O czar e o mito da Terceira Roma. Artigo de Carlo Galli

Manifestante com cartaz que diz "Putin, pare" (Foto: Unsplash)

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23 Março 2022

 

"Com o declínio da Roma italiana, caindo nas mãos dos muçulmanos aquela bizantina, Moscou foi investida por uma parte da Igreja Ortodoxa e pelo poder político czarista com a tarefa de continuar e levar a termo a missão, ao mesmo tempo sagrada e imperial, das duas Romas de que se considera herdeira".

 

A opinião é de Carlo Galli, filósofo político e ex-deputado italiano, professor da Universidade de Bolonha, em artigo publicado por la Repubblica, 22-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Segundo ele, "usar, como Putin fez, uma passagem do Evangelho de João para legitimar a guerra 'patriótica' é na realidade a reativação consciente de uma fenda profunda da história russa. Ou seja, do mito identitário de Moscou como a 'Terceira Roma'".

 

"Putin também atua contra a ocidentalização da Rússia, portanto, e quer fazer frente às dificuldades de sua aventura ucraniana transformando-a em uma guerra de civilização entre um poder etnonacionalista enraizado na sacralidade e na ideologia ocidental - constata o filósofo italiano. O conflito entre o Ocidente e a Eurásia se soma, portanto, no plano de Putin, ao conflito entre o mundo católico e protestante, por um lado, e o mundo eslavo ortodoxo, do outro, entre estados democráticos e Império bicontinental. E talvez o czar espere ser respondido, por outro lado, com ondas de russofobia. Para que a hostilidade se torne irremediável".

 

Eis o artigo. 

 

Mesmo que o que todos esperam seja verdade, ou seja, que se está rumando para um acordo, o conflito russo-ucraniano deixa um mar de morte, destruição, dor, miséria, separação e ódio.

 

Levará muito tempo para curar as feridas políticas, econômicas e humanas que foram abertas pela infeliz intervenção realizada por Putin e seu governo.

 

A guerra, como se fosse dotada de uma existência autônoma, prendeu-se a si mesma e, ainda que a política tenha acreditado que poderia modulá-la conforme sua conveniência, produziu-se uma escalada não só militar, não só de crueldade, mas também de mentalidade: raciocinar em termos de amigo e inimigo tornou-se comum; projetar cenários apocalípticos não é mais ficção científica, mas uma expressão de ameaças e medos reais, infelizmente não infundados; a paz deixou de ser percebida como algo normal; as memórias individuais e coletivas serão marcadas por muito tempo pela explosão de violência sofrida pelo povo ucraniano.

 

Além disso, uma nova, profunda e dilacerante ferida foi adicionada àquelas materiais com o discurso de Putin no estádio Luzniki (na semana passada): um discurso importante porque marca um salto significativo de qualidade propagandística e ideológica, que não deve ser classificada apenas como "blasfema", como o mundo católico, junto com muitos leigos, tende a fazer. Usar, como Putin fez, uma passagem do Evangelho de João para legitimar a guerra "patriótica" é na realidade a reativação consciente de uma fenda profunda da história russa. Ou seja, do mito identitário de Moscou como a "Terceira Roma".

 

Com o declínio da Roma italiana, caindo nas mãos dos muçulmanos aquela bizantina, Moscou foi investida por uma parte da Igreja Ortodoxa e pelo poder político czarista com a tarefa de continuar e levar a termo a missão, ao mesmo tempo sagrada e imperial, das duas Romas de que se considera herdeira.

 

Uma missão confiada ao césar, ao czar, legitimado por um patriarca que lhe reconhece a superioridade; uma missão, no entanto, não mais universal, mas centrada no mundo eslavo, que recebe sua identidade e compactação, e que assim se diferencia do mundo ocidental - que, por outro lado, na idade moderna, tende a separar laicamente e humanisticamente, política e religião. A mitologia da Terceira Roma também operou durante o comunismo, que, pelo menos com Stálin, construiu um comunismo impregnado de eslavofilia, e tomou do Ocidente a técnica racional da política e da produção econômica, mas não a essência emancipatória da modernidade.

 

Putin também atua contra a ocidentalização da Rússia, portanto, e quer fazer frente às dificuldades de sua aventura ucraniana transformando-a em uma guerra de civilização entre um poder etnonacionalista enraizado na sacralidade e na ideologia ocidental. O conflito entre o Ocidente e a Eurásia se soma, portanto, no plano de Putin, ao conflito entre o mundo católico e protestante, por um lado, e o mundo eslavo ortodoxo, do outro, entre estados democráticos e Império bicontinental. E talvez o czar espere ser respondido, por outro lado, com ondas de russofobia. Para que a hostilidade se torne irremediável.

 

Muitos intelectuais russos provavelmente estremecem diante dessa manobra do autocrata de Moscou, que põe fim à ocidentalização da Rússia pós-comunista, comprometendo seu desenvolvimento democrático. No entanto, a escalada ideológica aprofunda a ferida que a guerra abriu; estamos agora diante de um conflito que não se explica apenas com a economia política, nem apenas com a geopolítica; a hostilidade atingiu agora sua forma extrema: tornou-se uma inimizade teológico-política. Entre as tarefas da paz estará também esta: operar uma desescalada ideológica eficaz e credível, sair da guerra religiosa, recuperar uma humanidade comum.

 

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