22 Julho 2024
“Navegar no oceano agitado é preciso! É imprescindível! A Igreja Católica será minoria abraâmica, mas poderá e deverá ser o fermento necessário de que os homens e mulheres do século XXI necessitam. Ou ela mostra ao mundo que o ideal do jovem de Nazaré (o Reino) é o único caminho que gera vida para todos ou ficará falando sozinha num emaranhado de leis e normas, dando palpites sem ser sondada e respostas a perguntas que não foram feitas!”, escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre da Arquidiocese de Londrina.
Não é uma pergunta retórica! Tenho visto líderes religiosos literalmente perdidos, perante a mediocridade existencial da atual civilização. Mais ou menos, como lemos em Jeremias 14: “até o profeta e o sacerdote perambulam pela terra sem saber o que se passa”. Tem momentos em que nos sentimos abalroados pelo desânimo sem conseguirmos enxergar a presença de Deus. Ou será que esse Deus de Jesus Cristo não está exatamente ali onde o desespero e a morte parecem grassar? Assim o disse Bento XVI e Francisco quando em silêncio contemplaram o campo de concentração e extermínio de Auschwitz.
Uma das imagens mais impactantes das últimas décadas (e foram muitas) é a do Papa Francisco subindo sozinho, num final de tarde, as escadas da praça S. Pedro na direção do crucifixo milagroso. Aquele mesmo crucifixo do altar principal, que na noite do dia 22 para o dia 23 de maio de 1519, quando a igreja sofreu um violento incêndio e ficou destruída, as pessoas encontraram providencialmente intacto e iluminado por uma lamparina que, embora atingida pelas chamas, ainda ardia aos seus pés. Em 1522, de novo a salvação da peste foi atribuída à proteção desse crucifixo.
Agora, era o dia 27 de março de 2020, auge da pandemia. Roma estava vazia, ele, o ancião da Igreja Católica, literalmente sozinho! “Deus onipotente e misericordioso, olhe a nossa dolorosa situação: conforta teus filhos e abre nossos corações à esperança, porque sentimos sua presença de Pai em nosso meio”, afirmou, ao abrir a oração. A cena é de fato proporcional à gravidade que atingia a humanidade com a Covid-19. E Francisco o líder de bilhões de católicos que acreditam firmemente na presença de Deus, em todas as circunstâncias.
Foram inúmeros os textos que discorreram sobre a esperança de que o ser humano e a humanidade em geral se tornariam melhores após milhões de morte e perdas irreparáveis com a pandemia. Nas escolas, nas igrejas, nos espaços públicos, odes à humildade perante o inevitável e incurável eram frequentes! Ali estava o Papa Francisco, o homem que convocou um Jubileu Ordinário sobre a esperança, dizendo com a sua postura frágil e inclinada perante o crucifixo que a “a nossa esperança está no Senhor. Ele é o nosso auxílio e a nossa proteção” (Sl 33). No próximo ano, todos seremos “peregrinos da esperança” ou pelo menos tomando consciência de que “não temos aqui morada permanente” (Hb 13,14) e por conseguinte a humildade deve ser a tônica dos nossos atos.
Havia sim, a esperança de que tudo mudasse para melhor. “Se não aprendemos pelo amor, quem sabe aprenderíamos pela dor”! Triste equívoco! Dilacerante constatação! Virada a página da peste (ainda que o vírus continue), o que vemos, ouvimos e lemos, é que não evoluímos nada com os funerais solitários dos entes queridos, nem com os caixões enfileirados! O negacionismo que matava tanto quanto, continua se impondo em discursos miseráveis, com adesões escandalosas de cultos e analfabetos! O ódio e a polarização dentro de famílias, comunidades e países, grassa solto como o maior bastardo do advento das redes sociais! Nada mudou! Se mudou, foi para pior! Veio a invasão da Ucrânia e o genocídio na faixa de Gaza, revelando um mundo impotente, covardemente calado e copartícipe dessas tragédias! A Covid-19 nada nos ensinou; se assim era pra ser, não aproveitamos nada!
O grito de Francisco vem repleto de esperança e sonho místico para a humanidade. Não poderia ser diferente. “Se nos calarem, a pedras falarão” (Lc 19,40). O grande santo do Araguaia, sepultado às margens do rio, suava esperança em seus versos e prosas! Num episódio hilário no filme a Última Tentação de Cristo (filme norte-americano de 1988, do gênero drama, dirigido por Martin Scorsese), quando Paulo recebe a visita de Jesus, que teria descido da cruz, ele não hesita: “mesmo que isso fosse verdade, eu continuaria anunciando que Cristo ressuscitou”!
A esperança de Francisco, a nossa esperança, não está alavancada em feitos e fatos humanos! “Alegres na esperança, perseverantes na tribulação, constantes na oração” (Rm 12,12). Assim nos diz o Papa: “O próximo Jubileu poderá favorecer muito a recomposição dum clima de esperança e confiança, como sinal dum renovado renascimento do qual todos sentimos a urgência. Por isso, escolhi o tema Peregrinos da Esperança”. Não é uma esperança fundada no silêncio das armas e em acordos, tão pueris quanto perversos, entre os “grandes cavalheiros deste mundo”.
E logo depois acrescenta: “Entretanto, tudo isto será possível se formos capazes de recuperar o sentido de fraternidade universal, se não fecharmos os olhos diante do drama da pobreza crescente que impede milhões de homens, mulheres, jovens e crianças de viverem de maneira digna de seres humanos.” Aqui sim, habita o cerne da verdadeira esperança que nos deve animar. Que mais teríamos, como combustível, para ir adiante? As contradições, as mentiras, as aberrações do tempo presente, são um charco perene de água poluída que nos impede de avançar!
Dias atrás, o candidato Trump sofreu um atentado. Por milímetros não ocorreu o pior. Os eleitores - e o mundo - poderiam passar a conhecer um Trump mais sereno, mais espiritual, mais unificador e até quem diria, mais humilde. Afinal, a morte acabava de ter flertado com ele. Ledo engano! Após horas “mais espirituoso”, voltou ao seu normal. Mentiroso, arrogante, fascista e tudo que já percebemos no seu último mandato e que no próximo pode eventualmente exacerbar. Se uma peste é pouco para mudar um mundo, uma bala é insignificante para mudar um homem! Um dos episódios mais intrigantes do Novo Testamento é a parábola do pobre Lázaro! “Porém, Abraão lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite”. Donald Trump, menos de uma semana depois de ver uma bala rasgando a sua orelha, mostrou que não mudou, em nada!
Sentimo-nos sozinhos e possuídos pela sensação de abandono, quando as ondas nos açoitam em mar revolto, como os discípulos no Mar da Galileia (Mt 14,24). Mais uma vez as palavras de Francisco, numa meditação sobre a Segunda Carta a Timóteo (4,10-17), nos elucidam acerca da realidade: “Paulo está em Roma, prisioneiro numa casa, num quarto, com uma certa liberdade, mas esperando não se sabe o quê. E naquele momento Paulo sente-se sozinho: é a solidão do pastor quando surgem dificuldades, mas também a solidão do pastor quando se aproxima o seu fim: despojado, sozinho e mendigo”. A fragilidade trazida pela idade, ou pelas várias circunstâncias humanas, nos obrigam a colocar as vigas sobre a trave mestra da construção. Ou se quisermos: sobre a “pedra angular” (At 14,11).
As placas tectônicas da humanidade se movem constantemente e nestes últimos tempos, mais do que nunca. O impacto das eleições americanas sobre a geopolítica mundial atual será estrondoso! O império dos EUA configurado após a II Guerra dará lugar a outros “epicentros”, oriundos da Ásia, dos BRICs etc. A mudança de época como caldo cultural determinante tornou-se o maior desafio para o cristianismo, nos últimos 1600 anos! Entre o diálogo preconizado pelos Documentos do Concílio e a afirmação de que outro mundo melhor é possível, não existe contradição.
Navegar no oceano agitado é preciso! É imprescindível! A Igreja Católica será minoria abraâmica, mas poderá e deverá ser o fermento necessário de que os homens e mulheres do século XXI necessitam. Ou ela mostra ao mundo que o ideal do jovem de Nazaré (o Reino) é o único caminho que gera vida para todos ou ficará falando sozinha num emaranhado de leis e normas, dando palpites sem ser sondada e respostas a perguntas que não foram feitas!
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Ainda há esperança para o mundo? Artigo de Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU