25 Outubro 2024
"A solidariedade e o consenso social baseados no sangue das vítimas são condenados pelo condenado que inaugura uma nova forma de morrer, como um protesto desarmado e amorosamente revolucionário contra os poderes religiosos e políticos que são constitutivamente violentos e sanguinários".
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicado por Settimana News, 23-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estou refletindo sobre a história de Antígona, narrada por Sófocles, e, disposto a aceitar conexões inevitáveis, reencontro seu pai, Édipo, o Édipo de Renè Girard, que revela suas trágicas limitações no confronto com Jesus de Nazaré.
Édipo se submete, de fato, à lógica sacrificial do poder e da sociedade e aceita como justo o veredicto que o exclui de Tebas, enquanto Jesus não reconhece a legitimidade sacrificial dos poderes que o condenam à morte.
Jesus se opõe radicalmente à lógica de Caifás e do Sinédrio: “É melhor que um homem morra pelo povo” (Jo 18,14). A solidariedade e o consenso social baseados no sangue das vítimas são condenados pelo condenado que inaugura uma nova forma de morrer, como um protesto desarmado e amorosamente revolucionário contra os poderes religiosos e políticos que são constitutivamente violentos e sanguinários.
Certamente devemos distinguir a violência dos Estados dirigidos por ditaduras nazifascistas daquela dos Estados inaugurados por revoluções, a jacobina e a mais recente de matriz marxista-leninista. E é a distinção óbvia e necessária entre imperativos categóricos alternativos que inspiram a defesa armada de privilégios, racismos e opressões, ou caminhos de justiça, direitos e solidariedade.
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De fato, porém, o amor pela justiça, religiosamente absolutizado, kantianamente categórico, se transforma em tragédia com a determinação férrea e tirânica dos Robespierre e dos Stalin. No final, as motivações iniciais parecem realmente desaparecer. E o que resta é a cega obediência ao imperativo categórico.
Exemplar é a história do comunista tchecoslovaco Artur London, contada em um filme de 1970 dirigido por Costa-Gavras, “A Confissão”. London, em 1951, durante os expurgos stalinistas, é preso, torturado e forçado a confessar culpas e crimes que nunca cometeu; ele inicialmente resiste, mas depois escolhe, apesar de sua inocência, justificar ideologicamente seus acusadores para permanecer fiel ao credo comunista. Como não suspeitar da possibilidade de uma analogia com a obediência cega de Adolf Eichmann ao Führer, que ordenou o extermínio dos judeus, narrada por Hannah Arendt em seu livro A Banalidade do Mal, em 1961?
São as formas de fidelidade às ideologias e às personalidades autoritárias que expulsam a ética da política. E sabemos - se não persistirmos em nos iludir e enganar - que essa nossa história continua a se repetir.
A partir da “morte de Deus” e da insustentabilidade filosófica e jurídica do poder de direito divino, a Revolução Francesa inaugurou uma sucessão de poderes legítimos, todos eles, no entanto, oriundos de estados de exceção, de rupturas ilegítimas e violentas da ordem constituída.
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Parece-me, no entanto, que a evidência negativa mais marcante não seja o imbróglio jurídico, mas sim a expulsão da ética do campo político pela direita, que abandona os argumentos e opta pela força bruta; e pela esquerda, que privilegia a dialética ou, em suas piores e atualmente mais frequentes performances, o pragmatismo e o oportunismo.
E eis que aqui, finalmente, reaparece Antígona, que há vinte e cinco séculos procura nos revelar a poderosa e mortífera ilegitimidade do poder político. Tebas é um exemplo da instabilidade do poder político, sujeito a sangrentas disputas familiares: Laio, Édipo, Etéocles e Polinices, Creonte. Dois irmãos lutando pelo trono. Ambos morrerão no confronto, mas Creonte, o novo soberano, decide privilegiar a memória de Etéocles e deixar o cadáver de Polinices aos abutres, sem os ritos fúnebres prescritos. Em nome de Outros - deuses, afetos fraternos, valores, ética - Antígona escolhe ficar do lado da vida, opondo-se às decisões mortíferas do poder. Ela cuidará do corpo do irmão e, por sua desobediência, será perseguida e ameaçada de exílio e morte. No final, restará a ela o suicídio como a arma definitiva de luta contra a injustiça.
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Como não apagar da memória a história de Zênon, filósofo, cientista e alquimista, narrada no romance de Marguerite Yourcenar, “A Ópera em Negro”, em 1968? Estamos na Bélgica, no século XVI, e Zênon, após anos de estudo e andanças pelas cortes europeias com ameaças da Igreja, consegue se esconder com um nome falso, levando uma vida simples e escondida como médico. Mas, no final, será descoberto e entregue ao tribunal da Inquisição. Na prisão, antes de ser executado na fogueira como herege, Zênon se suicidará para arrancar dos inquisidores o poder injusto e ilegítimo de matá-lo. Como não lembrar o suicídio em massa dos milhares de zelotes e famílias judias que sofreram o cerco das legiões romanas na fortaleza de Massada em 73 d.C.? Eles escolheram a morte para privar o império agressor do poder de decidir seu destino. Mesmo nesses casos, literários e históricos, a escolha de morrer é um ato extremo contra a injustiça e a prepotência das religiões e dos impérios.
A aceitação da inevitabilidade da morte, que se transforma no último recurso desarmado na luta contra o poder político, nos leva de volta a Jesus de Nazaré e àqueles “que vieram da grande tribulação, e lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14): os mártires que o imitaram e o seguiram na derrota da Sexta-feira Santa. Em suma, seguir Jesus é saber que nosso destino é a derrota, pois quem vence na história está sempre condenado a repetir ciclos de guerra e morte.
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Pode surgir uma dúvida, então, sobre a possibilidade de uma abordagem cínica e desencantada que exclua qualquer compromisso a serviço da justiça e do bem comum. Mas a vida pública de Jesus, conforme testemunhada pelos quatro evangelhos, nos fala de seu projeto de fraternidade e de sua práxis indignada e amorosa.
Optar por uma teologia da derrota significa talvez que Antígona, Zênon e Jesus dão testemunho de uma idêntica opção fundamental? Meditando sobre a radicalidade que caracteriza as três biografias, certamente não podemos negar profundas analogias, mas Jesus, o Messias, leva incomparavelmente ao extremo o tema da morte como vitória, o tema da derrota da Cruz como Glória, o sepulcro vazio como impensável e indizível Ressurreição.
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A violência que está em nós. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU