02 Julho 2024
Na última segunda-feira, 24 de junho, se celebravam as mulheres na diplomacia, em mais um Dia internacional, e Antônio Guterres, secretário-geral da ONU, escreveu no X (ex-Twitter): “Neste dia tão importante, a família da ONU saúda as incansáveis mulheres que no mundo estão construindo bases sólidas para a paz". Ele as saúda, justamente. E de longe.
O artigo é de Antonella Mariani, jornalista italiana, publicado por Avvenire, 27-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Porque no domingo, 30 de junho, as “incansáveis mulheres” da paz ficarão em casa. Excluídas da cúpula de Doha, o terceiro round de negociações sobre o Afeganistão, o primeiro em que os donos do país asiático aceitaram estar presente. O diálogo com os talibãs nunca foi interrompido nos quase 3 anos que se passaram desde a tomada do poder pelos brutais "estudantes do Alcorão". Certamente trazê-los à mesa de negociação é um bom resultado. Poder confrontar-se cara a cara com a outra parte é sempre positivo, é a base mínima para qualquer processo de construção da paz. Mas é difícil falar em sucesso, porque esse estágio comportou um preço elevado, o de colocar entre parênteses o princípio fundamental da civilização: a igualdade entre indivíduos, a igual dignidade de homens e mulheres.
No Afeganistão não existe outra metade do céu: desde agosto de 2021, quando a capital Cabul capitulou, o gênero feminino foi apagado da história. Nada de escola após a puberdade, nenhuma possibilidade de trabalho exceto no âmbito sanitário ou a ser realizado sem sair de casa, nenhuma representação política ou social. Há três anos no mesmo planeta onde mulheres presidentes, primeiras-ministras, CEOs, banqueiras, almirantes tomam decisões e fazem a diferença, consuma-se um apartheid medieval de gênero. Sem precedentes na história da humanidade, na sua ferocidade calculada em nome de um islã distorcido.
Até agora a ONU, com numerosas e periódicas "declarações" dos seus enviados especiais, culminando na Resolução 2.681/2023 do Conselho de Segurança constituiu uma barreira a qualquer possível retorno do Afeganistão na assembleia das nações enquanto não revogar as dezenas de decretos discriminatórios e, em particular, a proibição à educação e ao emprego feminino.
Mas algo mudou. Numerosos países asiáticos - em primeiro lugar China e Rússia, mas também Índia e Turquemenistão – estão firmando lucrativos negócios com o Afeganistão dos talibãs, especialmente no setor de mineração, do gás e das infraestruturas.
Enquanto isso, o Ocidente, que há três anos abandonou precipitosamente o país nas mãos de um grupo armado de fundamentalistas que, com razão, mantém o Emirado Islâmico a uma distância segura, continua a apoiar com enormes recursos toda uma população deixada à fome: no briefing realizado em 21 de junho na sede da ONU, Roza Otunbayeva, a representante especial da ONU para o Afeganistão, citou a astronômica despesa de 7 bilhões de dólares desembolsada até agora por doadores internacionais para a assistência humanitária e 4 bilhões para o apoio aos direitos humanos. Os resultados não são particularmente encorajadores, e os países doadores, ou parte deles, talvez estejam cansados de ficar à margem e querem sua parte de negócios. Não poderia ser explicada de outra forma a aceleração da história que, dentro de poucos dias, verá os representantes da ONU sentados diante dos talibãs, depois de ter concordado com as suas condições, isto é, excluir das tratativas as "incansáveis mulheres" da diplomacia, em particular as ativistas afegãs que a partir da diáspora animam o debate político, e aqueles – poucas, mas não inexistente – ainda empenhadas em seu país.
Não se trata apenas de uma exclusão física: em Doha não se falará de respeito pelos direitos das mulheres. Mas os direitos não são aqueles femininos: ao alargarem o seu olhar, os paladinos da ONU não poderão mostrar aos talibãs a sua decepção pela exploração sexual a que são submetidas as crianças devido à pobreza das famílias, ou pelos trabalhos forçados, ou pelos apedrejamentos públicos...
A reação não demorou a chegar: diversas iniciativas de protesto se espalharam no X, entre as quais a mais emblemática é o “Boycott Doha 3”, em que 100 ativistas e defensores dos direitos humanos, com a cabeça coberta, proclamam no vídeo “No women on the agenda. No women at the table” (As mulheres não estão na agenda das conversações de Doha, não há mulheres à mesa). Também no Afeganistão registram-se esporádicos protestos. Ciente de quão perturbadora e ambígua é esta evolução das relações entre os talibãs e a comunidade internacional, soam como justificativas aquelas expostas pela própria Otunbayeva em Nova York, na véspera da cúpula: “Estamos iniciando um processo de consulta com Cabul, não estamos legitimando o regime de facto dos talibãs. Uma grande parte da sociedade civil afegã, incluindo as mulheres, concorda.” Assim como não parece apenas uma “feliz coincidência” a publicação ontem do Relatório anual do Escritório da ONU contra as drogas e o crime em que se atesta, como escreveu nestas páginas a colega Lucia Capuzzi, uma queda de 95% na colheita da papoula do ópio.
Se é verdade que a abordagem a pequenos passos pode ser decisiva na diplomacia, é igualmente verdade que a comunidade internacional se curvou, ainda que contra a vontade, ao ditame dos fundamentalistas. Seja por motivos políticos ou econômicos, os pequenos passos não deveriam deixar de exigir que o interlocutor respeite os princípios básicos da civilidade. Mas é isso que acontecerá: na agenda do encontro de Doha estará presente a estabilidade regional, a economia, o tráfico de drogas, mas não a educação feminina, nem, por extensão, o respeito dos direitos humanos de um povo inteiro. Alguns chamam isso de pragmatismo ou realpolitik. Outros, e sobretudo outras, de traição.
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As incansáveis apagadas: Afeganistão, uma cúpula sem mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU