E tem um único objetivo, ensina o Papa Francisco: “levantar os caídos, curar os quebrantados de coração, libertar de todas as formas de escravidão”
Quatro anos atrás, quando o mundo todo foi atingido pela pandemia de Covid-19, surgia não só a pergunta rotineira sobre se havia razões para celebrar o Natal, mas também se naquele contexto era possível alegrar-se com o Natal. Todos os anos, imersos nas diversas dificuldades impostas pela realidade e assombrados com a violência, a morte, as guerras, injustiças e sofrimentos, a mesma pergunta ressurge: há razões para celebrar o Natal? Ou como celebrar o Natal com a devastação ao nosso redor, com tantas pessoas passando necessidades: fome, frio, afligidas por doenças, angústias, sofrimentos, abandonadas, sem teto, sem esperança.
Em 2020, a pergunta sobre a celebração do Natal naquele contexto foi respondida, entre outros, pela mensagem natalina do Conselho Mundial das Igrejas – CMI, com a lembrança da "esperança frágil da criança na manjedoura”.
Hoje, quando a resposta a essas perguntas deseja fechar nossos corações para o sentido deste dia e, mais amplamente, para o sentido da vida fraterna, diversos são os grupos de resistência que encontram na ocasião do Natal a oportunidade para denunciar as injustiças cotidianas e manifestar esperança em outros modos de vida.
Um exemplo é o ato promovido pelo movimento Vida Além do Trabalho – VAT, na sexta-feira, 20-12-2024, que visa à conscientização da redução da jornada de trabalho e de jornadas exaustivas que dificultam a vivência de outras dimensões da vida, para além do trabalho, e são causa de inúmeros transtornos mentais. “A sobrecarga física e mental a qual estão submetidos esses trabalhadores, em especial pela ausência nas festas de final de ano em família, é alvo de denúncia pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT)”, informa o Brasil de Fato sobre as manifestações. “'Feliz Natal para quem?', questiona a convocatória nacional e traz como lema 'por um Natal sem escalas criminosas'”.
Outro exemplo de resistência e esperança vem da pressão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST pela desapropriação de áreas antes do Natal. Segundo reportagem do Brasil de Fato, “o governo federal irá desapropriar cinco áreas onde estão instalados acampamentos do MST. O movimento, por sua vez, pressiona para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assine os decretos antes do Natal. Os acampamentos somam 9,4 mil hectares”.
A iniciativa, conta Ceres Hadich, da direção nacional do MST, tem como finalidade permitir que novas famílias comecem o ano com direito ao território e tenham condições de ter uma vida saudável. “A gente tem chamado de 'Natal sem fome e Natal com terra'. Para nós podermos avançar na construção da reforma agrária popular, no fortalecimento dos territórios de reforma agrária, na produção de alimentos saudáveis, e para nós podermos consolidar um processo de justiça social das famílias que estão acampadas hoje no Brasil”.
Dentro do Movimento, outra voz de resistência chama atenção para a sustentabilidade do modelo agroexportador adotado na América Latina e para as implicações socioambientais das escolhas políticas na vida dos latino-americanos. “Tenham coragem de colocar freio na ganância das empresas europeias, que são os grandes produtores de agrotóxicos que estão envenenando a América Latina. Eu me refiro à Syngenta, à Bayer, à Basf e à DuPont”, disse João Pedro Stédile recentemente em uma audiência no Parlamento Europeu.
Dos povos tradicionais diretamente implicados pelas políticas que não os beneficiam, mas, pelo contrário, impedem e dificultam a reprodução de seu modo de vida, escuta-se outro grito de resistência. A Grande Assembleia da Aty Guasu, que representa os territórios Kaiowá e Guarani do estado de Mato Grosso do Sul, um dos polos do agronegócio brasileiro, veio a público neste mês para “externar sua preocupação em relação às tentativas de negociação anunciadas e já inauguradas pelo governo federal” no estado. Segundo a nota divulgada pelos indígenas na página eletrônica do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, as iniciativas “apresentadas como um novo modelo de política indigenista, nada mais são do que instrumentos nocivos aos direitos indígenas que sempre estiveram presentes nas pautas e nas bandeiras do ruralismo, como na PEC 215. Trata-se de uma verdadeira armadilha para os povos indígenas de nosso país, sendo o Mato Grosso do Sul uma espécie de laboratório do que se pretende replicar nos demais Estados brasileiros”, afirmam.
Apesar de todas as iniciativas de destruição dos territórios tradicionais, 8,5 mil localidades indígenas estão distribuídas pelo Brasil, segundo os dados do último censo do IBGE, como sinais de resistência e esperança. A eliminação de áreas florestais e terras tradicionais, no entanto, é uma das causas da migração de 62% dos indígenas do Amazonas, na floresta amazônica, para as cidades. Em outros dois estados brasileiros, Paraíba e Santa Catarina, etnias resistem e lutam pela manutenção de seu modo de vida. Neste mês, eles comemoram a homologação de três novas terras: Monte-Mor, Morro dos Cavalos e Toldo Imbu. Um motivo de esperança para a geração presente e futura.
As inquietações que nos rondam a cada ano, exemplificadas em vidas concretas que aspiram por dias melhores, remetem, por outro lado, à recomendação de São Pedro: estar “sempre prontos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la pede” (1Pd, 3-15).
Uma mensagem de esperança que conduz a mudanças práticas é encontrada na Carta Encíclica Fratelli tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social, como relembra o teólogo Leonardo Boff em uma de suas reflexões no tempo do Advento. “Na encíclica Fratelli tutti confrontam-se dois paradigmas, o do dominus (dono) com o do frater (irmão/irmã). Pelo dominus, o ser humano, se entende fora e acima da natureza, como senhor e dono dela; usando o poder da tecnociência tornou mais confortável a vida, mas ao mesmo tempo, levou à atual crise devastadora dos ecossistemas e ao princípio de autodestruição com armas, capazes de liquidar a vida na Terra. A este paradigma o Papa apresenta na encíclica Fratelli tutti, o da fraternidade universal”.
A devastação causada pelos eventos climáticos extremos em diversas regiões do globo neste ano foi causa de dor, inúmeros deslocamentos forçados, migrações ainda não resolvidas e perdas incalculáveis. Mas foi também o início de novos recomeços e tempo de agarrar-se à esperança. Na sabedoria de Santo Agostinho, acrescenta Boff, encontra-se um modo de refletir sobre essa situação: “A vida nos dá duas lições: uma severa, do sofrimento e outra agraciada, do amor que nos leva a fazer atos criativos e inusitados. Provavelmente iremos aprender do sofrimento que virá, mas muito mais do amor que ‘move o céu e todas as estrelas’ (Dante Alignieri) e nossos corações. A esperança não nos defraudará assim nos prometeu São Paulo” (Rom 5,5).
No vídeo do Papa deste mês, Francisco nos convida a sermos testemunhas da esperança cristã num contexto de pobreza material e existencial, guerras, violências, migrações, eventos climáticos extremos que geram novos desabrigados e deslocados. “Quando não sabes se amanhã poderás dar de comer a teus filhos, ou se o que estás estudando te permitirá ter um trabalho digno, é fácil cair no desânimo. Onde buscar a esperança? A esperança é uma âncora. Uma âncora que se joga com a corda e afunda na areia. E nós temos de estar agarrados à corda da esperança. Bem agarrados. (…) Vamos encher nosso dia a dia com o dom da esperança que Deus nos dá e permitamos que através de nós ela chegue a todos que a procuram”.
A esperança, já tinha explicado o Papa em 2016, é uma virtude que “nos dá muita força para caminhar na vida”. Numa das catequeses de maio deste ano, ele ensinou: “A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos Céus e a vida eterna como nossa felicidade, que não é conquistada pelo mérito próprio, mas é um dom que vem diretamente de Deus. (…) Quem é animado pela esperança e é paciente, torna-se capaz de atravessar as noites mais escuras. Esperança e paciência caminham de mãos dadas”.
A esperança também reaparece na mensagem do Papa Francisco para a Jornada Mundial da Paz, a ser celebrada no dia 01-01-2025. Com o tema “Perdoa as nossas ofensas, concede-nos a tua paz”, em alusão à oração do Pai Nosso, ensinada por Jesus (Mt 6,7-14), o pontífice explica que “a esperança é superabundante em generosidade, não é calculista, não olha para a contabilidade dos devedores, não se preocupa com o seu próprio lucro, mas tem um único objetivo: levantar os caídos, curar os quebrantados de coração, libertar de todas as formas de escravidão”.
Motivado por esta virtude teologal, o Papa sugere à humanidade, particularmente aos Estados, três ações concretas de esperança para “devolver a dignidade à vida de populações inteiras e colocá-las de novo no caminho da esperança”. São elas:
Sem esperanças, atribulados pelas rotinas exaustivas de trabalho ou angustiados em suas próprias dores, muitos são os que não encontram motivação para a celebração do Natal. Mas a experiência deste dia, acentua o sociólogo Rafael Santos Silva, professor na Universidade Federal do Ceará e membro do Movimento Igreja em Saída, “passa pela radicalidade do cristianismo. Sem trilhar esse caminho, o Natal dar-se-á na banalidade de presentes frios. Ceias mórbidas de mesas fartas”. A celebração do Natal, ao contrário, esclarece, “é, na melhor expressão de Joseph Ratzinger, a ‘completa hominização de Deus’. Dito de outra forma, é Deus se fazendo homem pelo nascimento. Pela recuperação da esperança diante à mais completa tirania”.
Na vida prática, esclarece, “o cristianismo não é a religião do branco colonizador embora a história, especialmente na América Latina, esteja recheado de relatos em contrário. Mas trata-se de uma experiência mais profunda e de encontro com o novo”.
É este encontro que permite muitos cristãos desejarem os mesmos itens da Lista de Natal de Frei Betto:
“Neste Natal, não quero essa pavorosa troca de produtos entre mãos que não se abrem em solidariedade, compaixão e carinho despudorado. Quero o Menino solto no mais íntimo de mim mesmo, semeando ternura em todos os canteiros em que as pedras sufocam as flores.
Não quero esse ruído urbano que esmaga a alma, os ouvidos aprisionados aos telefones, o olfato condenado por odores insalubres, a boca em cascatas de palavras inúteis, despidas de verdade e sentido. Quero o silêncio indevassável de meu próprio mistério, o canto harmônico da natureza, a mão que se estende para que o outro se erga, a fraternura dos amigos abençoados pela cumplicidade perene”.
Em preparação para a vivência e celebração do mistério que nos visita no Natal, convidamos os leitores e as leitoras a cantar a esperança pelas Antífonas do Ó, mais a sétima:
“Ó Emanuel: Deus conosco, nosso Rei Legislador,
Esperança das nações e dos povos Salvador;
Vinde, enfim, para salvar-nos, ó Senhor e nosso Deus!”