08 Março 2025
"Outro giro da situação mundial é que o perigo de regimes autoritários é iminente e real. A subversão dos regimes democrático-liberais por dentro de sua própria institucionalidade vem se demonstrando um padrão da estratégia da extrema-direita. Muitos se interrogam na esquerda sobre as razões que explicam uma corrente de inspiração neofascista no século XXI", escreve Valerio Arcary, professor de história aposentado do IFSP, em artigo publicado em sua página no Facebook, 04-03-2025.
1. Uma fração da classe dominante ocidental se deslocou para a extrema-direita para impor uma derrota histórica às suas classes trabalhadoras, erradicando as concessões feitas às ultimas duas gerações: educação e saúde gratuitos, financiamento subsidiado da habitação, transportes públicos, aposentadorias por repartição, férias e treze ou até quatorze salários ao ano. Mas esta estratégia de aceleração do movimento de acumulação de capital e superexploração obedece, também, à luta pela preservação da hegemonia mundial contra a China. A febre nacional imperialista nos EUA tem sintomas ideológicos degenerados: machismo, racismo, homofobia, anti-intelectualismo e fanatismo messiânico.
2. Depois do esgotamento de duas ondas revolucionárias regionais, a primeira na América do Sul e a segunda no Magreb e mundo árabe, e da maior crise econômica mundial do capitalismo desde 1929, que precipitou uma recessão internacional por uma década que evitou uma depressão como nos anos 30 do século passado, a etapa mundial teve uma inflexão reacionária na relação social de forças. O conceito de um mundo em desordem é um “escapismo” jornalístico. Não porque não haja desordem. Mas porque não esclarece quem está na ofensiva e quem está na defensiva. Desde, pelo menos 2015, quem está na ofensiva é a contrarrevolução. Essa dinâmica foi estabelecida em grande medida porque o capitalismo conseguiu ganhar tempo histórico, salvando de um crash catastrófico o sistema financeiro internacional através da estratégia de relaxamento monetário ou Quantitative Easing: a emissão de títulos de dívida pública, em escala inédita de trilhões de dólares, que permitiram, até a pandemia de 2020, a prática de taxas de juros básicos negativos, sem explosão inflacionária. Essa excepcionalidade foi possível porque, simultaneamente, foram implementados ajustes reacionários de desmantelamento das conquistas sociais do pós-guerra na educação, saúde, habitação e transportes públicos que favoreceram o aumento da exploração do trabalho e da desigualdade social. A votação do Brexit no Reino Unido em 2015 foi uma sinalização subestimada. A extrema-direita conquistou, pela primeira vez em um dos países chaves da Tríade, o apoio da maioria da classe trabalhadora britânica para um projeto que responsabilizava os imigrantes como culpados pelo seu empobrecimento. Em 2016, Trump foi eleito com a incrível proposta da construção de um muro entre os EUA e o Mexico.
3. Derrotas foram sendo gradualmente acumuladas, em especial nos países onde a organização sindical dos trabalhadores era mais elevada e tiveram consequências desoladoras. Neste processo ocorreram desigualdades porque, apesar da crescente mundialização, não há sincronia na luta de classes. No Brasil, nas caóticas jornadas de junho, em 2013, despertou uma nova geração, mas a pressão progressiva do impulso inicial logo se dissipou, e o país passou por uma fratura política com a derrota diante do golpe parlamentar de 2016. No Chile se abriu uma situação pré-revolucionária em 2019, o primeiro grande ascenso de massas, desde 1973, que colocou em movimento uma nova geração e culminou com a eleição de Boric. Não foram menores as manifestações na Argélia, mas não conseguiram derrubar o regime. No Líbano uma explosão democrática de massas denominada Thaoura, ou revolução em árabe, teve como centelha o aumento de impostos sobre os combustíveis e fez tremer o regime político. No ano passado, em Bangla Desh, o movimento estudantil acendeu a fagulha de uma greve geral que derrubou um regime há mais de vinte anos no poder. Ainda que que com muitos limites políticos, em função dos níveis modestos de auto-organização prévios, estas mobilizações expressaram impulso revolucionário e foram gigantescas, imponentes e heroicas.
4. A etapa internacional aberta em 1989/91, quando da derrota histórica da restauração capitalista na ex-URSS, se encerrou. Durante vinte e cinco anos prevaleceu uma supremacia indiscutível da Tríade, com a hegemonia de um projeto liberal de mundialização da circulação livre de capitais, fortalecimento das organizações do sistema ONU, em particular as iniciativas de transição energética diante do aquecimento global que culminaram no Tratado de Paris, consolidação da OMC com a incorporação da China, e extensão de regimes democrático-liberais para além da Europa e da América do Norte, em especial, na América Latina, pela primeira vez na história. Nos anos noventa os EUA conheceram um mini boom com Clinton, impulsionada pela financeirização e implantação da internet. Nos anos 2000 um mini boom com Bush, apesar da estratégia de guerra contra o Iraque e Afeganistão, com saltos qualitativos de nanotecnologias que transformaram as comunicações telemáticas. Mas a segunda década do século XXI foi, qualitativamente, distinta. A economia capitalista, em especial nos países da Tríade, passou a andar de lado, pela primeira vez desde o final da Segunda Guerra Mundial. A estratégia de QE (relaxamento monetário) contornou a ameaça catastrófica de uma depressão internacional, mas não conseguiu evitar uma longa estagnação, enquanto a China permanecia crescendo, ininterruptamente.
5. O episódio grotesco de abuso de poder de Trump na Casa Branca contra Zelensky confirma que estamos em outra etapa. Há poucas semanas já tínhamos assistido perplexos e aterrorizados a defesa explícita de limpeza étnica palestina na Faixa de Gaza, com apoio às lideranças mais fascistas dentro da coalizão de governo chefiada por Netanyahu. Estes dois movimentos de Washington não permitem concluir que a Aliança Atlântica entre os EUA e a Europa caducou, mas está em curso uma mudança na relação política de forças dentro da Tríade, e Washington está na ofensiva para relocalizar o seu papel da OTAN impondo novas condições. O peso relativo dos EUA diminuiu e, ainda que mantenha ampla superioridade militar e supremacia financeira, não é mais possível um poder unipolar. A Rússia se consolidou como um estado imperialista que ambiciona manter influência regional, demonstrada no controle da Crimeia em 2014, invasão da Georgia, deslocamento de tropas para o Cazaquistão e Bielorrússia para defender regimes ameaçados por mobilizações populares e, finalmente invasão da Ucrânia em 2022. A Coreia do Norte permanece intacta, na fronteira de Seul, um protetorado defendido pela presença de dezenas de milhares de soldados yankees. O regime ditatorial do aparelho religioso-militar no Irã se manteve de pé, apesar de protestos da população jovem feminina e urbana. A Índia não é mais uma semicolônia anglo-norte-americana. A Venezuela possui a maior reserva mundial de petróleo e é um país independente. O fortalecimento do Mercosul sob liderança do Brasil, associado ao Chile e Bolívia, e a presença do governo Petro na Colômbia, além da resistência heroica de Cuba, indicam uma perda de influência na América do Sul, o que se agrava pela eleição de Cláudia Sheinbaum no Mexico. Não fosse o bastante, os Brics ampliaram participação com novas adesões.
6. Os EUA sob Trump estão com uma nova estratégia de preservação da hegemonia no sistema de Estados. Trata-se de uma contra-ofensiva brutal. Quem a subestimar cometerá um erro irreparável. Ela passa, essencialmente, por um reposicionamento diante do perigo representado pela China. Ela obedece ao cálculo de que é indispensável isolar o inimigo principal: Pequim. A hipótese de uma lenta absorção subordinada da China no sistema de Estados repousava num projeto que fracassou. Nos últimos quarenta anos, desde a consolidação da estratégia formulada por Deng Xiaoping prevaleceu a expectativa de que a restauração capitalista na China fomentaria a transformação de uma burguesia compradora em burguesia interna que, apoiada na rápida ampliação de uma classe média urbana, seriam sujeitos sociais de uma revolta contra o domínio do aparelho do partido comunista sobre Estado, fraturando a burocracia, repetindo, ainda que em câmara lenta, o processo na ex-URSS iniciado por Gorbatchev. Essa aposta não se confirmou. Trump tem um novo projeto em construção.
7. Outro giro da situação mundial é que o perigo de regimes autoritários é iminente e real. A subversão dos regimes democrático-liberais por dentro de sua própria institucionalidade vem se demonstrando um padrão da estratégia da extrema-direita. Muitos se interrogam na esquerda sobre as razões que explicam uma corrente de inspiração neofascista no século XXI. Acontece que o nazifascismo foi um movimento político-social dos anos vinte e trinta do século passado que respondia a várias determinações. Era uma resposta ao perigo de novas revoluções de outubro. Mas não era só isso. A dimensão defensiva era impor uma derrota histórica aos trabalhadores, destruir suas organizações, “tocar o terror”. Mas era, também, um projeto de luta pela liderança no sistema internacional de Estados. A destruição da URSS obedecia ao cálculo de uma Eurásia unificada sob liderança da Alemanha, associada à Itália e Japão.
8. Uma fração da classe dominante ocidental se deslocou para a extrema-direita para impor uma derrota histórica às suas classes trabalhadoras, erradicando as concessões feitas às ultimas duas gerações: educação e saúde gratuitos, financiamento subsidiado da habitação, transportes públicos, aposentadorias por repartição, férias e treze ou até quatorze salários ao ano. Mas esta estratégia de aceleração do movimento de acumulação de capital e superexploração obedece, também, à luta pela preservação da hegemonia mundial contra a China. A febre nacional imperialista nos EUA tem sintomas ideológicos degenerados: machismo, racismo, homofobia, anti-intelectualismo e fanatismo messiânico.