10 Outubro 2024
Iris Gur cresceu odiando os palestinos, que considerava seres inferiores, enquanto se colocava como superior por ser judia. Sonhava com o dia em que teria filhos para que se tornassem soldados e confiava ao Exército a sobrevivência de seu país, que imaginava cercado de inimigos ameaçadores. Até que, quando tinha 52 anos, sua filha lhe disse que não prestaria o serviço militar. Desde então, começou uma jornada que a levaria a mudar todas as suas crenças e boa parte de seu entorno. Agora, sua melhor amiga é palestina.
Nós a entrevistamos em sua casa, em Tel Aviv, enquanto Israel lançava os primeiros bombardeios contra Beirute, expandindo a guerra por toda a região.
A entrevista é de Patricia Simón, publicada por La Marea, 08-10-2024. A tradução é do Cepat.
O que acontece em sua vida para que se torne uma ativista pela paz?
Há sete anos, a minha filha mais nova, Noah, disse-me que não prestaria o serviço militar obrigatório e que se tornaria objetora de consciência. Minha primeira reação foi gritar a ela como se atrevia. Mas, depois, pensei que havia educado os meus filhos para pensarem por si mesmos. Então, empreendemos uma jornada juntas. Ela passou quatro meses em uma prisão militar. E eu comecei a fazer perguntas, a ler livros e, sobretudo, a ir à Cisjordânia com organizações como Breaking the Silence e Combatentes pela Paz. Foi assim que, aos 52 anos, conheci pela primeira vez uma mulher palestina e aí mudou tudo. Chama-se Lama e agora é a minha melhor amiga.
Agora, tenho vergonha de contar isso, mas quando eu era criança odiava o árabe, a língua. Quando tinha uma música em árabe no rádio, mudava de emissora. Pensava que os árabes eram inferiores, mais ignorantes. Quando cheguei à universidade, conheci israelenses árabes e comecei a mudar de opinião. Como professora e diretora de uma escola, conheci mais israelenses árabes e percebi que algo estava errado na minha percepção. Contudo, fazia distinção entre árabes israelenses e palestinos.
Foi quando me sentei com Lama e conversamos como amigas sobre todos os tipos de assuntos, sobre família, sobre trabalho, que todas essas ideias desapareceram. Se algo acontece com os seus filhos é como se acontecesse com os meus. Naquela conversa, ela também me disse que odiava o hebreu.
Em Israel, você pode passar a vida toda sem conhecer palestinos dos territórios ocupados. E em Gaza e na Cisjordânia, os únicos israelenses que os palestinos podem conhecer são os soldados e os colonos, normalmente muito violentos contra eles. Rapidamente, tornei-me uma ativista e me juntei aos Combatentes pela Paz, um movimento binacional que trabalha contra a ocupação e a guerra, e que promove a paz.
Em Israel, há quem me rotule como radical. O que há de radical em querer a paz? Amo as pessoas e acredito que todos deveriam viver com segurança e liberdade. É isso que faço, peço a paz e a liberdade para todos.
Algo que é difícil de compreender e de explicar fora de Israel é a forma como o regime de apartheid foi concebido para tornar muito difícil que um israelense e um palestino possam se encontrar e conhecer em uma relação de igualdade.
Penso muito sobre isso. Como pude demorar 52 anos para conhecer um palestino da Cisjordânia? Percebi que eu fazia parte do sistema que, em primeiro lugar, é uma narrativa. Nasci e cresci em uma família sionista israelense, sou a segunda geração de sobreviventes do Holocausto. Meu pai era oficial do Exército e fui educada em uma narrativa muito clara de que somos judeus, somos vítimas, que somos superiores, somos donos desta terra, um pequeno país cercado de inimigos que nos expulsariam, se deixássemos.
O sistema israelense fez um grande trabalho levantando muros, não só entre os territórios ocupados e Israel, mas também em nossas mentes. Então, eu não havia aprendido outra coisa. Fui professora durante toda a minha vida e sei que a narrativa militar atravessa as nossas vidas. Nos lares e nas escolas, formamos as crianças para irem para o Exército. E mais, quando eu era jovem, o meu sonho, como o de minhas amigas, era ser mãe de um soldado. Esperava esse momento ansiosa. Em Israel, quando você é adolescente, aprende a reconhecer os uniformes militares e a olhar para os soldados como heróis.
Outro exemplo. Em Israel, diz-se que 20% da população é árabe, mas não se utiliza a palavra palestinos. São israelenses árabes, e é assim que crescemos sem entender nada da história da Cisjordânia, de Gaza e de Jerusalém. A tal ponto que quando minha filha foi detida, fui às manifestações que os seus amigos e ativistas faziam em frente à prisão. Aproximei-me deles para pedir que não gritassem contra a ocupação, era algo que não existia na minha mente, como acontece com a maioria dos israelenses. Eles não davam crédito: eu estava negando a ocupação quando minha filha estava presa por lutar contra ela.
Você educou seus filhos no sionismo. O que sua filha viveu para romper com essa ideologia?
Aos 16 anos, minha filha foi estudar em um instituto internacional, o United World College. Lá conheceu palestinos pela primeira vez. Um deles era uma garota de Hebron, que fica a 16 km de nossa cidade natal. Também se tornou amiga de um palestino da Jordânia. Ouviu suas histórias, sobre suas famílias, sobre como uma de suas avós ainda tinha a chave de sua casa, caso pudesse voltar algum dia. Foi a primeira vez que tinha conhecimento de tudo isso. E decidiu que não iria para o Exército. Também porque é feminista e isso a impede de fazer parte de um sistema que controla e agride suas irmãs. Essa foi a sua jornada, como me abriu os olhos e acabou com todo o meu mundo. Ela é a inspiração para tudo que faço.
O que ela está fazendo agora?
Depois do Exército, passou um ano prestando serviços à comunidade, enquanto conseguia uma bolsa para ir para o exterior. Continua vivendo lá, onde faz parte de uma comunidade de palestinos, judeus, muçulmanos e cristãos que são contra a ocupação e a guerra. Desde 7 de outubro, tornou-se mais difícil ser a favor da Palestina e da existência de Israel. Foi com os seus amigos palestinos que melhor pôde conversar sobre o que aconteceu naquele dia.
E como você vivenciou aquele momento? Já era ativista de Combatentes pela Paz.
Naquele dia, foi como se o chão tremesse. Foi muito difícil. Passei por todas as fases do luto, do choro, da raiva, da sede de vingança, de questionar-me e, depois, segui em frente. Levei uma semana. No dia 9 de outubro, reuni-me com a parte palestina de Combatentes pela Paz. Foi muito difícil. A minha primeira reação foi dizer a minha companheira de Ramallah que odiava a todos. Teve um palestino que disse que não tinha sido como o que víamos nos vídeos. Tivemos uma segunda reunião e eu expliquei que precisava que eles reconhecessem a minha dor. E lembro-me que Jamal me disse: “é claro”. E continuamos.
Para os palestinos era difícil acreditar que o Hamas tinha feito o que fizeram. Passaram de vítimas a pessoas que golpeavam e assassinavam. E para nós, os israelenses, era muito fácil querer a paz quando estávamos em uma posição de poder, mas mais difícil quando estávamos sendo atacados, quando chorávamos recolhendo os corpos. E uma das frases que me permitiu continuar sendo ativista foi o que Jamal nos disse: “Superemos a dor juntos”. Tivemos muito mais reuniões porque eram um lugar seguro. Naquele momento, era muito difícil ir até as nossas respectivas comunidades e dizer: “Continuo sendo uma ativista pela paz”.
O que o genocídio de Gaza mudou?
A maioria dos israelenses e judeus está presa no dia 7 de outubro. Contudo, eu conheço pessoas de Gaza que perderam até cinquenta familiares, outras que não sabem o que aconteceu com os seus entes queridos. E está ficando cada vez mais insuportável para mim.
Eu penso com imagens. Tive, um há alguns meses, uma em que havia um monte de cinzas que me parecia familiar porque eu sabia que a tinha visto antes, em Auschwitz. No entanto, na minha imagem, essas cinzas estavam ligadas a Gaza. Quando contei isso ao meu filho, gritou comigo que não podia ser, que não é a mesma coisa, que em Gaza ocorre uma guerra, não um Holocausto. Essa é a mentalidade israelense. Contudo, para mim o que Israel está fazendo em Gaza é um genocídio. Além disso, toda semana vou ao Vale do Jordão e vejo o que estão fazendo contra os palestinos. Estamos fazendo a mesma coisa que sofremos: os pogroms, a demolição de casas, as prisões...
Em Israel, dizer o que está dizendo pode levar a prisões, ameaças e, claro, a um estigma e criminalização muito fortes. E muito poucas pessoas fazem isto. Como você vive esta realidade?
Sou mais compreendida quando conto isso no exterior do que a meus amigos em Israel. Aqui, a maioria vive fechada em uma bolha e não entende o que realmente está acontecendo na Cisjordânia e em Gaza. Era assim que eu era há dez anos. Muitos aqui pensam que estou louca e em outros países não entendem como a maioria dos israelenses está fazendo o que faz. Na Espanha, fui às escolas para explicar o que estava acontecendo. Aqui, seria impossível que me autorizassem a falar sobre essas questões.
Tenho um amigo professor que está sendo julgado por um vídeo que postou nas redes sociais sobre a ocupação. Pode perder o seu emprego. Em Israel, não se pode falar livremente sobre a ocupação. Israel não é uma democracia. A Polícia é uma polícia do governo, o Exército é um exército do governo. Um Estado sem uma polícia e um exército a serviço de seus cidadãos não é uma democracia.
Isto sim. Eu pediria às pessoas que se manifestam no exterior que não gritem “Palestina livre, do rio ao mar”, porque isso não nos ajuda a alcançar a paz. Entre o rio Jordão e o Mediterrâneo, há 14 milhões de pessoas, uma parte com o cartão da Autoridade Nacional Palestina e outra com o governo de Israel. E outros, sem nenhum, mas também nasceram aqui ou chegaram e vivem aqui. E nenhuma delas vai desaparecer. Por isso, é preciso apoiar pedindo liberdade e paz para todos.
Quando foi a primeira vez que se tomou consciente da ocupação?
A primeira vez que fui à Cisjordânia. Chegamos a uma aldeia palestina e de lá olhei para o muro que a separava do lado israelense. Quando descemos do ônibus, chegou um jipe militar com alguns soldados que apontaram armas para nós. Eu não entendia por que agiam daquela forma. Podia ser a professora deles porque tinham entre 18 e 20 anos. Perguntaram-nos o que estávamos fazendo lá.
Desde então, a situação é cada vez pior: mais soldados, mais muros, mais assentamentos, mais cercas para fechar as populações, mais demolição de casas, mais prisões de pessoas, de crianças. Israel transformou a vida cotidiana dos palestinos em algo horrível. Não têm liberdade para fazer nada, a menor ação depende do que Israel decidir. E com esta guerra, não têm trabalho, nem dinheiro, nem comida.
As televisões israelenses não mostram uma única vítima do genocídio de Gaza. Qual o papel dos meios de comunicação israelenses na desumanização do povo palestino?
É uma questão que me deixa furiosa e me frustra muito. Não creio que tenham consciência do que estão fazendo. Estão presos na velha narrativa. Não sei se acreditam que assim ajudam na segurança de Israel e que defendem o Exército. Não dizem absolutamente nada sobre o que está acontecendo em Gaza e na Cisjordânia. Acredito que algum dia a história julgará os meios de comunicação israelenses.
Você viaja semanalmente ao Vale do Jordão para acompanhar as famílias beduínas, dedicadas ao pastoreio, que sofrem contínuos ataques dos colonos para expulsá-los de suas terras com o apoio do Exército israelense. O que você pensa quando testemunha tanta violência?
Há dois dias, foi a primeira vez que usei a palavra nazista contra o povo judeu, meu povo. Se eu dissesse isso nos meios de comunicação israelenses, as pessoas ficariam muito zangadas. Mas, como diz um amigo, fazemos o que fazemos como ativistas para podermos olhar no espelho.
Cresci lendo histórias sobre o Holocausto e muitas vezes me perguntei como o povo da Alemanha, da Polônia e dos Países Baixos conseguiam viver sabendo o que faziam conosco do outro lado do quintal de sua casa. Isso é o que está acontecendo aqui e agora. Somos nós que estamos matando agora, a história está se repetindo e eu escolhi ser uma das pessoas que não guardam silêncio.
Quando se vê os colonos na Cisjordânia, portando as suas armas, prepotentes e cheios de ódio e desprezo pelos palestinos, é óbvio que são fundamentalistas com muita pouca formação e uma atitude messiânica de extermínio aos palestinos. Como é que o Estado israelenses fomentou o crescimento deste grupo que tem tantas semelhanças com uma seita?
Existem dois tipos de colonos na Cisjordânia. Pessoas que querem morar lá porque o governo subsidia para que se instalem nos assentamentos, em casas grandes, bonitas, com jardins... São pessoas que não pensam no que realmente estão fazendo, como os alemães que decidiram não olhar por cima do muro para não ver como matavam os judeus do outro lado de seu quintal.
E depois há os colonos com uma ideologia messiânica sionista, que acreditam que o povo palestino tem de sair da Cisjordânia, mas também do Líbano, de Gaza, de todas as partes. E usam jovens provenientes de lares rompidos que, em muitos casos, abandonaram a escola e que, para não viver nas ruas, acabam convivendo com estes adultos que os educam no ódio aos palestinos. Sua função é assediá-los com armas para que saiam e possam expandir os assentamentos lá.
É uma política governamental que já dura muitos anos e que o governo de extrema direita de Netanyahu reforçou colocando o Exército para trabalhar para eles. Eu vi isto estando com os beduínos. Os colonos telefonam para o comandante e este envia soldados que prendem os palestinos.
Os soldados também mudaram a forma como se vestem. Agora, há muitos que usam cordões religiosos por fora da calça. Antes, isto era impensável. Também usam quipás muito grandes e barbas longas.
Desde o 7 de outubro, o Governo não parou de dar armas aos colonos, por isso, muitas vezes, você não sabe se a pessoa que está à sua frente é um soldado ou um colono, um civil. O que está claro é que aqueles que agora têm o controle são os colonos.
Como o seu ambiente reagiu a uma mudança tão profunda em suas crenças e do que você faz publicamente?
Meus pais faleceram, mas gosto de pensar que também teriam mudado de opinião e se juntado a nós. Existem amigos de infância com quem a relação foi rompida. No entanto, o ativismo me uniu a tantas pessoas boas que ganhei mais do que perdi.
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“Israel não é uma democracia”. Entrevista com Iris Gur, pacifista israelense - Instituto Humanitas Unisinos - IHU