03 Setembro 2024
Mesmo agora, sob essa roupa preta que cobre seu rosto, seus olhos, suas mãos, seus desejos, Maryam não se esquece da liberdade. Ela havia conseguido se formar em Economia, era 2019, era professora, estava feliz: “De manhã cedo eu ia para a academia, tomava café da manhã e depois corria para a escola”, lembra. Dois anos depois, o precipício. A fuga dos estadunidenses de Cabul, a traição do governo Ghani, apoiada pelo Ocidente. E a chegada ao poder dos fundamentalistas islâmicos, que haviam destruído o país colocando bombas contra os civis. “Os talibãs nos apagaram. Tiraram nosso direito natural de seres humanos. Eu me sinto como uma escrava, mas decidi resistir fundando uma escola clandestina”. Maryam tem 28 anos e aceita em conversar conosco do oeste do Afeganistão com a condição de “não escrever meu nome verdadeiro ou em que cidade moro”.
A reportagem é de Gabriella Colarusso, publicada por Repubblica, 31-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há poucos dias, os talibãs emitiram mais uma lei mortífera contra as mulheres, depois de já tê-las forçado a ficar em casa, proibindo-as de frequentar escolas, academias, salões de beleza e parques. Agora devem se cobrir completamente em público, até mesmo os olhos, e até mesmo em casa, se houver estranhos. Elas têm o direito de sair apenas “em caso de necessidade”. E mesmo assim, uma vez do lado de fora, elas não podem falar: não devem fazer suas vozes serem ouvidas para “não induzir os homens à tentação”. Não podem cruzar o olhar de um “homem” que não seja da família, caso contrário correm o risco de: multa, prisão, torturas, ninguém sabe ao certo porque os milicianos têm poder total sobre a vida dos cidadãos. Não existe mais direito no Afeganistão, só existe violência arbitrária.
Foi o líder do regime, Hibatullah Akhundzada, que assinou o novo decreto, um pacote repressivo que contém normas novas e já existentes para a “prevenção do vício”.
Nos últimos três anos, os funcionários do ministério prenderam mais de 13.000 pessoas por “atos imorais”. O ministro da Educação esclareceu que “assim como a educação para meninas é proibida, as perguntas sobre a educação de meninas agora também são proibidas”.
Para as mulheres, é a noite. Elas podem sair de casa por necessidade, mas somente acompanhadas por um muharram, um protetor. Caso contrário, nada de ônibus, nada de táxi. “Eu vou fazer as compras com meu marido, digo a ele as coisas de que preciso e ele fala com o comerciante, eu não posso. Se eu desobedecer, corro o risco de prenderem a mim ou a ele”, conta Maryam. Nem mesmo a morte merece clemência.
“Uma amiga minha não pôde se despedir de seu marido, que estava em estado terminal, no hospital em Cabul, porque não lhe deram uma passagem de ônibus: ela não tinha ninguém para acompanhá-la”.
Obcecados pelo feminino e pela sharia, os talibãs também proibiram imagens de seres vivos, humanos e animais, e os instrumentos musicais, bem como a própria música.
Controlam tudo, até mesmo os celulares, para garantir que não haja fotos, vídeos ou músicas. Os homens nas ruas não os carregam para não serem revistados. Eles também estão aterrorizados, deprimidos. “Eles têm medo de que os talibãs levem suas filhas pequenas para forçá-las a casamentos precoces ou para estuprá-las”.
Quando os estadunidenses foram embora, Maryam quase enlouqueceu. “Fiquei em casa por quase um ano, meu estado mental piorou: a vida e a morte já não eram muito diferentes em minha cabeça”. Foi então que, com uma amiga, fundou uma escola para garotas clandestina.
Elas se encontram no porão de um prédio e em uma caverna natural, chegando em horários diferentes para não chamarem a atenção, acompanhadas de filhos, irmãos ou maridos solidários, e coordenando-se com senhas. Escondem os cadernos e as canetas sob a burca. Alguns amigos do exterior dão uma mãozinha, graças ao último salva-vidas: a Internet. “Ensinamos costura, inglês, informática, desenho, artesanato, coisas com as quais as nossas alunas possam criar um pequeno negócio em casa”. É um trabalho muito perigoso, poderiam ser “pegas ou mortas, mas se pararmos, vamos morrer de depressão”. As Nações Unidas registraram um aumento no número de suicídios entre as mulheres no Afeganistão, uma epidemia de desespero social. Na cidade de Maryam, só há homens circulando. “Sinto falta de tomar um chá, do cheiro de um livro. A respiração entra e sai de nossos corpos, mas em essência não há vida. Em casa, ainda ouço música e canto, em voz baixa. Na escola, tentamos garantir de que nossos corações não se apaguem”. A ONU criticou as novas regras dos talibãs com tons pacatos, mas não foi suficiente: o governo anunciou que não colaborará mais com aqueles que “ofendem o Islã”.
No pátio, Maryam puxa para cima o véu amarelo que emoldura seus olhos negros e as sobrancelhas grossas, e nos despedimos. “Muitos estão pressionando para reconhecer os talibãs, mas a única ajuda que vocês podem nos dar é não fazer isso”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O regime talibã tirou até mesmo a nossa voz. Uma escola clandestina é a nossa resistência” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU