22 Setembro 2023
Shazia V. é de origem paquistanesa, mas a sua família sempre viveu em Cabul e ela ficou por lá, com seus quarenta anos, com seus dois filhos, com seu marido e com sua “companheira de vida”, a leucemia. Shazia luta para se tratar neste novo e velho Afeganistão. Shazia está terminando a sua graduação em Arquitetura graças a aulas (realizadas em segredo) em uma universidade particular estadunidense, que seria melhor não mencionar especificamente, justamente para garantir a segurança dela e de seus entes queridos.
Tivemos a oportunidade de lhe encaminhar algumas perguntas, via Facetime, com a ajuda de seu marido, que ajuda as jovens mulheres a estudar e cuidar da saúde.
A entrevista é de Dorella Cianci, publicada por L'Osservatore Romano, 18-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na Itália descobri a história dessas aulas universitárias secretas. Depois nos aprofundamos, graças às fontes afegãs, com quem colaboramos há mais de um ano, por mais detalhes, para entender qual universidade estadunidense está cuidando da alfabetização e da educação universitária das jovens mulheres do Afeganistão, usando a tecnologia do ensino a distância. Embora compreendendo perfeitamente a necessidade e o dever de confidencialidade, você gostaria de compartilhar conosco alguma ideia sobre o que significa ser mulher em Cabul hoje?
Ser uma mulher no Afeganistão abandonado pelos Estados Unidos e por todo o Ocidente significa esconder ou ter vergonha de ser mulher; significa também fingir não ter a beleza, de não sentir vontade de se instruir, de não ter curiosidade pela arte ou desejo de dirigir ou assistir a um filme. Já foi contado muitas vezes desde aquele famoso agosto, quando os talibãs entraram novamente vitoriosos em Cabul, mas essas descrições, para uma parte do mundo, estão se tornando quase folclóricas… Uma espécie de gênero literário. A realidade e os fatos são bem diferentes. Em primeiro lugar, uma parte do mundo pediu a nós, mulheres afegãs e ao resto da população, para esperar, para se colocar de lado diante de outras exigências geopolíticas.
Não somos uma prioridade: somos uma história velha, que interessou o Ocidente por um tempo e depois desvaneceu. Em vez disso, os nossos dias passam na praticidade de problemas que ninguém nem pode imaginar: posso ir visitar, sozinha, a minha mãe e meu pai do outro lado da cidade? Posso dirigir até lá? Posso decidir fazer um passeio? Posso tomar sorvete na rua? Posso realmente ter acesso aos cuidados básicos e aos medicamentos específicos para a leucemia? Posso contar às pessoas que estou doente, sem por isso sentir-me envergonhada de ter sofrido um castigo do céu? Tudo isso não é um gênero literário para preencher livros e matérias de jornais; tudo isso é um drama contínuo, que se agrava para quem não tem os recursos econômicos da minha família.
Você continua a estudar arquitetura graças a um departamento acadêmico estadunidense, mas principalmente graças ao seu marido… Quer nos falar algo sobre isso?
Os talibãs usam a internet, têm smartphones e tablets, mas essas ferramentas tornam-se um problema para nós mulheres. Charlotte Greenfield, da Reuters, escreveu e publicou um belíssimo vídeo sobre as nossas dificuldades de ter acesso à internet (e não só porque a rede aqui é muito ruim). O verdadeiro problema é que, sem o consenso de pais ou maridos, nós não podemos ter nem computadores nem a senha do wi-fi. Tenho sorte, porque o meu verdadeiro cúmplice é o meu marido, que, com amor e respeito, faz o máximo pela minha educação, pela educação da nossa filha e por outras mulheres, que em vez disso, têm de esconder tudo dos seus maridos.
As pesquisas do centro Gallup no Afeganistão desde 2019 permitem identificar as áreas onde é mais provável que as mulheres tenham acesso à internet. Os resultados indicam que as mulheres que vivem nas grandes cidades ou subúrbios têm maior probabilidade do que aquelas nas áreas rurais do Afeganistão, respectivamente 9-10% contra 2%. Os dados são significativos. Em nível regional, as mulheres nas províncias ocidentais do país têm maior probabilidade de ter acesso à internet. Na região ocidental, o número sobe para 15% de mulheres na província de Herat. As mulheres que conseguem ter uma boa rede, em Cabul, representam uma parcela muito pequena de toda a região: 3%.
O que tudo isso significa?
Cabul é o centro, mas é uma cidade supervigiada. Na cidade estão aumentando os feminicídios, as violências sexuais, a marginalização progressiva dos doentes e uma terrível situação de escravidão para as meninas, vistas como jovens esposas na idade da brincadeira e da pureza. Eu gostaria de acrescentar que a internet, para nós mulheres que a utilizamos com a cumplicidade dos nossos maridos, é também um meio de denúncia ou de conexão com familiares distantes. Mesmo antes de os talibãs reassumirem o controle em 2021, o acesso à internet era relegado a um pequeno segmento da população afegã, com carências de infraestruturas e pobreza generalizada, que impediam um uso mais amplo. A guerra traz apenas retrocesso. Após a tomada do poder pelos talibãs, o acesso à internet foi ainda mais limitado, pois o regime suspendeu várias vezes a conectividade em Cabul e noutras áreas e bloqueou milhares de websites para conter a oposição. É impossível ver Uma linda mulher, ler em tradução - sempre que possível - Pasolini, apreciar as poesias de Prévert, admirar as fotos de Doisneau e, obviamente, comprar os e-books de Salman Rushdie ou baixar as músicas dos Maneskin.
O estudioso de Ravenna, Antonio Giustozzi, para a Mondadori, escreveu que o Afeganistão não era um barril de pólvora prestes a explodir. Acrescentou: “Não estava escrito que deveria se tornar o berço da jihad em nível global. Se foi assim que terminou, deve-se a uma sucessão de eventos e decisões tomadas por diversos atores locais e internacionais, de 1978 em diante". O que você pensa sobre isso?
O problema não são apenas os talibãs, mas o mundo inteiro que abandonou este país entregue a si mesmo, ignorando durante muito tempo artigos e documentários. Desde a década de 1990, quando eu era criança, a Anistia denunciava as violências e os milhares de mortes. A realidade era até pior do que esses dados, mas a maioria não quis ver, pelo menos até ao 11 de setembro e ao ataque às Torres Gêmeas. Hoje temos de nos organizar para a sobrevivência, em Cabul, como no resto do país, porque não é possível imaginar alguma melhora.
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Afeganistão. Ser mulher em um país esquecido - Instituto Humanitas Unisinos - IHU