30 Agosto 2023
O país é um dos poucos no mundo onde as mulheres cometem mais suicídio do que os homens.
A reportagem é de Bérengère Viennot, publicada por Slate, 29-08-2023. A tradução é do Cepat.
No Afeganistão, não existem mais estatísticas oficiais. O que sabemos sobre este país, que os talibãs tomaram em 15-08-2021, é transmitido pelas poucas associações humanitárias que ainda existem lá e pelos afegãos que conseguem se comunicar com o mundo exterior; o mundo livre.
É o caso de Latifa, 18 anos, que disse durante uma entrevista por telefone que havia tentado suicídio. Latifa queria ser médica, mas nos últimos dois anos ela não teve permissão para estudar pelo simples fato de ser mulher. Seus pais, pois, organizaram um casamento para ela, com seu primo viciado em heroína. “Eu tinha duas opções: casar com um viciado em drogas e viver uma vida terrível ou me matar. Eu escolhi a segunda opção”.
Latifa é um peso morto para a sua família, assim como milhões de moças afegãs que nunca ganharão a vida, não estão autorizadas a fazer nada no espaço público e têm apenas o papel de mulheres reprodutivas desde que os loucos de Deus tomaram conta do seu país. Segundo dados da ONU, nove em cada dez mulheres são vítimas de violência doméstica, de uma forma ou de outra.
As meninas tornaram-se moeda de troca por comida; a Unicef relata ocorrências de bebês de 3 semanas que foram vendidas para salvar as suas famílias da fome. São abundantes os exemplos de moças afegãs entregues a homens com duas, três, quatro vezes a sua idade ou mais. “Eu não o quero. Se me obrigarem a ir, me mato. Não quero deixar os meus pais”: estas são as palavras de uma menina de 10 anos vendida a um homem de 70 para saldar as dívidas da sua família, publicadas pelo The Independent. Não sabemos o que aconteceu com ela.
A lista de proibições que afetam as mulheres desde a ascensão ao poder dos talibãs é interminável e vertiginosa: proibição de estudar depois da escola primária, proibição de sair sem estar acompanhada de um mahram (tutor), proibição de mostrar a menor parte do corpo em público, proibição de frequentar os salões de beleza, parques de diversões e jardins públicos, proibição de tirar carteira de motorista, proibição de ser aeromoça, proibição de frequentar piscinas públicas e salas de ginástica, proibição de trabalhar para ONGs...
Não admira que o gesto de Latifa não seja um caso isolado. Desde a chegada dos talibãs, o número de suicídios e de tentativas de suicídio por parte de mulheres explodiu no país, segundo dados fornecidos por hospitais públicos e clínicas de saúde mental num terço das províncias do país. Dado que os talibãs proibiram a comunicação deste tipo de estatísticas em muitas províncias, estas são enviadas de forma privada por trabalhadores da área da saúde e correspondem ao período que compreende agosto de 2021 e agosto de 2022. Estes dados sugerem que o Afeganistão é um dos poucos países do mundo onde as mulheres cometem mais suicídio do que os homens.
Para as meninas que ainda querem estudar, só existe uma alternativa muito pequena: conseguir uma bolsa de estudos e um visto em um país estrangeiro e partir. É o caso de Natkai, que continuou a estudar mesmo quando esse direito lhe foi tirado. Ela recebeu uma bolsa para estudar na Universidade de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, financiada pelo empresário bilionário Khalaf Ahmad Al Habtoor.
Este programa foi criado em dezembro de 2022, depois de os talibãs proibirem as mulheres de estudarem na universidade. Segundo a BBC, 100 afegãs conseguiram ganhar esta bolsa. Algumas, que já moravam no exterior, foram para Dubai.
Assim, em 23 de agosto passado, Natkai despediu-se da família e partiu rumo ao aeroporto com destino a Dubai. Mas seus sonhos desmoronaram.
“Quando os talibãs viram as nossas passagens e os nossos vistos de estudante, disseram que as moças não estavam autorizadas a sair do Afeganistão com vistos de estudo”, disse Natkai ao repórter, com a voz embargada. Ela é uma das pelo menos 60 jovens que foram retidas no aeroporto. “Três meninas que tinham um mahram já estavam no avião”, disse Natkai. “Mas funcionários do Ministério para a Promoção da Virtude e a Supressão do Vício as tiraram do avião”.
Shams Ahmad, que acompanhou a sua irmã ao aeroporto no âmbito deste programa, testemunha: “A bolsa deu uma nova esperança à minha irmã depois do fechamento das universidades aqui. Ela saiu de casa cheia de esperança e voltou aos prantos. Todos os seus direitos foram tirados dela”.
Um porta-voz do Ministério para a Promoção da Virtude e a Repressão do Vício interrogado disse não ter conhecimento deste incidente.
Algumas destas moças tinham financiado um visto para um homem as acompanhar, mas mesmo assim foram impedidas de partir. “Algumas são tão pobres e indefesas. Não têm sequer os 400 afegãos [cerca de 5 euros] necessários para a verificação dos documentos exigidos pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros”, explica o irmão de Natkai.
Khalaf Ahmad Al Habtoor expressou a sua indignação e tristeza numa mensagem de vídeo publicada no Twitter, onde escreveu: “Esta é uma grande tragédia, um golpe nos princípios da humanidade, da educação, da igualdade e da justiça”. Neste vídeo, ouvimos uma jovem contando que foi impedida de sair do aeroporto, enquanto estava acompanhada por um mahram. No fim de sua mensagem, ela implora: “Por favor, nos ajudem”.
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Afeganistão. As mulheres cometem suicídio por puro desespero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU