09 Junho 2021
"'A terra foi constituída como bem para todos, ricos e pobres: porque então, ó ricos, estais reivindicando o direito de propriedade da terra?'. Estas são algumas das linhas de abertura desse escrito de páginas abrasadoras, sempre proclamadas em tom veemente, raiadas de indignação e incessantemente dirigidas aos proprietários de terras", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 06-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Padres da Igreja. Ciente da injustiça para com Nabote, o bispo denunciou a idolatria da propriedade privada e da filantropia muito ostensiva. Quando o papa Francisco na encíclica Fratelli tutti (n. 11-120) repropôs essa tese, foi disparada a costumeira carga de reclamação por parte de alguns teólogos improvisados e agnósticos devotos que viram ali fumaça de comunismo. Trata-se do primado da destinação universal dos bens aos quais a propriedade privada, assumida pelos citados adversários como dogma supremo, deve subordinar-se como instrumento operativo.
Na realidade, o pontífice não fez nada além de alinhar-se a uma tradição cristã secular que defendia até o limite, como o famoso Padre da Igreja Oriental São João Crisóstomo que não hesitava, no século IV, - em sua obra dedicada ao pobre Lázaro da parábola do Evangelho (Lc 16,19-31) – a declarar que “não dar aos pobres parte dos próprios seus bens é roubar dos pobres, porque o que possuímos não é nosso, mas deles”. Porém, se quisermos chegar aos nossos dias, aqui está São João Paulo II que na encíclica Centesimus annus (1991) reiterava que “Deus deu a terra a todo o gênero humano, para que sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém". Para ele, o princípio do uso comum dos bens criados para todos é "o primeiro princípio de toda a ordem ético-social".
O Papa Francisco na referida Fratelli tutti formalizou esta tese tradicional: “O direito à propriedade privada só pode ser considerado um direito natural secundário derivado do princípio do destino universal dos bens criados ... Acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática”. Nesta linha, propomos agora a forte atestação de um dos grandes Padres da Igreja Ocidental, que teve uma importante carreira política como governador imperial às suas costas.
Todos reconhecem neste perfil Santo Ambrósio, bispo de Milão de 374 a 397. A obra a que agora nos referimos se intitula A História de Nabote, um logo que pode parecer extravagante para quem não está acostumado com a Bíblia. O núcleo a partir do qual se desenvolve essa homilia escrita encontra-se, de fato, em c. 21 do Primeiro Livro dos Reis, uma página para ler por causa da extraordinária atualidade que revela contra as prevaricações do poder, da corrupção da magistratura, do silêncio cúmplice da opinião pública.
A única e solitária voz que havia se levantado, apontando o dedo contra a injustiça - perpetrada contra este simples e honesto fazendeiro chamado Nabote pelo rei de Israel e sobretudo sua implacável consorte, a princesa fenícia Jezabel - tinha sido aquela do profeta Elias, que arrisca a própria vida (não é necessário explicitar as alusões à nossa contemporaneidade). Sobre essa base bíblica Ambrósio - que, não esqueçamos, era dotado de forte personalidade - teceu sua aplicação viva e peremptória com implicações político-sociais, denunciando a esclerosada idolatria da propriedade privada à custa e não em função da destinação universal dos bens. “Até onde estendem, ó ricos, os vossos desejos insanos? Vais por acaso habitar sozinhos a terra?...A terra foi constituída como bem para todos, ricos e pobres: porque então, ó ricos, estais reivindicando o direito de propriedade da terra?”.
Estas são algumas das linhas de abertura desse escrito de páginas abrasadoras, sempre proclamadas em tom veemente, raiadas de indignação e incessantemente dirigidas aos proprietários de terras, de posses, de bens que ignoram a multidão de miseráveis que não jejuam como ato ritual, mas apenas por necessidade. Mesmo uma certa filantropia alardeada como uma honraria, é varrida até com o sarcasmo.
La storia di Naboth Ambrogio di Milano
Org. Domenico Lassandro e Stefania Palumbo
Loescher, p. 327, s.i.p
De fato, Ambrósio continua: “Você não dá ao pobre o que é seu, mas você devolve o que é dele. Você sozinhos se apossa do que foi dado a todos, para que todos o usassem em comum. A terra é de todos, não só dos ricos ... Você, portanto, restitui o que é devido, não dá de presente o que não é devido”. Essa também será a voz da Igreja subsequente na esteira do bispo de Milão, tanto que alguns séculos mais tarde um papa, Gregório, o Grande, em sua Regra pastoral, chegará ao ponto de definir os praticantes como "criminosos pela ruína do próximo" os praticantes de uma generosidade interesseira e hipócrita, porque" quando oferecemos algo necessário aos pobres, devolvemos-lhes o que já é deles, não damos o que é nosso, cumprimos uma dívida de justiça, não realizamos uma obra de misericórdia".
Deixamos, portanto, ao leitor a tarefa de “escutar” a voz veemente de Ambrósio, cristalizada nos vivazes 17 capítulos em que a obra se divide, deixando-se guiar pela exemplar tradução acompanhada pelo texto original e pela introdução de Domenico Lassandro e Stefania Palumbo pela série Corona Patrum Erasmiana. Mas para aqueles que desejam penetrar todas as nuances, nas minúcias, nas iridescências literárias e teológicas de quase todas as palavras do texto de Santo Ambrósio, esses estudiosos anexaram um "comentário" monumental que revela um poderoso arcabouço científico e uma paixão fervorosa.
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Ambrósio contra o capital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU