25 Mai 2024
Muitos anos se passaram, mas a memória de uma controvérsia filosófico-teológica que foi muito importante para mim continua a ressoar em meus pensamentos. É o embate entre duas filosofias: a de Aristóteles, e seu fiel discípulo Tomás de Aquino, e a de Guilherme de Occam, o "ancestral" filosófico da Reforma Luterana.
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre Fidei Donum, italiano, atuando na diocese de Coroatá, MA.
Segundo ele, "tomistas e agostinianos, por opção ou por limitações críticas, ainda são os protagonistas do roteiro teológico e parece impossível aceitar o pensamento occamista, que deveria nos levar a rever profundamente a relação entre filosofia e teologia. Ele nega qualquer valor especulativo à teologia e até a própria possibilidade do uso ancilar do pensamento filosófico. Uma antecipação da sola fide luterana, mas, evidentemente, sem a platônica influência de Agostinho".
É de Aristóteles o conceito de substâncias primeiras e segundas. As substâncias primeiras são as realidades materiais, concretas, únicas, particulares, individuais, que encontramos em nossa experiência diária. Já as substâncias secundas pertencem ao mundo da abstração, onde se promovem critérios de universalidade, a fim de superar a fragmentação da realidade. Na verdade, no entanto, os "universais" de gêneros, espécies, categorias e classes de seres são considerados como realmente existentes: substâncias secundas.
Mas, para Occam, não há substâncias secundas; um animal ou um homem são os únicos seres, substanciais em todos os aspectos, enquanto a animalidade ou a humanidade são simplesmente nomes, ideias, que não podem ser reificadas. A esse respeito, Occam, em carta enviada ao papa João XXII, exilado em Avignon (1324), chega a negar que exista tal coisa como a Ordem Franciscana, pois o que realmente existe são apenas os frades franciscanos espalhados pela Europa. Não poderia ele ter acrescentado que a Igreja também não existe, porque, concretamente, só há cristãos espalhados pelo mundo?
Occam, com sua navalha, consegue "matar dois pássaros com uma cajadada só": contra Aristóteles, ele priva as chamadas substâncias secundas de qualquer realidade e as reduz a meros nomes; e, além disso, reafirma a concretude do existente, contra as ilusões metafísicas de Platão, que colocava o princípio da realidade verdadeira apenas no mundo das ideias, que ele definia como substâncias primeiras, negando substancialidade ao mundo sensível feito de cópias desbotadas das ideias e, por isto, substâncias secundas.
Há sete séculos, com Occam, deveríamos ter entendido definitivamente quanto dano o pensamento dos dois grandes gregos causou à teologia e à espiritualidade cristãs. O desafio, por outro lado, persiste e nos acompanha como um retrovírus sem cura. De fato, tomistas e agostinianos, por opção ou por limitações críticas, ainda são os protagonistas do roteiro teológico e parece impossível aceitar o pensamento occamista, que deveria nos levar a rever profundamente a relação entre filosofia e teologia. Ele nega qualquer valor especulativo à teologia e até a própria possibilidade do uso ancilar do pensamento filosófico. Uma antecipação da sola fide luterana, mas, evidentemente, sem a platônica influência de Agostinho [1].
E a polêmica filosófico-teológica, no entanto sem qualquer referência explícita à navalha de Occam, reaparece nestes tempos de crimes e abusos eclesiásticos, quando somos quase forçados a retomar um tema teológico antigo: a casta meretrix, a Igreja como casta prostituta.
O primeiro confronto, que lembro indireto, mas recuperado por muitos comentadores, é o entre o cardeal arcebispo de Bolonha, Giacomo Biffi, [2] e o historiador Giuseppe Alberigo [4], e o segundo, também sem diálogo entre os debatedores, entre o teólogo Leonardo Boff [3] e o Papa Bento XVI.
Biffi nos mostra claramente que Santo Ambrósio foi o único Padre da Igreja a usar a expressão casta meretrix quando, comentando Josué 2, vê na prostituta Raab um símbolo da Igreja. Raab esconde em sua casa os espiões enviados por Josué e, ao fazê-lo, faz algo que é próprio da Igreja. A Igreja, nesse sentido, seria uma prostituta, não por ser pecadora, mas porque castamente seduz os pecadores e os salva. Para Ambrósio é uma Igreja absoluta e permanentemente casta. Assim, a expressão casta meretrix não afirma que a Igreja é santa e pecadora, mas que ela é santa e imaculada, porque atrai pecadores. É a casa dos pecadores, mas é uma casa santa.
Acompanhado de Occam, permito-me presunçosamente expressar uma dúvida: essa leitura da Igreja, com o método alegórico-espiritual, herdado de Orígenes, não importaria, quase clandestinamente, a supremacia platônica da ideia, a única realidade absoluta, bela e não contaminada, sobre os limites da letra e da exegese histórico-literal. Indo além do véu da letra? Ir além do mundo aparente da realidade material?
O uso da expressão casta meretrix é característico das eclesiologias pós-conciliares, que propõem uma leitura da Igreja semper reformanda. É justo lembrar Hans Küng [5], Alberigo, discípulo de Lercaro e Dossetti, e o nosso Leonardo Boff, entre muitos outros, mas a dúvida continua: a Igreja de que falamos é a substância segunda aristotélico-tomista ou a ideia absoluta e não contaminada de matriz platônica?
Uma última perplexidade: por exemplo, tanto Küng quanto Boff insistem principalmente nos pecados da instituição eclesiástica, talvez esquecendo a necessidade de pensar em uma reforma que diga respeito aos "frades espalhados pela Europa", como escreveu Occam ao Papa João XXII. Nesta perspectiva, dizer casta meretrix coincide com o simul justus et peccator de Lutero.
Ou seja, somos inseparavelmente santos e santas, pecadores e pecadoras ao mesmo tempo. Na caminhada. Sem poder simular santidade, sem poder ignorar pequenas e grandes infidelidades, mas, apesar de tudo, chamados a ser testemunhas do ágape, desse Amor que insiste em amar-nos. Ágape corajoso, envolvido com a realidade concreta da Vida e da história, as "substâncias primeiras" dos pobres e oprimidos, que reivindicam Vida em plenitude, a justiça do Reino, a verdade, a paz, em oposição radical aos poderes deste mundo.
[1] Vale ressaltar o Declaração Comum sobre a Doutrina da Justificação (Disponível aqui), 1997, Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos, com o qual um conflito teológico secular é ecumenicamente superado.
[2] Biffi, Giacomo, "Casta meretrix". Ensaio sobre a eclesiologia de Ambrósio, Casale Monferrato 1996
[3] Alberigo, Giuseppe, disponível aqui. Igreja Santa e Pecadora: Conversão da Igreja?, Qiqajon, 1997
[4] Boff, Leonardo, A Igreja-instituição como "casta meretrix", 23/02/2013 (diponível aqui), Blog Leonardo boff
[5] Küng, H., La Chiesa, Queriniana, Bréscia 1972
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“Casta meretrix” e a navalha de Occam. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU