As eleições não terminaram. As cartas centrais estão sobre a mesa. Em 6/10, houve uma clara vitória da forças políticas e sociais mais retrógradas. Há sinais muito evidentes de que ela está relacionada ao fracasso do governo Lula 3-A.
O artigo é de Antônio Martins, editor do Outras Palavras, publicado por Outras Palavras, 07-10-2024.
Frágil e infértil, primeira fase do mandato abriu espaço à vitória eleitoral da ultradireita e do Centrão. Um ofuscamento ideológico impede o presidente de buscar outros caminhos. Eles existem, mas é preciso corrigir a rota o quanto antes
O governo Lula 3-A chocou-se contra um iceberg ontem (6/10), ao sofrer uma derrota eleitoral muito vasta. Sua rota ao desastre segue a de outros governantes que hesitam em enfrentar as novas forças que oprimem as sociedades – em especial, o rentismo –, desencantam os eleitores com a democracia e abrem espaço para a ultradireita e suas diversas formas de antipolítica. O fenômeno espalha-se pela Europa e Américas. Ocorreu (ou ocorre) com Alberto Fernández na Argentina, Gabriel Boric no Chile, Emmanuel Macron na França, Olaf Scholz na Alemanha, o Partido Democratico (ex-PCI) na Itália, os socialistas portugueses, o Syriza na Grécia e tantos outros.
A eleição ainda não acabou. Uma vitória — desejável e possível — de Guilherme Boulos na cidade mais influente do país pode amenizá-lo um pouco. Mas o essencial não mudará. O resultado abre de imediato a disputa por 2026 e terá efeitos sérios sobre a governabilidade de Lula, a ponto de abrir-se uma bifurcação. Ou o presidente opta por manter o caminho que escolheu por volta do terceiro mês de seu mandato – e neste caso terá ainda menos margem de manobra, pois seus adversários se fortaleceram; ou rompe o script, resgata os momentos de entusiasmo produzidos entre a vitória eleitoral e a posse apoteótica e apela à mobilização de suas bases. A trajetória também será pedregosa, mas permite reconstruir um horizonte político. É com tal hipótese que este texto trabalha.
Vale examinar sinteticamente os números do pleito, para dissipar dúvidas sobre o sentido do resultado. As eleições municipais não refletem exatamente a correlação de forças entre os partidos (pois o poder local, conservador, pesa de modo exagerado); mas sinalizam tendências. O gráfico abaixo registra número de prefeituras obtidas pelos partidos à esquerda, entre 1985 e 2024. Nos primeiros 15 anos após a redemocratização, o volume de prefeitos(as) eleitos(as) cresce continuamente, passando de 40 a 430. É a época em que surgem novidades marcantes, como o “modo petista de governar” e, muito especialmente, os Orçamentos Participativos – hoje, na prática, abandonados. Mas a curva sobe ainda mais intensamente a partir da primeira chegada de Lula ao governo, e passa de 430 a 1.610 entre 2000 e 2012. Cai de modo abrupto nas duas eleições seguintes, com o golpe e os governos Temer e Bolsonaro.
Mas, em clara ruptura com o que ocorreu nos governos de esquerda anteriores, em 2024 o novo mandato de Lula não dá impulso relevante aos partidos que o apoiam. O PT aumenta ligeiramente o número de prefeituras (de 183 para 248, mas ainda assim abaixo dos 261 eleitos em 2016, ano do golpe contra Dilma). Com o PSB, dá-se o mesmo. Mas PDT, PCdoB, Rede e PSOL encolhem. No cômputo geral, os seis partidos alcançam, com Lula na Presidência, 728 eleitos – 10% a menos do que haviam alcançado sob Bolsonaro, há quatro anos.
Ao contrário de tudo o que se esperava quando da eleição de Lula 3, os que avançam, em seu mandato, são o Centrão (no conjunto do país) e a ultradireita (nas capitais e maiores cidades). PSD (874 eleitos), MDB (843), PP (742), e União Brasil (577), todos componentes do grande bloco fisiológico-direitista, são de longe os mais vitoriosos, obtendo 54% das prefeituras.
O primeiro – partido de Gilberto Kassab e do governador de São Paulo, Tarcísio Nunes – teve crescimento de 31,6%. O PL, de Jair Bolsonaro, elegeu 510 prefeitos e destaca-se nas capitais – por onde ex-presidente circulou de forma intensa, durante a campanha. O partido venceu em duas delas e está no segundo turno em sete. Também é a força principal nas 103 maiores cidades, as que têm segundo turno: venceu 10 e disputará 23 prefeituras. Neste grupo de metrópoles, os seis partidos à esquerda, somados, venceram apenas quatro disputas e estão no segundo turno em 21.
Para compreender como se produziu este desastre, é preciso examinar as circunstâncias muito particulares do cenário político brasileiro desde a terceira eleição de Lula – e como seu governo tem respondido a elas.
III.
A tarefa de reconstruir o Brasil em novas bases, com a qual o presidente comprometeu-se de forma explícita, em discursos ao “governo de transição”, é fascinante, mobilizadora e… extremamente árdua. Ela pode resgatar milhões de brasileiros da vida precária a que estão submetidos e dar outra vez sentido à ideia desgastada de nação. Mas contra ela pesam os interesses dos grupos que extraem a riqueza das maiorias – e se tornaram, nos últimos anos, cada vez mais imunes às decisões do Estado brasileiro. O Banco Central “independente” presenteia a cada ano ao 0,1% mais rico, por meio da taxa de juros, duas vezes o orçamento da Saúde. As agências “reguladoras” transferem ao grande capital privado as decisões essenciais sobre serviços públicos como telecomunicações, transportes, energia elétrica, águas, saúde complementar, mineração, petróleo e gás. A Saúde e Educação públicas vivem subfinanciamento crônico. Os bancos públicos foram reduzidos e desfigurados; o BNDES, financeiramente esvaziado; a Eletrobrás, privatizada; a Petrobrás, extirpada de suas subsidiárias mais importantes; o Orçamento, loteado em favor das ambições eleitorais dos parlamentares.
Enfrentar esta teia de interesses exige duas capacidades que Lula tem de sobra: a de articulador político e a de mobilizador social. Mas embora permaneça exímio no manejo do primeiro atributo, o presidente descuidou-se do segundo, desde que chegou ao Palácio do Planalto. Os períodos presidenciais do lulismo nunca convocaram as maiorias a exercer pressão sobre as instituições e fortalezas conservadoras – ao contrário do que ocorreu, por exemplo, com Hugo Chávez na Venezuela, López Obrador no México ou Gustavo Petro na Colômbia. As consequências desta escolha não apareceram com clareza nos dois primeiros mandatos, quando a situação econômica era mais favorável e, principalmente, não havia ultradireita organizada no país. A partir de 2022 tudo havia mudado.
Forma-se um círculo de impotência que começa na recusa a tensionar o poder conservador e termina no desencanto com a política e na produção de mais combustível para o (neo)fascismo. Funciona assim:
1. Livres de pressão popular, as instituições mantêm seu papel de guardiãs dos privilégios. (Passados dois anos, Lula não foi capaz de impor ao BC a queda na taxa de juros, de recuperar a Eletrobrás ou a BR Distribuidora, e sequer de nomear um dos 13 membros do conselho de gestão da Vale).
2. A preservação da desigualdade e das injustiças frustra, obviamente, a sociedade. (O governo sequer tentou reverter a contrarreforma trabalhista de Michel Temer, e propôs, aos precarizados em empresas-plataforma, um projeto infame, que despertou sua ira).
3. O desencanto das maiorias com a democracia agora encontra um canal: o mercado eleitoral da ultradireita, onde surgem e continuarão se multiplicando os Nikolas, os Pablo Marçal, os Bruno Engler, as Cristina Graemi, os Lucas Pavanato e tantos outros. A penalização de Marçal é certamente necessária, mas de muito pouco servirá. A esta altura está perfeitamente claro que, enquanto não for interrompido, o círculo da impotência continuará gerando monstros… cada vez mais populares!
IV.
Em nenhum outro terreno da ação de Lula este fenômeno é tão absurdo quanto no “ajuste fiscal” liderado e conduzido pelo ministro Fernando Haddad. Aqui, o governo não precisou de adversários. Agiu e continua agindo para limitar a si próprio, provavelmente por cegueira e submissão ideológicas. Bloqueou o meio mais ágil de que dispõe para melhorar as condições de vida das maiorias e iniciar a reconstrução do país; privou-se precisamente do instrumento que as instituições conservadoras teriam mais dificuldades para sabotar.
O exame crítico detalhado do “arcabouço fiscal” proposto em abril de 2023 e das propostas de “orçamento com déficit zero” apresentadas em setembro daquele ano e de 2024 está feito nestes textos (1 2). O que importa aqui é examinar um aspecto particular: como o governo teria podido, caso se visse livre destas duas amarras, abrir uma nova agenda nacional e colocar na defensiva as forças que sempre quiseram limitá-lo.
O gasto público social é, num país carente e desigual, uma ferramenta decisiva para proteger as maiorias e engajá-las num projeto político. É o que pode alimentar, por exemplo, um plano de reconstrução da indústria; a universalização do saneamento, com despoluição dos rios urbanos e áreas costeiras; a escola pública em período integral; a transição energética; a execução de um novo projeto para a Amazônia, que mantenha a floresta em pé; um SUS capaz de oferecer, também, consultas e exames sem fila de espera; o respaldo aos bancos públicos, para livrar da agiotagem privada as famílias e empresas endividadas. O gasto público social pode, além disso, dar ao Estado condições de empregar com dignidade – salários e direitos – as milhões de pessoas necessárias para realizar estas tarefas.
O gasto público social precisa, como todas as despesas do Orçamento, de aprovação do Congresso. Mas tanto a lógica política quanto a experiência concreta demonstram que mesmo os parlamentares contrários à esquerda têm enorme dificuldades em contestá-lo – e terminam cedendo aos governos que o propõem. Quem votaria contra, por exemplo, um projeto para conceder, com recursos do Estado, direitos essenciais – férias remuneradas, seguro-acidente e seguro-doença – aos trabalhadores das empresas de aplicativos? Que deputado ou senador se oporia à contratação de um milhão de professores(as) de múltiplas disciplinas, médicas(os), psicólogos(as), enfermeiros(as), fisioterapeutas, merendeiras(os) ou agentes culturais para estabelecer a educação integral na escola pública e para ampliar o atendimento no SUS? Os que se atrevessem sofreriam decerto consequências graves em seus redutos.
Todo este imenso potencial de transformação da vida e da política foi limado pela política fiscal do governo. O “ajuste fiscal” jamais fez parte do programa do governo Lula. Foi introduzido de contrabando, no primeiro trimestre de 2023. Integra uma espécie de “programa oculto” de todos os governos neoliberais. Levou Emmanuel Macron a impor ao Parlamento, na França, a elevação da idade mínima para aposentadorias – e a abrir caminho para Marine Le Pen. Fez Olaf Scholz eliminar os subsídios ao diesel usado pelos agricultores alemães em seus tratores – apenas para abrir espaço a vitórias inéditas dos neonazistas. Amputou os braços do governo Lula, até levá-lo à derrota deste domingo. A Reforma Agrária está parada, como não se cansa de alertar João Pedro Stédile. O Executivo desistiu de enfrentar o “novo ensino médio”, que oferece um ensino de segunda categoria às maiorias, para economizar tostões. O subfinanciamento do SUS prossegue. As verbas do ministério do Meio Ambiente para combater a devastação ambiental serão, em 2025, menores que as do primeiro ano de Bolsonaro. Etc etc etc. O que o “ajuste fiscal” ainda fará com o Brasil até 2026?
As eleições não terminaram. As cartas centrais estão sobre a mesa. Em 6/10, houve uma clara vitória da forças políticas e sociais mais retrógradas. Há sinais muito evidentes de que ela está relacionada ao fracasso do governo Lula 3-A.
Virá Lula 3-B? Como se viu ao início, as condições agora são mais difíceis. Gilberto Maringoni lembra, a partir do exemplo de Franklin Roosevelt, que as decisões mais centrais de um governo – aquelas que sacodem o senso comum antes estabelecido – devem ser tomadas nos primeiros cem dias. No entanto, a reconstrução nacional, num país tão regredido quanto o Brasil, sempre será capaz de empolgar.
Lula conserva popularidade relevante. Sua liderança e capacidade de apelo e sensibilização são incomparáveis. Terá a abertura à mudança e o espaço mental necessários para refletir a sério sobre os resultados deste domingo e sobre seu próprio governo? Se a resposta for não, a tendência é o Executivo acionar o piloto automático e tentar aguentar-se até o fim de seu período. O preço será um enorme sofrimento – para as maiorias e, ao fim e ao cabo, para o próprio presidente. Nesse caso pode ser recomendável, para quem acredita num futuro digno para o Brasil, sair em busca de outros meios de viabilizá-lo.
Mas se Lula estiver disposto a promover um giro em seu mandato, a enfrentar com habilidade e manha (mas também com valentia e audácia) as forças que o mantêm até agora acorrentado – aí, sim, teremos dois anos de ótimas emoções pela frente.