Por: Ricardo Machado | 19 Agosto 2017
A imponente obra A queda do céu (São Paulo: Companhia das Letras, 2015), com quase 800 páginas, escrita em parceria entre o xamã Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, converteu-se em um dos grandes livros de nosso tempo. Além de ser um rico relato das cosmologias Yanomami, “a etnografia do mundo espiritual oferecida por Davi não tem comparação na literatura etnológica e fornece, para além de uma descrição de um mundo que desconhecemos, o ponto de partida de onde se lança a crítica ao mundo das mercadorias e a advertência da queda do céu, esse fim de mundo previsto pelos xamãs Yanomami, que nós estamos conhecendo como o antropoceno”, aponta José Antonio Kelly Luciani, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Enquanto no mundo ocidental o discurso negacionista em relação ao aquecimento global ganha fôlego com discursos como os de Donald Trump, é da floresta que vem o recado e o pensamento pleno de lucidez onírica. “O que o Davi nos oferece em termos de pensamento são as relações entre o conhecimento que deriva desses sonhos, esses aprendizados oníricos, e nossas formas de aprender e apreender o mundo”, destaca. “O fato é que os relatos da segunda parte do livro – a fumaça de metal – são um catálogo de tragédias que se repetem, em maior ou menor grau, em lugares diferentes, desde a conquista até nossos dias”, complementa.
Kelly Luciani | Foto: Reprodução / Facebook
José Antonio Kelly Luciani é graduado em Engenharia Eletrônica pela Universidade Simón Bolívar, na Venezuela. Realizou mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. Até 2007 trabalhou no Ministério da Saúde da Venezuela, com o programa de saúde Yanomami. No período entre 2008 e 2009 realizou estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Rio de Janeiro. Atualmente é professor adjunto de Antropologia na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
O entrevistado apresenta a conferência A Queda do Céu. Palavras de Um Xamã Yanomami. Obra de Albert Bruce e Davi Kopenawa na segunda-feira, 21-8-2017, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU. O Evento integra a programação do ciclo A contemporaneidade em debate. Intérpretes e obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De onde vem a força de A queda do céu?
José Antonio Kelly Luciani – Essa força tem muitas fontes: num quadro mais amplo, a experiência de vida do Davi [Kopenawa] e sua habilidade de contá-la; a experiência etnográfica de [Bruce] Albert junto aos Yanomami, que o permite traduzir e organizar a narrativa dos dois lados do que o livro chama de "pacto etnográfico". Dentro deste quadro que estabelece as condições de possibilidade da obra, a etnografia do mundo espiritual oferecida por Davi não tem comparação na literatura etnológica e fornece, para além de uma descrição de um mundo que desconhecemos, o ponto de partida de onde se lança a crítica ao mundo das mercadorias e a advertência da queda do céu, esse fim de mundo previsto pelos xamãs Yanomami, que nós estamos conhecendo como o antropoceno . O livro tem muitas fontes de força, o próprio fortalecimento do Davi, que passa de ser um jovem um pouco entremundos, como tantos jovens indígenas, a ser um xamã e liderança indígena reconhecida no mundo inteiro. Enfim, há força na etnografia, no potencial reflexivo da crítica que nos propõe, na inspiração que pode gerar a relação Kopenawa-Albert...
IHU On-Line – A história do mau encontro entre os indígenas e a civilização ocidental, por assim dizer, é o nosso mais trágico eterno retorno?
José Antonio Kelly Luciani – É pelo menos um deles, e é trágico para os indígenas de uma forma muito mais brutal que para nós (não indígenas, "sociedade ocidental", nacional, envolvente etc.), que também perdemos ao acabar com os povos indígenas, mas na maioria das vezes sem sequer saber disso. O fato é que os relatos da segunda parte do livro – a fumaça de metal – são um catálogo de tragédias que se repetem, em maior ou menor grau, em lugares diferentes, desde a conquista até nossos dias. A América Latina toda está marcada pela coexistência das relações que nós aprendemos nas escolas a ver como etapas numa evolução até o estado moderno: relações quinhentistas com os indígenas coexistem em estreita vinculação com o engajamento de setores de cada nação com os mercados globalizados – o garimpo que tanto tem custado aos Yanomami é um exemplo claro dessa duplicidade que mostra quanto têm de fantasia essas narrativas de progresso por etapas na construção da nação.
IHU On-Line – Qual a contribuição de A queda do céu para o campo da antropologia e, em sentido mais amplo, para as ciências sociais?
José Antonio Kelly Luciani – O livro constitui uma contribuição a vários níveis. O mais estrito, para etnografia dos povos Yanomami: a amplitude dos temas tratados e o detalhe descritivo fazem deste livro uma espécie de enciclopédia Yanomami. Para os etnólogos, ampliando um pouco o espectro, é também uma etnografia de referência no que toca ao xamanismo, por exemplo, mas também para tudo o que tem a ver com as relações dos indígenas com o Estado, o capital, os brancos. Há outros temas muito bem tratados, como a política indígena e a política étnica... Além disso, o livro é acessível a uma audiência que não precisa ser acadêmica nem particularmente conhecedora dos povos indígenas para aprender muito sobre indígenas, a vida nas fronteiras internas dos estados nacionais, o desenvolvimento para aqueles nas suas margens...
Para as ciências sociais há muito o que dizer, pois o livro nos mostra o potencial do engajamento político-etnográfico pós-malinowskiano; o potencial de uma relação mais simétrica entre antropologia e conhecimento nativo; o potencial, enfim, de uma antropologia em reverso (sensu Roy Wagner) que de certa forma é o potencial mais produtivo, potente, interessante, a qual a prática antropológica pode aspirar no plano intelectual. O livro é uma "ciência social do observado", como disse alguma vez Lévi-Strauss para caracterizar a antropologia, com a tríplice torsão de que já não estamos frente a um "observado", mas a um "observador (indígena) crítico do observador (os Brancos)", feito em chave xamânica que se contrapõe à "ciência" e mesmo ao nosso senso comum do "social".
IHU On-Line – Viveiros de Castro sempre lembra que tradução é traição. Mas, a despeito desta circunstância, como entender o papel de Bruce Albert nesta obra? De que forma é sua relação com Kopenawa?
José Antonio Kelly Luciani – O esforço de tradução de Bruce Albert é realmente impressionante. Qualquer um que tenha trabalhado com tradução, quiçá mais ainda em se tratando de uma língua indígena, percebe a dimensão colossal do trabalho implicado em traduzir milhares de páginas de narrativa Yanomami. A opção do Albert, de traduzir à meia distância entre um estilo literal e um literário, esquivando-se tanto da incompreensão que derivaria do primeiro e da desconexão do mundo Yanomami que resultaria do segundo, é tão acertada que parece ser a única que faz justiça à língua, pensamento e vida Yanomami.
Não devemos menosprezar também o trabalho de organização da obra numa narrativa coerente e sequenciada de forma tal que o leitor acompanha a trajetória da vida do Davi a partir do cosmos e da socialidade Yanomami em direção à etnopolítica e à antropologia Yanomami dos brancos e seu mundo. Esta organização permite ver com claridade o que pode significar uma cosmopolítica Yanomami. Por último, os anexos, glossários e notas explicativas são também labores formidáveis de rigor, dando à obra abertura de audiência e qualidades enciclopédicas. E trata-se, sim, num sentido amplo, de uma traição da parte do Albert, não poderia ser de outra forma, se é o pensamento Yanomami que se objetiva veicular no livro, essa traição de si nos faz bem.
IHU On-Line – De que maneira Davi Kopenawa tornou-se, por meio de A queda do céu, um dos principais pensadores de nosso tempo? O que há de original na compreensão de mundo trazida por esta obra?
José Antonio Kelly Luciani – Kopenawa é sem dúvida um pensador, mas sua originalidade reside, entre outras coisas, em ser antes disso um sonhador. Os Yanomami, em particular os xamãs, aprendem muito sobre o mundo, e apreendem o mundo, em boa medida através dos "sonhos distantes": sonhos que permitem ver o tempo mítico, viajar a diferentes níveis dos cosmos, entrar em relação com espíritos os mais diversos, adquirir capacidades de cura, caça, conhecer lugares distantes etc. O que o Davi nos oferece em termos de pensamento são as relações entre o conhecimento que deriva desses sonhos, esses aprendizados oníricos, e nossas formas de aprender e apreender o mundo. Além disso, o Davi revela no seu livro uma inclinação propriamente filosófica de questionamento contínuo sobre a vida e o cosmo Yanomami, os motivos de seus ancestrais, a sociabilidade dos espíritos etc., assim como a vida e as motivações dos brancos, particularmente informado por sua experiência do interesse incessante dos brancos pela terra dos índios, pelos minérios e pelas mercadorias.
IHU On-Line – A obra se divide em três grandes eixos – Tornar-se outro, A fumaça do metal e A queda do céu. Como cada uma aborda diferentes desafios contemporâneos?
José Antonio Kelly Luciani – O desafio contemporâneo colocado pelo livro encontra-se principalmente na terceira parte, A queda do Céu, pois trata-se da predição xamânica do cataclismo ambiental do qual há tempo não podemos nos iludir. A segunda e primeira partes funcionam de outra forma em relação ao desafio colocado na terceira: a fumaça de metal é uma demonstração dos processos destrutivos que nos levam à situação atual e ao altíssimo custo vital que isso tem implicado para os Yanomami. Tornar-se outro, por sua vez, nos fornece os princípios cosmológicos a partir dos quais o mundo Yanomami pode construir uma crítica e uma alternativa de relação com o planeta.
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'A Queda do Céu' - O incomparável olhar Yanomami de Davi Kopenawa. Entrevista especial com José Antonio Kelly Luciani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU