01 Setembro 2023
"Exceto por alguns excessivos rodeios retóricos, Francisco é guiado por um princípio básico. O pontífice argentino é contrário ao ódio tóxico, à demonização metafísica que está se desenvolvendo no decorrer deste conflito".
O artigo é de Marco Politi, jornalista italiano especializado em assuntos do Vaticano, publicado por Il Fatto Quotidiano, 31-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O novo duro ataque do governo ucraniano ao Papa Francisco é um erro. Um grave erro político. Porque presume que pode simbolicamente dar um tapa no pontífice, como foi feito no passado contra o presidente alemão Steinmaier (acusado de estar demasiado "enredado" com os russos) até o governo Scholz não ceder em todos os aspectos ao fornecimento de armas à Ucrânia e renunciando a um papel autônomo no conflito russo-ucraniano. Mas também é um erro grave pelo momento escolhido.
Em conexão com uma conferência de jovens católicos russos em Petersburgo, Francisco os exortou a serem "artesãos da paz... (e) a semear sementes de reconciliação neste inverno de guerra", haurindo da grande herança cultural de seu país, a Rússia dos santos, dos reis, de Pedro o Grande, de Catarina II, aquele “império russo de tanta cultura, de tanta humanidade”. A reação do porta-voz do Ministério do Exterior ucraniano, Oleg Nikolenko, foi violenta: o discurso papal reflete a “propaganda imperialista” russa, a missão do pontífice, “na nossa opinião, é abrir os olhos da juventude russa para o curso destrutivo da atual liderança russa”. Ainda mais violento foi o comentário do conselheiro de Zelensky, Mikhailo Podolyak: as palavras do Papa são um “encorajamento incondicional ao imperialismo agressivo, um aplauso à ideia sanguinária do ‘mundo russo’... Francisco encoraja as manias genocidas de Putin”.
A reação do porta-voz papal, Matteo Bruni, foi seca: na saudação aos jovens católicos russos, o Papa pretendia encorajar os ouvintes a promover “tudo o que há de positivo na grande herança cultural e espiritual russa e certamente não exaltar lógicas imperialistas”. As reações de Kiev conseguirão intimidar Francisco e modificar o curso da diplomacia do Vaticano?
Conseguirão ampliar o consenso em torno da plataforma política de Zelensky? É lógico duvidar disso. Porque quanto mais a guerra avança, mais evidente fica que o conflito faz parte de um jogo geopolítico em nível mundial e ninguém pode acreditar - como se expressou figuradamente o pontífice argentino - que se trate "da fábula do Chapeuzinho Vermelho e o lobo".
Certamente a Rússia de Pedro o Grande e de Catarina II foi imperial e imperialista, misturando cultura e sede de dominação. Mas é uma característica de todas as grandes potências europeias até a catástrofe da Segunda Guerra Mundial. A Grã-Bretanha e a França foram imperiais e imperialistas, a Monarquia dos Habsburgos foi caracterizada por uma sede de domínio, a Alemanha de Guilherme foi imperialista.
Francisco já o disse: o Patriarca Kirill não deveria ser o coroinha de Putin. A condenação papal dos massacres perpetrados pelos invasores russos na "martirizada Ucrânia" é contínua. No entanto, como recordou Andrea Tornielli, diretor do Dicastério para a Comunicação do Vaticano: “O Papa não é o capelão do Ocidente”. Não quer ser e nunca será. Na esteira de uma longa tradição, de João XXIII a Paulo VI e a João Paulo II.
Exceto por alguns excessivos rodeios retóricos, Francisco é guiado por um princípio básico. O pontífice argentino é contrário ao ódio tóxico, à demonização metafísica que está se desenvolvendo no decorrer deste conflito. Algo que vai além da raiva justificada contra o inimigo e (poderíamos acrescentar secularmente) do desejo legítimo de matá-lo no campo. Quando o governo de Kiev proíbe por decreto qualquer produto da cultura russa (cinema, teatro, ópera, ballet, livros, vídeos) não é uma resposta racional aos delírios e desvarios de certos discursos de Putin ou do seu companheiro Medvediev. É a explosão – assim é percebida no Vaticano – de um ódio ilimitado, do ódio de estado, contrário aos valores do humanismo europeu, um ódio que assume matizes brutalmente étnicos.
A imprensa inglesa recordou que enquanto Hitler atacava Londres, a música de Wagner continuava a ser tocada nos concertos e ninguém sonhava em aboli-la. Na Itália, lembramos que o Presidente Mattarella impediu firmemente a tentativa de grupos ucranianos de barrar a apresentação da ópera Boris Godunov no La Scala.
Francisco não aceita a ideia de um “ódio de estado”, seja por motivos étnicos seja porque é um obstáculo irracional para uma paz a ser construída. “A solução dos conflitos – disse explicitamente o Cardeal Secretário de Estado Parolin na sede da Civiltà Cattolica na presença da Primeira Ministra Meloni – não se realiza polarizando o mundo entre quem é bom e quem é mau”.
O atual clima político também pesa. Sim, há uma divergência entre o Vaticano e o governo de Kiev e parte dos governos da Europa Oriental (e há tensão entre o pontífice e a hierarquia greco-católica ucraniana). Sim, os governos da OTAN estenderam um embaraçoso cordão sanitário de silêncio em torno das iniciativas de paz promovidas pelo pontífice. No entanto, a posição de Francisco a favor de um cessar-fogo, que abre caminho para negociações de paz, encontra o aval daquela vasta parte do mundo (majoritária em termos de população) que quer acabar com esta guerra. Quem não quer se alistar sob nenhuma das bandeiras. Quem quer encaminhar uma nova ordem multilateral planetária: uma Helsinque 2 como Francisco propôs.
Daqui há poucas horas, o Papa estará na Mongólia e sua voz será ouvida novamente. Da Itália aos Estados Unidos, cresce a insatisfação com a guerra. Gritar contra o argentino, por fim, não é necessariamente uma estratégia vencedora.
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“O Papa Francisco não é o capelão do Ocidente. Não quer ser e nunca será”. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU