, a todas as águas traiçoeiras que tantos irmãos e irmãs de qualquer parte do mundo são obrigados a atravessar para chegar ao seu destino”, observou.
“E o 'deserto' não é apenas areia e dunas, ou rochosos, mas também todos aqueles territórios inacessíveis e perigosos, como florestas, selvas, estepes, onde os migrantes caminham sozinhos, abandonados à sua sorte”.
“É preciso dizer claramente: há quem trabalhe sistematicamente por todos os meios para repelir os imigrantes". Num tom sério, fazendo uma leitura lenta e pensativa.
"Infelizmente, alguns desertos também se tornam cemitérios para migrantes. Muitas vezes, estas também não são mortes "naturais" e filhos que ninguém deveria ver. Só Deus os vê e ouve o seu clamor. “O Senhor está com os migrantes e não com aqueles que os rejeitam”, improvisou.
“Os migrantes de hoje não deveriam estar nesses mares e desertos mortais. Mas não é através de leis mais restritivas, não é através da militarização das fronteiras, não é através de rejeições que o conseguiremos expandindo as rotas de acesso seguras e legais para os migrantes, facilitando o refúgio para aqueles que fogem da guerra, da violência, da perseguição e de diversas calamidades".
“Conseguiremos isso – continuou – promovendo por todos os meios uma governança global da migração baseada na justiça, na fraternidade e na solidariedade . E unindo forças para combater o tráfico de seres humanos, para deter os traficantes criminosos que se aproveitam impiedosamente dos direitos de outras pessoas".
“Pensem nas muitas tragédias dos migrantes, pensem em Lampedusa, em Crotone, quantas coisas feias e tristes...” improvisou novamente, emocionado. “O que mata os imigrantes é a nossa indiferença e atitude de descarte ”, acrescentou. “Quero concluir reconhecendo e elogiando os esforços de tantos bons samaritanos, que fazem todo o possível para resgatar e salvar migrantes feridos e abandonados nas rotas da esperança desesperada, nos cinco continentes. uma humanidade que não se deixa contagiar pela cultura maligna da indiferença e do descarte. E aqueles que não podem ser como eles 'na linha de frente' não estão excluídos desta luta pela civilização: há muitas maneiras de contribuir".
“Unimos os nossos corações para que os mares e os desertos não sejam cemitérios, mas um espaço onde Deus possa abrir caminhos de fraternidade”, concluiu o Papa com outras palavras improvisadas que foram ratificadas pelos aplausos que se espalharam pela Praça São Pedro depois disto. Em seguida, fez catecismo especial na memória litúrgica de Santo Agostinho.
Antes de se despedir, o Papa, na sua saudação aos fiéis polacos, agradeceu-lhes pelos anos “demonstrando grande ajuda e compreensão samaritana para com os refugiados da Ucrânia. Continuem a ser hospitaleiros para com aqueles que perderam tudo”.
Por fim, convidou todos a “pensar nos muitos países em guerra, muitos, na Palestina, em Israel, na martirizada Ucrânia, em Mianmar, no norte de Kivu ... Que o Senhor vos conceda o dom da paz”.
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje interrompo a catequese habitual e desejo deter-me convosco para pensar nas pessoas que – até neste momento - atravessam mares e desertos para chegar a uma terra onde viver em paz e segurança.
Mar e deserto: estas duas palavras reaparecem em muitos testemunhos que recebo, tanto de migrantes como de pessoas comprometidas em socorrê-los. E quando digo “mar”, no contexto das migrações, refiro-me também ao oceano, ao lago, ao rio, a todas as massas de água traiçoeiras que tantos irmãos e irmãs em todas as partes do mundo são obrigados a atravessar para chegar à sua meta. E “deserto” não é apenas de areia e dunas, ou rochoso, mas também todos os territórios inacessíveis e perigosos, como as florestas, as selvas, as estepes, onde os migrantes caminham sozinhos, abandonados a si próprios. Migrantes, mar e deserto. As rotas migratórias de hoje são frequentemente marcadas por travessias de mares e desertos, que para muitas, demasiadas - demasiadas! - pessoas acabam por ser mortais. Por isso, hoje quero refletir sobre este drama, esta dor. Conhecemos melhor algumas destas rotas, porque estão muitas vezes sob os holofotes; outras, a maior parte delas, são pouco conhecidas, mas nem por isso menos percorridas.
Falei muitas vezes do Mediterrâneo, porque sou Bispo de Roma e porque é emblemático: o mare nostrum, lugar de comunicação entre povos e civilizações, tornou-se um cemitério. E a tragédia é que muitas, a maioria destas mortes, poderiam ter sido evitadas. É preciso dizer claramente: há quem trabalhe sistematicamente com todos os meios para afastar os migrantes - para afastar os migrantes. E isto, quando é feito de modo consciente e responsável, é um pecado grave. Não esqueçamos o que diz a Bíblia: «Não maltratarás o estrangeiro nem o oprimirás» (Ex 22, 20). O órfão, a viúva e o estrangeiro são os pobres por excelência que Deus sempre defende e pede para defender.
Infelizmente, também alguns desertos se tornam cemitérios de migrantes. E até aqui, muitas vezes, não se trata de mortes “naturais”. Não! Às vezes foram levados para o deserto e abandonados lá. Todos conhecemos a fotografia da mulher e da filha de Pato, que morreram de fome e sede no deserto. Na era dos satélites e dos drones, há homens, mulheres e crianças migrantes que ninguém deve ver: escondem-nos. Só Deus os vê e ouve o seu clamor. E esta é uma crueldade da nossa civilização.
Com efeito, o mar e o deserto são também lugares bíblicos repletos de valor simbólico. São cenários muito importantes na história do êxodo, a grande migração do povo conduzido por Deus através de Moisés, do Egito para a Terra prometida. Estes lugares testemunham o drama do povo que foge da opressão e escravidão. São lugares de sofrimento, medo e desespero, mas ao mesmo tempo de passagem para a libertação - e hoje quantas pessoas passam pelos mares, pelos desertos para se libertar - são lugares de passagem para a redenção, alcançar a liberdade e o cumprimento das promessas de Deus (cf. Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, 2024).
Há um Salmo que, dirigindo-se ao Senhor, diz: «Sobre o mar o teu caminho / as tuas veredas sobre as grandes águas» (77, 20). E outro canta assim: «Conduziu o seu povo pelo deserto, / porque o seu amor é eterno» (136, 16). Estas palavras sagradas dizem-nos que, para acompanhar o povo a caminho da liberdade, o próprio Deus atravessa o mar e o deserto; Deus não permanece à distância, não, partilha o drama dos migrantes, Deus está com eles, com os migrantes, sofre com eles, com os migrantes, chora e espera com eles, com os migrantes. Far-nos-á bem pensar hoje: o Senhor está com os nossos migrantes no mare nostrum, o Senhor está com eles, não com aqueles que os rejeitam.
Irmãos e irmãs, todos poderíamos concordar com uma coisa: nesses mares e desertos mortais, os migrantes de hoje não deveriam estar - e infelizmente estão. Mas não é através de leis mais restritivas, não é mediante a militarização das fronteiras, não é através de rejeições que alcançaremos este resultado. Ao contrário, só o conseguiremos ampliando as rotas de entrada seguras e regulares para os migrantes, facilitando o refúgio para quantos fogem das guerras, da violência, da perseguição e de muitas calamidades; só o conseguiremos favorecendo, em todos os sentidos, uma governança global das migrações fundamentada na justiça, na fraternidade e na solidariedade. E unindo forças para combater o tráfico de seres humanos, para impedir os traficantes criminosos que exploram sem piedade a miséria dos outros.
Prezados irmãos e irmãs, pensai em tantas tragédias de migrantes: quantos morrem no Mediterrâneo! Pensai em Lampedusa, em Crotone... quantas coisas horríveis e tristes! E gostaria de concluir reconhecendo e louvando o esforço de tantos bons samaritanos, que fazem o possível para socorrer e salvar os migrantes feridos e abandonados nas rotas da esperança desesperada, nos cinco continentes. Estes homens e mulheres corajosos são sinal de uma humanidade que não se deixa contagiar pela cultura negativa da indiferença e do descarte: o que mata os migrantes é a nossa indiferença, a atitude de descarte. E quem não pode estar como eles “na linha da frente” – penso em tantas pessoas boas que estão na linha da frente, em Mediterranea Saving Humans e em tantas outras associações - não está excluído desta luta de civilização: não podemos estar na linha da frente, mas não estamos excluídos; há muitas formas de oferecer a própria contribuição, sobretudo com a oração. E pergunto-vos: rezais pelos migrantes, por aqueles que vêm para as nossas terras a fim de salvar a vida? E “vós” quereis rejeitá-los.
Caros irmãos e irmãs, unamos os corações e as forças, para que os mares e os desertos não sejam cemitérios, mas espaços onde Deus possa abrir caminhos de liberdade e fraternidade.
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Francisco: “O Senhor está com os migrantes e não com aqueles que os rejeitam” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU