Caminhar com os pequenos no amor, na coragem e na verdade. Entrevista especial com Flávio Lazzarin

O segredo para vivermos ​num mundo mais fraterno e acolhedor aos desfavorecidos nem é um segredo, pois a transformação do mundo não virá dos grandes líderes, mas dos pequenos e de sua fidelidade à luta com os pobres

Foto: ACNUR/ONU

Por: IHU e Baleia Comunicação | 07 Janeiro 2025

Tempo de Ano Novo é tempo de renovar as esperanças em um mundo melhor. A realidade, no entanto, é mais que desafiadora; ela se converteu, em seus múltiplos conflitos e opressões aos mais desfavorecidos, numa força que nos compele ao individualismo à negação da alteridade. Contudo, uma posição política coerente com os ensinamentos de “Jesus continua obstinadamente solidária com a vida dos pobres e das vítimas e nos chama a fazer nossa a sua solidariedade, com a mesma fidelidade e obstinação. Apesar do silêncio de Deus, a partir desta certeza, encaramos tempos obscuros, difíceis e desafiadores”, descreve Flávio Lazzarin em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

“O que fazer diante destas conjunturas? Ficar satisfeitos com a condição de meros espectadores, que assistem ao trágico desfile da história? Se adaptar a certo narcisismo acadêmico, especializado em detalhadas e acertadas análises de conjuntura, que, porém, nunca se envolvem em práticas solidárias e insurgentes?”, questiona o entrevistado.

A saída está, como ensinou Jesus, com os pequenos, com aqueles que realmente têm compromisso com os verdadeiros desafios da vida neste planeta nesta cruzada epocal. “Davi Kopenawa Yanomami, quando nos fala da ‘Queda do céu’, do fim do mundo, da morte da vida na terra, causada pela economia capitalista, não se diz preocupado somente com as agressões e as ameaças reservadas ao seu povo ou aos povos indígenas, mas declara, com coragem, que está lutando pela salvação da humanidade”, recorda Lazzarin.

“Os protagonistas da transformação do mundo não são os líderes iluminados e os partidos majoritários, mas os pequeninos e as pequeninas, que, em companhia de Jesus e dos Encantados, guardam os segredos do Amor, da Beleza e da Verdade. Guardiões de um futuro, num presente em que a própria vida na Terra é ameaçada de extinção”, ressalta.

Flávio Lazzarin (Foto: Arquivo pessoal)

Flávio Lazzarin é padre italiano Fidei Donum. Formado em Teologia pelo Seminário de Mantova e em História pela Universidade de Milão. Atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão. Também é agente da Comissão Pastoral da Terra – CPT.

Confira a entrevista.

IHU – Seriam o Natal e o Ano Novo, ao menos no ocidente, um momento de trégua e renovação da esperança dos oprimidos, do sal da terra, que formam a maior parte da população brasileira (e mundial) e que vive em constante estado de exceção?

Flávio Lazzarin – Renovar a esperança, hoje, como sempre, é insistir na convicção que Jesus continua obstinadamente solidário com a vida dos pobres e das vítimas e nos chama a fazer nossa a sua solidariedade, com a mesma fidelidade e obstinação. Apesar do silêncio de Deus, a partir desta certeza, encaramos tempos obscuros, difíceis e desafiadores.

Poderíamos fazer uma listagem do sofrimento dos pobres na Abya Yala, na Pindorama e em todos os cantos do planeta e afirmar, com a Qohelet, que “nada de novo acontece de baixo do sol”, mas é preciso notar que a violência de sempre é hoje praticada descaradamente, sem medo de punição, sem freios, sem regras, sem um mínimo de piedade e compaixão, sem necessidade de negacionismos, acompanhada por uma opinião pública cada vez mais adormecida e, sobretudo, impotente.

Em que pese a consciência dos povos originários, quilombolas, camponeses e favelados, que sabem que a sua história surgiu e continua se firmando desumana, num permanente estado de exceção, que desmente a falácia da vigência do estado de direito, as conjunturas geopolíticas apresentam aspectos de uma gravidade a que as gerações nascidas após a segunda guerra mundial não estavam acostumadas.

Na contramão do legado da Revolução Francesa, as religiões voltaram a ter um equivocado e violento protagonismo na vida política do nosso país e do mundo inteiro.

Sempre, ao longo da história humana, os representantes das grandes religiões se equivocaram diante dos impérios e de suas guerras, mas hoje, a partir do difuso desencontro existencial entre religião e espiritualidade, assistimos novamente, em todo Ocidente, ao conúbio constitutivo entre o neofascismo e cristianismo católico e protestante, entre imperialismo e ortodoxia russa, entre judaísmo e estado. E, no Oriente, a renovada e multíplice redução do Islã a teocracias autoritárias, opressoras e liberticidas. E não podemos ignorar a redução da religião à política na Índia do partido Bharatiya Janata Party (BJP), do primeiro-ministro Narendra Modi, que promove um nacionalismo hindu, anti-islâmico e anticristão.

Incrível a aliança de motivações e intentos entre a ideologia pan-russa, casada com a Ortodoxia da Terceira Roma, e a teocracia xiita do Irã, os houthis do Iêmen, os xiitas do Hezbollah no Líbano, as misturas teocráticas islâmicas de matriz sunita de Al-Qaeda, Hamas, Fatah, os talibãs no Afeganistão... e... e os teóricos e os militares da Jihad, todos juntos em guerra para aniquilar o Ocidente infiel, corrupto e pervertido.

Precisa sublinhar que a ideologia-teologia antiocidental islâmica ou pan-russa encontram aliados e cúmplices em todos os movimentos e partidos da nova direita na Europa, nas “Américas” e na nossa Abya Yala. Assistimos a um processo exponencial de regressão da racionalidade, junto com a mitificação do líder carismático, o ódio sistemático reservado ao inimigo e a contestação radical da cultura gestada após a Revolução Francesa, mas guardando uma obediência canina ao sistema capitalista. Demonizam o ‘comunismo’, um fantoche por eles criado à sua imagem e semelhança e toda herança liberal, com o estado de direito e a democracia.

Os fundamentalistas estão presentes em todas as religiões e normalmente são aliados dos tradicionalistas. Ambos se refugiam atrás do antigo lema dos religiosos apoiadores das ditaduras: “Deus, Pátria, Família”, temperado com uma boa dose de supremacismo branco, de discriminação e perseguição de indígenas, negros, quilombolas, camponeses, favelados, homoafetivos... Luta de classe, que se mostra eficaz e vitoriosa, alimentando desprezo e violência contra os pobres.

Na atualidade, sem dúvida alguma, as disputas internacionais por hegemonia mudaram o jeito de administrar os conflitos a que estávamos acostumados após o fim da Segunda Guerra Mundial. De fato, por décadas, a disputa mundial pelo poder foi evidentemente conduzida através de intervenções militares. Não faltaram as guerras, mas o confronto era moderado pela estabilidade das regras e da diplomacia.

Hoje, prevalece a guerra tout court, sem regras, sem a ficção de narrativas racionais, que ‘justificariam’ o uso indiscriminado das armas e sobra a mera negação do inimigo, atitude e prática que, de fato, dispensam a máquina negacionista, porque a guerra é feita para aniquilar o inimigo sem precisar de explicações e negações.

O genocídio de Gaza é o triunfo da violência pura, sem maquiagem racional, sem sombra de arrependimentos, brutalidade e barbárie naturalizadas. Quase o começo de uma estação pós-negacionista.

Lidamos com uma conjuntura que apresenta novidades até poucos anos atrás impensáveis: a direita tradicionalmente antijudaica, se recicla através do antissemitismo islâmico, enquanto apoia irrestritamente a política genocida de Israel. E no Brasil, esta direita é apoiada por amplos setores do pentecostalismo, cujos delírios não têm explicação e parecem não ter ligação com a escatologia pregada por grupos restauracionistas norte-americanos, que apoiam Israel, esperando a batalha de Armagedom.

Fonte de preocupação diante destas conjunturas mundiais de renovada aliança das extremas-direitas com os fundamentalismos e tradicionalismos religiosos é o persistir da crise de identidade das esquerdas, que nos oferecem o espetáculo de uma verdadeira confusão das línguas, em que se misturam leituras campistas, simpatias antiocidentais com a ideologia pan-russa e o islamismo da jihad ou apoio ‘partigiano’ à resistência ucraniana. Em suma, diante da multiplicação dos imperialismos, vinga a ‘compulsão à repetição’ de um único anti-imperialismo datado e obsoleto, porque ignora outros imperialismos concorrentes e igualmente ditatoriais, liberticidas e violentos.

O que fazer diante destas conjunturas? Ficar satisfeitos com a condição de meros espectadores, que assistem ao trágico desfile da história? Se adaptar a certo narcisismo acadêmico, especializado em detalhadas e acertadas análises de conjuntura, que, porém, nunca se envolvem em práticas solidárias e insurgentes?

IHU – Vivemos tempos de temores, onde o medo se transformou em um afeto político muito poderoso. Como atravessar esses tempos sem se desesperançar?

Flávio Lazzarin – Para mim, católico, padre, agente da Comissão Pastoral da Terra, a única possibilidade que mantém uma clareza cristalina em tempos tenebrosos, trágicos e perigosos, é a permanência ao lado da luta dos povos da terra, das águas e da floresta, profecias existenciais e martiriais de um mundo novo. Além dos massacres e dos genocídios. Além da destruição da vida na Terra. Além do ódio e da mentira. Além dos identitarismos fanáticos e violentos. Além dos cemitérios da terra e do mar. Carregando a dor e o luto imenso e insuportável de quem perdeu todos e tudo por causa da guerra. Em companhia de Jesus de Nazaré, mas com o compromisso firme de cancelar qualquer instinto ou razão que possa sustentar maniqueísmos mortíferos, monoteísmos desumanos e universalismos homicidas.

IHU – Vivemos uma espécie de cruzada em escala industrial e global, na qual formam-se grupos radicalmente polarizados. O que o cristianismo histórico tem a nos ensinar sobre como superar o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia ou o massacre perpetrado por Israel contra a população civil de Gaza?

Flávio Lazzarin – Estamos presenciando, neste tempo, em Israel, à uma reedição do fanatismo zelote e, na Rússia, à reproposição da aliança constantiniana entre Igreja e Império.

Será que a decisão da comunidade de Jerusalém, que, em 66, durante a guerra judaica contra Roma, escolheu não se envolver e se exilou a Pella, na Decápolis, pode nos dizer algo imprescindível sobre as guerras da atualidade?

A comunidade judaica dos discípulos de Jesus, com certeza nos diz que, também hoje, estas guerras não deveriam ser nossas, mas, de fato, não é o que está acontecendo, quando setores significativos do mundo protestante e católico apoiam Israel, porque é Europa, Ocidente, o "nós" contra a barbárie islâmica.

Temos no Ocidente a identificação acomodada e cinicamente realista com o império norte-americano, acompanhada por uma versão anti-islâmica do antissemitismo e os países da OTAN decidiram que a soberania nacional é pretensão inútil e que é necessário permanecer amparados pelo poder econômico, político e militar dos EUA. E é Washington que fornece armamentos para Israel e para a Ucrânia.

Existem também cristãos que, por apoiar as vítimas do genocídio de Gaza, não têm uma leitura crítica de Hamas e Hezbollah, fanáticos fundamentalistas islâmicos da Jihad, decididos a derrotar não somente Israel, mas todo o Ocidente pervertido e corrupto.

Outros apoiam a resistência ucraniana à invasão russa, quando não poucos, pertencentes ao mesmo espectro político, por estar em radical oposição a OTAN, defendem as “razões” da cruzada de Putin e da Terceira Roma contra a Europa.

E não faltam os pacifistas cristãos, que, em algumas circunstâncias, se revelam irenistas, que não decidem posturas e enfrentamentos claros à lógica desumana dos impérios. Assim, aparecem também algumas incertezas políticas do próprio papa, que em algumas ocasiões se recusa a interpretar o papel de capelão do Ocidente, mas, em outras, revela quanto o constantinismo ainda afeta a diplomacia vaticana.

Em suma, os expatriados de Pella, junto com Paulo de Tarso, poderiam nos ensinar, que os discípulos e as discípulas de Jesus são chamados à oposição radical e explicita a todos os impérios.

Junto com o Templo, o Império é o antirreino. Paulo tem esta clareza, quando escolhe definir Jesus como κύριος, kurios, Senhor, em clara e polêmica oposição ao único kurios reconhecido como divindade política, o imperador romano. E é por esta infidelidade política e adesão na fé ao único Senhor que os primeiros passos do movimento cristão foram tempos de profetas e mártires.

Pensar e fazer política como Jesus e com Jesus comporta uma conversão a este “além” de Jesus, ao seu Reinado que vai “além” da pequena cabotagem dos arranjos conjunturais, “além” das corporações ideológicas, que tendem sempre à captura da religião para reduzi-la a instrumento de defesa do status quo ou ao âmbito de estratégias eleitorais.

Um “além” que deveria ser também um “contra”, sobretudo quando o cristianismo é manipulado para servir de suporte aos novos fascismos, ao ponto de virar um cristofascismo. Um “além” radicalmente crítico também da pauta defasada e omissa da esquerda, aparentemente condenada a repetir-se, esquecendo o chamado a atender com urgência às feridas mortais infligidas à Vida e aos pobres pela “religião” capitalista e seus fiéis.

Como poderíamos esquecer a oposição de Jesus ao Império romano narrada no Evangelho de Marcos, quando a diabólica legião (a X Legião Fretense?) que mora num cemitério e atormenta o endemoninhado de Gerasa (Mc 5,1-20), é expulsa e entra numa manada de impuríssimos porcos que se lançam num abismo.

Assim sonho e luto por um mundo em que ninguém passe fome e todos sejam estrangeiros, expatriados, apátridas, exilados, sem nações, estados e identidades, sem atlantismo e sem rotas da seda, sem os vírus de tradições e direitos étnicos, religiosos, culturais exclusivos, parmenídeos, judaicos ou corânicos, pan-helênicos ou pan-russos... e cristãos em todas as suas vertentes.

IHU – Qual a importância, do ponto de vista de uma virada civilizatória, de construirmos um modo de convivência para além das identidades?

Flávio Lazzarin – As novas afirmações de identidade, que me parecem mais ameaçadoras e, talvez, menos reconhecidas são as que estão sendo construídas para defender direitos permanentemente limitados, ameaçados e negados. Assim temos identidades de gênero, feministas ou LGBT, multiplicadas pelas inúmeras tendências, frequentemente em tensão e até em conflito entre elas.

A mera afirmação de identidade sempre é feita à custa de inimizades inúteis e diálogos negados. Também complica as relações internas dos movimentos e, a longo prazo, revela-se pobre e inconclusiva nos processos de insurgência.

Sinto-me desafiado, portanto, pelos identitarismos, etnicismos e tribalismos fortemente presentes nas lutas de emancipação de inúmeros movimentos políticos, normalmente considerados progressistas e antiautoritários.

Percebo, porém, que, exceto a absoluta e indiscutível liberdade e legitimidade de se afirmar como povo, etnia e gênero, existe o perigo da identidade, que, ao construir a multiplicidade, pode, em nome da própria diferença, anular qualquer determinação social comum, incluindo a agora limitadíssima categoria unitária de classe e – uma decisão que considero muito mais perigosa – a inserção no processo de construção da universalidade.

São identitarismos que a direita e a extrema-direita nos ensinaram a construir, nos deixando o insano legado da negação da fraternidade universal.

Pensem como a hegemonia da heterossexualidade machista, racista, patriarcal e homofóbica seja o sintoma mais comum da doença de sociedades que não sabem conviver com alteridades e diferenças.

E temos a autodefinição étnica, seja à direita com supremacismo branco neofascista, seja à esquerda, com derivas identitárias que não se limitam a legítima afirmação da diferença, mas contribuem à fragmentação dos grupos sociais marcados pela desigualdade e discriminação.

A resistência e a luta, porém, produzem antídotos que podem ser eficazes contra o veneno do identitarismo. Davi Kopenawa Yanomami, quando nos fala da “Queda do céu”, do fim do mundo, da morte da vida na terra, causada pela economia capitalista, não se diz preocupado somente com as agressões e as ameaças reservadas ao seu povo ou aos povos indígenas, mas declara, com coragem, que está lutando pela salvação da humanidade.

Davi emerge como uma novidade profética no contexto das tensões e inimizades seculares entre povos indígenas. Percebe como a conjuntura apocalíptica convida a viver a luta pela vida, construindo diálogos e articulações comuns, sem renunciar às próprias tradições.

Lembro, comovido, como um exemplo concreto da eficácia desta estratégia política o diálogo de reconciliação e de construção de uma luta comum entre Xavantes e Kayapós, durante o Acampamento Terra Livre, em Altamira do Xingú, em 2014. Lá estava Raoni, outro fautor e líder de amplas alianças de luta, que envolvem indígenas e comunidades camponesas tradicionais.

E não podemos esquecer, junto com os 20 anos do Terra Livre, os 10 anos da Teia dos Povos do Maranhão, que reúne e articula povos indígenas, quilombolas e comunidades camponesas tradicionais, em defesa e retomadas de territórios e ancestralidades.

Esta fidelidade à memória que atualiza as palavras dos ancestrais e a companhia de encantados e encantadas, orixás, Jesus de Nazaré e Nossa Senhora, santos e santas é a energia que anima e sustenta muitas lutas indígenas, quilombolas e camponesas. Aliás, poderíamos afirmar, sem medo de desmentida, que o enfrentamento do sistema de morte é possível somente quando as comunidades conseguem retomar, junto com os territórios, as palavras e a espiritualidade ancestrais. Numa estratégia que é a orquestração de diferenças irretocáveis, mas que tocam a mesma música. Numa aposta de universalidade, que não somente não anula, mas promove a diversidade.

E também nós católicos, filhos e filhas da Igreja da cristandade colonial, imperial e colonialista, que, também hoje, demoniza e persegue as espiritualidades autóctones, podemos participar desta caminhada.

Estaríamos derrotados se, a partir de presunções identitárias, reduzíssemos Jesus e o Evangelho a símbolos do colonialismo europeu, deixando que identitarismos dogmáticos e tradicionalismos possam ofuscar a solidariedade obstinada de Jesus com os últimos.

IHU – Quem foram as minorias abraâmicas bíblicas e quem são estas mesmas minorias hoje? Por que olhar para elas pode ser inspirador?

Flávio Lazzarin – Foi dom Hélder Câmara, como conta Eduardo Hoornaert, que, com 69 anos de idade, se afastou da política de reuniões dos bispos, na CNBB, para apostar na militância com grupos de resistência e profecia, que ele mesmo chamou de “minorias abraâmicas”. Minorias, que são sementes e fermento de um novo jeito de entender a política, superando o próprio sistema democrático, que valoriza o mero confronto para conquistar o poder através da maioria. Em lugar das maiorias, frequentemente construídas ignorando valores fundamentais, as “minorias abraâmicas” seguem o êxodo de Abraão, buscando a defesa da Vida e do Reinado de Jesus, longe dos poderes, sem impor regras, sem buscar vitórias.

Em suma, os protagonistas da transformação do mundo não são os líderes iluminados e os partidos majoritários, mas os pequeninos e as pequeninas, que, em companhia de Jesus e dos Encantados, guardam os segredos do Amor, da Beleza e da Verdade. Guardiões de um futuro, num presente em que a própria vida na Terra é ameaçada de extinção.

São as minorias indígenas, quilombolas e camponesas, que lutam cotidianamente com seus corpos e territórios contra a violência e a mentira, que nos oferecem espiritualidade e caminhos para salvar o planeta do suicídio. Esperam tudo da sua luta e não da benevolência do Estado, fiel garçom do capitalismo, como diria o subcomandante Marcos do EZLN.

Um pequeno resto fiel, que não luta para afirmar a sua identidade e a sua verdade religiosa, que não se acha o “todo”, o “bem”, puro, incontaminado, com uma autoritária, violenta, sagrada missão de salvar o mundo. Um pequeno rebanho que também não aceita se definir simplesmente como mais um instrumento de uma orquestra de diversidades, porque vive constantemente em confronto amoroso e duro com os poderes deste mundo, sugerindo antídotos para o veneno das guerras que ocorrem fora e dentro da comunidade, matando fraternidade, sororidade e a possibilidade do perdão.

Ser minoria, nestes contextos de hegemonia da guerra e da crueldade, significa levar a sério a derrota de Jesus, único caminho para a vitória definitiva sobre a maldade e a morte.

Sem dúvida, a profecia de Dom Helder tem raízes na Palavra. Pensem em Paulo inspirado por Isaías – “Os restantes se converterão ao Deus forte, sim, os restantes de Jacó” (Is 10, 21-22) – que escreve aos Romanos: “Também, agora, neste tempo ficou um resto, por livre escolha da graça” (Rom 11, 5). Todos os profetas nos falam do “resto de Israel”. E Jesus garante a seu “pequeno rebanho” que o medo não terá a última palavra (Lucas 12,32).

IHU – Como a saída de Etty Hillesum de levar em conta a coexistência da maldade e da beleza, da tragédia e da poesia, no tempo que vivemos pode ser uma maneira de enfrentar as tragédias de nosso mundo?

Flávio Lazzarin – Nestes últimos tempos, me fazem companhia, com suas vidas e suas palavras, duas jovens mulheres judias, Simone Weil e Etty Hillesum. Me parece claro o motivo pelo qual elas, a partir do passado, marcado pelo íncubo infernal do nazifascismo e do também infernal totalitarismo soviético, me interpelam e me sugerem leituras, atitudes e práticas evangélicas.

A radicalidade ética e política de Simone Weil a leva a se distanciar da mera compreensão crítica das estruturas de dominação e opressão, típicas dos intelectuais – e típicas, é claro, também de sua origem de classe – e a se envolver existencialmente com os pobres, os famintos e os desafortunados, em várias experiências de um processo de descida kenótica aos lugares mais pobres com os pobres. Ela traduz em sua vida o imperativo "como eles", que marca indelevelmente a vida de testemunhas, desconhecidas para ela, como Charles de Foucauld, René Voillaume, as Irmãzinhas e os Irmãozinhos.

Mas o "como eles" de Simone é de uma intensidade louca superior, que nos lembra Francisco de Assis, o germinal, antes das reduções canônicas da instituição e do remendo traiçoeiro do movimento franciscano, transformado na Ordem dos Mendicantes.

E Etty Hillesum viverá mais uma exegese existencial da Kenosis: era como se ela soubesse que, apesar de toda incerteza e dor, o Ágape e a beleza tinham derrotado definitivamente toda crueldade, a morte e os infernos da história. Ela, mergulhada na tragédia e numa solidariedade indefectível com o seu povo exterminado nos campos de concentração, vive em plenitude a lição da Qohelet, o chamado para desfrutar o dia na alegria, bebendo e comendo, curtindo, sem preocupações, a milagrosa beleza da vida (Eclesiastes 5,17-19).

A beleza do universo, do amor, amizade, poesia, música, os Salmos, Rilke, Mateus e Paulo, Agostinho e Dostoievski acompanham Etty, que não foi somente liberta pela beleza, mas virou corajosa testemunha do Deus, palavra viva, corpórea, do Deus crucificado que mergulha amorosamente no inferno e o cancela da geografia da vida.

Olhando para a realidade mundial que nos rodeia, não consigo me iludir com fáceis otimismos, porque percebo o crescimento esmagador do ódio e da crueldade, no cotidiano e nos confrontos geopolíticos e, ao mesmo tempo, a improbabilidade de um levante da humanidade, que possa propiciar tempos menos trágicos e sombrios.

Penso que já no presente podemos perceber que as portas do inferno neoimperial e neofascista estão escancaradas e, no âmbito institucional, sobram poucas e frágeis resistências.

E nesta percepção que intervêm as profecias de Simone Weil e de Etty Hillesum, que nos oferecem uma espiritualidade para as estações infernais da história. A silenciosa companhia de Jesus e dos 144.000 marcados com o sangue do Cordeiro.

IHU – Vivemos em um mundo de saturação de palavras, de linguagens (basta ver as redes sociais), e de poucos silêncios. Como resgatar do silêncio as palavras esquecidas que, no entanto, são capazes de nos devolver a sensibilidade de encarar e enfrentar as desigualdades do mundo?

Flávio Lazzarin – Quando a profecia é perseguida, silenciada e ignorada, para quem lê a história a partir da Cruz, deveria ser claro que, em tempo de inflação de palavras inúteis, manipuladoras e mentirosas, o calar-se das palavras verdadeiras abre a possibilidade do enfrentamento amoroso, martirial, dos infernos da história.

IHU – Ao contrário do que propõem a teologia da prosperidade e o discurso de coches cristãos, em que sentido seguir Jesus é seguir o caminho da “derrota”?

Flávio Lazzarin – Pedro Casaldáliga repetia frequentemente uma frase, que sintetiza a espiritualidade que caracterizou toda a sua vida: “Somos soldados derrotados de uma causa invencível”.

Esta é também a convicção profunda de Júlio Lancelotti, que afirma: “Eu não luto para vencer. Sei que vou perder. Luto para ser fiel até o fim. Porque se nesse sistema eu não fracassar é porque eu aderi a ele".

E, laicamente, Darcy Ribeiro, antes de Pedro e Júlio, dizia: “Meus fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Em suma, seguir Jesus significa saber que o nosso destino é a derrota, porque quem vence na história está sempre condenado a repetir ciclos de guerra e morte.

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