23 Novembro 2024
Parte da entrevista, inédita em italiano, de Ratzinger com Hubert Schöne, realizada em 1992 para a Bayerischer Rundfunk. O texto faz parte de In dialogo col proprio tempo (Em diálogo com seu tempo, em tradução livre), o novo livro em três volumes da Opera Omnia de Joseph Ratzinger, que reúne todas as entrevistas do teólogo e cardeal da Baviera.
A entrevista é de Hubert Schöne, publicada por La Stampa, 20-11-2024.A tradução é de Luisa Rabolini.
Cardeal Ratzinger, quando era um jovem professor, foi consultor teológico no Concílio Vaticano II. Quais eram suas tarefas? E obteve algum resultado?
Acho que sim. Havia um relacionamento muito cordial e familiar com o Cardeal Frings e seu secretário Luthe, com quem eu havia estudado. Analisamos todos os textos juntos, lemos para ele - Frings era quase cego - e, ao fazer isso, discutíamos e expressávamos nossas opiniões. Depois disso, com base nessas conversas, eu elaborava uma proposta de discurso. Também refletíamos sobre quais outros bispos deveríamos contatar em relação aos vários tópicos. Dessa forma, desenvolvemos contatos muito amplos, especialmente com os cardeais, é claro, refletindo junto com eles sobre coisas muito importantes. Acredito que dessas conversas – para as quais dei minha própria contribuição, embora sem querer me atribuir qualquer originalidade especial – foram obtidos alguns resultados.
Na época, se dizia que o senhor estava do lado progressista, moderno e voltado para o futuro. Isso correspondia à verdade?
Sim, se a gente quiser se expressar nesses termos. A tarefa do Concílio era precisamente abrir portas, sempre, naturalmente, em continuidade com a fé católica, que é, no entanto, ampla e capaz de abrigar as riquezas e as possibilidades de cada época. Sair de um tipo de sistema teológico um tanto enrijecido e ativar toda a riqueza da Tradição, para assim possibilitar, ao mesmo tempo, novos encontros com o presente, eu via isso como uma tarefa - e, em termos de princípio, também hoje o vejo assim.
A reforma litúrgica representa a renovação mais evidente após o Concílio. O que o Concílio queria alcançar?
Queria tornar a missa mais acessível e compreensível, no sentido de permitir uma participação mais profunda e ampla.
Causou alvoroço quando o Concílio falou de liberdade religiosa, reconhecendo a atuação de Deus em todas as religiões. O que levou o Concílio a fazer afirmações desse tipo?
Certamente é preciso distinguir entre dois temas. Por 'liberdade religiosa' entendia-se o antigo princípio do direito canônico de que ninguém pode ser forçado à fé, em toda a amplitude, por assim dizer, do que isso significa para a relação entre Igreja e Estado, entre fé e consciência. Isso é uma coisa. Por outro lado, isso naturalmente também comportava a questão das outras religiões. A gênese externa foi mais acidental do que qualquer outra coisa. Inicialmente, se queria dizer apenas uma palavra sobre a relação entre a Igreja e Israel, que estava madura naquele momento histórico. Isso irritou os padres conciliares árabes, de forma que se pensou: ‘Bem, então também devemos dizer algo sobre o Islã. Mas se já estamos falando sobre Israel e o Islã, devemos também dizer algo sobre as religiões’. Ao fazer isso, não foi feita nenhuma tentativa de elaborar novas grandes teorias, mas foi enfatizado, digamos, o quanto há de precioso e nobre na busca humana que pode ser encontrada nas religiões e a luz de verdade que existe nelas.
Diferentemente da época do Concílio, hoje alguns teólogos e observadores falam de um fosso entre a hierarquia da Igreja e, digamos, o simples povo de Deus; dizem que o povo não entende mais o que o Magistério da Igreja fala, especialmente quando não corresponde mais à sua própria experiência de vida; por exemplo, em questões de moral sexual e contracepção. Como é possível resolver essa contradição?
De um certo ponto de vista, a situação é ainda mais complicada do que você diz. Não há apenas um fosso entre o povo e o Magistério, muitos fossos se formaram também na Igreja. Dentro da Igreja, há grupos com ideias fortemente opostas, e vemos como isso dificulta a vida nas comunidades e nas dioceses. Há posições muito diferentes até mesmo dentro do próprio povo de Deus. Nesse sentido, não se conseguirá muito com mudanças de linguagem ou coisas similares. É evidente que a fé em si não pode ser manipulada, que a Igreja não pode dizer: ‘Isso não funciona, vamos fazer dessa outra forma’. Em vez disso, a Igreja tem uma herança que naturalmente precisa explorar em toda a sua riqueza e usar de maneira viva. Para isso, sempre precisa de todos os planos de transmissão: o que é dito em Roma não pode ser dito na língua de todos, pois isso significaria que não há necessidade das Igrejas locais. Em vez disso, há uma ‘palavra fundamental’ comum que precisa de vários tipos de transmissão nas igrejas locais, que, por sua vez, devem desempenhar sua parte.
E, é claro, o contraste que atravessa o nosso tempo também desempenha um papel específico. A nossa época é marcada por enormes contradições internas: é dilacerada, por assim dizer, por dentro pela questão dos fundamentos éticos, do que tem estabilidade e consistência, do que sustenta e não sustenta o homem. Não se pode esperar que a Igreja acomode tudo automaticamente. Ela participa desses processos de sofrimento, permitam-me que me expresse nesses termos, mas, ao fazê-lo, tem algo a oferecer que também pode ajudar a superá-los. Acredito que não podemos esperar que, uma vez convertida a autoridade, tudo ficará bem. Em vez disso, todos nós devemos nos converter continuamente ao Senhor e uns aos outros. E somente em uma luta paciente e conjunta pela fé que nos sustenta, poderemos gradualmente voltar a nos entender reciprocamente.
O senhor não se preocupa quando o que formula e anuncia como Magistério da Igreja não chega mais às pessoas?
É difícil ser cristãos neste tempo. Não apenas para o povo, mas também para os padres e os bispos: todos percebemos isso. Mas, em relação à paróquia, com seus espaços concretos de vida, percebo que é justamente entre as pessoas simples que isso é bem compreendido e que, quando junto com elas nos envolvemos com paciência e fé, então percebemos que a dificuldade pode ser superada: não com operações intelectuais ou administrativas, mas confrontando-se com o que nosso tempo exige, e com o que nós mesmos somos e devemos ser. Nesse sentido, é claro, preocupa-me que aquilo que transmitimos, por assim dizer, não seja bem-sucedido, que muitas vezes nós também damos a nossa contribuição de maneira totalmente insuficiente; mas também penso que aquilo que está surgindo nos jovens com novo entusiasmo recria novas maneiras de transmissão; e que sempre há no homem uma disponibilidade interior para o que a fé realmente é e deve ser, mesmo que essa fé seja sempre exigente. Mas, afinal, o homem é feito para coisas grandes e exigentes. Se as apresentamos a ele e ele mesmo se relaciona com elas da maneira correta, justa, também reconhece que esse é o caminho correto e a maneira pela qual ele mesmo se torna justo; e então as coisas grandes e exigentes também são aceitas.
A ocasião do fim do segundo milênio da história cristã nos leva a imaginar cenários futuros. Já é possível prever hoje qual será o caminho da Igreja no novo milênio? Onde estão os problemas, os desenvolvimentos, mas também as esperanças?
Os problemas, creio eu, já os mencionamos: como a unidade do cristianismo deve ser levada adiante; como realizar da maneira correta a unidade entre Igreja local e Igreja universal, entre multiformidade e unidade; como viver a relação entre homem e mulher; a ética cristã; e precisamente também a ética sexual. Mas não é só isso: dever-se-ia mencionar aqui a ética da paz, a ética do meio ambiente e assim por diante - não é necessário listar tudo. As questões, portanto, são muitas, mas todas elas também representam desafios e esperanças, porque permitem que o cristianismo mobilize suas reservas espirituais e dê respostas e esperança a uma sociedade em crise, a um mundo que quer se unificar, mas que está constantemente se desagregando e se dilacerando em conflitos armados. Portanto, não quero bancar o profeta e prever o futuro.
Uma coisa me parece certa: a Igreja no Terceiro Mundo terá um peso muito maior. Não apenas a América Latina - onde as coisas já estão acontecendo há tempo - mas também a África e a Ásia terão um peso totalmente novo na Igreja, contribuindo assim a moldar sua face. Por outro lado, o Ocidente, a Europa e a América do Norte continuarão a ter grande um grande significado, e isso apenas com base nas forças culturais e, digamos, político-econômicas concentradas aqui. A simples coincidência entre Igreja e sociedade que conhecemos na Europa - pelo menos em muitos países até o século XX - desaparecerá em grande parte.
Nesse sentido, a Igreja não representará mais a normalidade em nível social, mas surgirá como uma força muito mais fortemente caracterizada pela livre adesão, tornando-se assim, em alguns aspectos, mais pobre. Provavelmente, alguns entrelaçamentos entre Igreja e Estado também serão desfeitos e, como resultado, surgirão novas tarefas e novas dificuldades. Mas acho que justamente uma Igreja que será muito mais Igreja por livre adesão, que terá de viver de suas próprias forças internas, também desenvolverá uma nova luminosidade.
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“Eu, progressista para abrir as portas da Igreja”. Entrevista com Joseph Ratzinger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU