Quem percorrer as linhas seguintes, lendo perguntas diretas e respostas detalhadas sobre o Orçamento Participativo – OP em Porto Alegre, terá um panorama de grande clareza sobre essa impressionante experiência na capital gaúcha.
A entrevista é de Luís Augusto Fischer, doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde leciona, publicada por revista Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, 19-09-2024.
Luciano Fedozzi conta de sua participação, desde muito jovem, no processo de concepção, implementação, continuidade e depois estudos sistemáticos sobre o OP, e não apenas aqui, como em todo o mundo, porque o OP porto-alegrense foi um farol aceso para quem quisesse democratizar e enraizar nas cidades e regiões a teoria e a prática da participação popular, ou, como se diz mais recentemente, do empoderamento popular.
Sobre o tema, Luciano está lançou, no dia 12/09, um livro, Orçamento Participativo de Porto Alegre: 35 anos – Do modelo contra-hegemônico à desdemocratização: elementos para um balanço, pela editora LetraCapital, em parceria com o Observatório das Metrópoles e do Observatório dos Orçamentos Participativos, este um projeto de pesquisa na UFRGS, onde o Luciano é professor titular de Sociologia. A publicação tem apoio da FAPERJ, do CNPq, do INCT e da CAPES.
Sábado, 28/09, teremos uma nova Sabatina, na livraria Paralelo 30, desta vez justamente com o Luciano. Os leitores poderão ouvir ao vivo mais sobre o que aqui vai apresentado.
Luciano Fedozzi (Foto: Reprodução | YouTube/CuboPlay/Sul21)
O Orçamento Participativo é a menina dos olhos de mais de uma geração, em matéria de uma política pública modernizadora, certo? Como foi que ele entrou na tua vida, pessoal e acadêmica?
Antes da vida acadêmica, desde muito cedo, ainda no movimento estudantil de Caxias do Sul, fiz parte da luta democrática como membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nos anos 1980, já em Porto Alegre, a aliança com o PT na Frente Popular, que foi vitoriosa em 1988, me levou ao governo. Após um primeiro ano de muitas dificuldades, quando houve a reforma administrativa do planejamento, assumi a direção do Gabinete de Planejamento (GAPLAN) recém-criado. A partir daí me envolvi diretamente com a questão da participação, juntamente com a equipe das relações com as comunidades.
Entre algumas aventuras, muitas críticas e autocríticas, para acertar o rumo participativo do governo, creio que ninguém de nós jamais imaginou que aquilo que mais tarde foi chamado de Orçamento Participativo iria assumir a dimensão que acabou tomando. Essa história da construção do OP, com suas dificuldades, erros e acertos está registrada no livro O poder da aldeia (Tomo Editorial, 2000), que publiquei posteriormente. Após a gestão do Olívio fiz mestrado em sociologia, na UFRGS, a fim de buscar aperfeiçoamento, e tomei gosto, engatando o doutorado e o concurso para docente. Das pesquisas resultaram outros dois livros que tratam do efeito democrático do OP na gestão do Estado brasileiro e das mudanças na cultura política promovidas pelo processo.
A passagem para o campo acadêmico exigiu o aprendizado do distanciamento crítico dos objetos estudados, mas nunca perdendo a referência de princípios ancorados na importância da democratização social e política que o país precisa, e isso, como sabemos, só é possível com muita participação popular capaz de aliar a radicalização da democracia e as necessidades reais dos de baixo. O distanciamento acadêmico possibilitou abordar o OP não de forma apologética – diferenciando-se das interpretações acríticas mais comumente encontradas no oficialismo partidário. Mas o estudo da sociologia urbana e da sociologia política abriu horizontes para compreender os avanços reais permitidos pelo OP e o potencial democratizante de práticas como essa. Nesse sentido, permaneci fiel aos pressupostos da teoria crítica inaugurada por Marx e reelaborada pelos frankfurtianos, que entende não haver conhecimento desinteressado e sim busca de objetividade científica, a ser perseguida no estudo dos fenômenos.
Naqueles tempos iniciais, na virada dos anos 1980 para os 1990, havia uma série de interrogações sobre o funcionamento e o alcance do OP, que a rigor ninguém sabia bem como responder, não é? Lembra, por favor, algo daquele clima inicial, dos anos iniciais de funcionamento.
No primeiro ano, a tentativa de discutir o orçamento com a população foi um fracasso, por vários motivos. Não havia uma ideia clara de como fazer e a prefeitura passou por severa crise financeira, com déficit em 1989. Foram realizadas reuniões da Secretaria de Planejamento Municipal (SPM) em cinco regiões do antigo Plano Diretor de 1979, territórios definidos por critérios tecnocráticos, sem correspondência com a vida dos moradores dos bairros e periferias. Por outro lado, as comunidades ainda não tinham confiança na proposta e a participação foi muito pequena, pouco mais de 600 pessoas distribuídas nas cinco regiões do Plano Diretor. Essa iniciativa foi revista pelo governo, que mudou a gestão do planejamento orçamentário, retirando-o das atribuições da SPM e passando-o para uma unidade que foi criada junto ao Gabinete do Prefeito e da Coordenação Política do governo. Essa nova unidade, o GAPLAN (Gabinete de Planejamento), inspirada no planejamento estratégico situacional, passou a coordenar o processo orçamentário não apenas tecnicamente, mas também politicamente, porque estava legitimada pelo Prefeito.
Da mesma forma, foi criado o setor responsável por coordenar as relações do governo com as comunidades (CRC), que saiu da Secretaria Geral de Governo e passou ao Gabinete do Prefeito. Essa reforma foi fundamental para dar efetividade ao processamento técnico-político das demandas e capacidade de articulação interna da coordenação com as Secretarias da época. Essas duas novas unidades político-administrativas (GAPLAN e CRC), passaram a dirigir o processo de planejamento participativo, que gradativamente foi sendo construído de forma compartilhada com os atores sociais das diversas regiões não limitadas ao antigo Plano Diretor.
A partir do segundo ano, em 1990, a construção compartilhada entre governo e comunidades resultou numa nova regionalização, mais próxima da realidade dos bairros, válida até hoje (são 17 regiões), e nas regras de participação e de distribuição equitativa dos recursos entre as regiões, a partir de critérios redistributivos adotados na escolha das prioridades. Do lado da sociedade civil, algumas regiões contavam com mais tradição de lutas urbanas e estavam mais organizadas em termos associativos, desde os anos 1970. Pelo menos cinco regiões tinham se organizado em Conselhos Populares e Articulações Regionais, realizando lutas e reivindicações na gestão do prefeito Collares (PDT), que inaugurou o retorno da democracia em Porto Alegre, em 1985, mas frustrou a expectativa de uma gestão participativa. Essas regiões pressionaram muito o novo governo da Frente Popular, inclusive realizando uma invasão da prefeitura em 1990, porque as obras de pavimentação estavam muito atrasadas.
(Foto: Divulgação)
Ou seja, esse processo compartilhado e de mútuo aprendizado do governo e dos atores sociais resultou no desenho institucional criado pelo OP a partir do segundo ano, que foi se consolidando nos anos seguintes, também favorecido pela melhora sensível na situação financeira do município. Esse caráter construtivista do processo de criação do OP – com ensaios e erros, tanto dos atores estatais quanto sociais – é uma das razões do seu sucesso, porque não se tratou da imposição de uma ideia, já que o modelo pré-concebido pelos partidos da FP, inspirado nas experiências revolucionárias da construção de um estado paralelo (soviets ou conselhos), precisou ser revisto de forma não dogmática.
É preciso ainda lembrar que nesses anos iniciais a Administração Municipal esteve fortemente envolvida com a intervenção nas empresas privadas de transporte coletivo, uma prioridade afirmada durante a campanha eleitoral de 1988, como forma de garantir o interesse público, a qualidade do serviço e a retomada do controle na política de mobilidade. Todavia, nas reuniões do OP, o transporte coletivo não foi apontado como prioridade, e sim os temas de infraestrutura urbana, como saneamento básico, habitação e pavimentação. Essas três áreas foram as mais priorizadas na história do OP, indicando a carência de infraestrutura básica de parcelas dos territórios da cidade. Posteriormente, foram acrescidos os temas das políticas sociais, com saúde, educação e assistência social.
Quais foram as inspirações para o OP, tanto de práticas anteriores quanto de diretrizes políticas?
A verdade é que o ideário participativo da Frente Popular (PT-PCB) se mostrou inadequado diante da realidade de administrar uma cidade capitalista de mais de um milhão de habitantes e com vasto déficit de bem-estar urbano, acumulado durante a urbanização excludente que ocorreu a partir dos anos 1950 no país. Os dois partidos ainda pensavam nos termos da estratégia leninista do duplo poder, que assentada na realidade de uma revolução explosiva, presumia construir um poder popular paralelo ao Estado existente. Era o imaginário dos “soviets”, da revolução Russa ou o da Comuna de Paris, que entretanto não podiam ser transpostos mecanicamente para nossa realidade.
O banho de realidade foi grande, mas suficiente para obrigar tanto o governo como os atores sociais das regiões a mudar a estratégia do duplo poder para o objetivo da democratização do Estado, por meio da participação popular nas decisões da aplicação dos recursos públicos, que é a espinha dorsal de qualquer Estado. Isso significou, na prática, uma estratégia de disputa de hegemonia na cidade, mais próxima das leituras ocidentais oferecidas pela teoria gramsciana. Ou seja, as experiências anteriores de esquerda que eram conhecidas e pensadas serviram muito pouco para orientar a prática de governo. Entretanto, prevaleceu a convicção quanto ao firme propósito em abrir o Estado para as classes populares e construir uma forma de democracia participativa capaz de colocar os setores populares como sujeitos de direitos no processo decisório de ocupação e uso da cidade.
Essa prioridade popular, porém, não foi construída em oposição à universalidade das políticas requeridas para qualificar os serviços e equipamentos em toda a cidade. Porto Alegre é uma metrópole com grande percentual de camadas médias. Se tivesse prevalecido uma estratégia limitada somente às classes populares, não teria sido possível conquistar a hegemonia política da esquerda por tanto tempo. Por outro lado, a hegemonia político-eleitoral duradoura da esquerda em Porto Alegre – com o apoio de setores médios – permitiu sustentar no tempo às políticas de prioridade popular executadas por meio do OP nas periferias. Essa dialética do popular-universal foi a chave do longo período em que a esquerda governou a metrópole.
Mas veja-se que isto foi possível também porque havia recursos orçamentários suficientes na década de 1990, tornando o processo sustentável tanto para promover a qualificação dos serviços e obras de interesse geral, como para atender parte considerável das reivindicações dos estratos populares. Quando esse fator financeiro foi reduzido, no início dos anos 2000, o OP perdeu efetividade na execução das obras e projetos, o que abriu o flanco e ajudou na perda de legitimidade do governo da Frente Popular, que de alguma forma esteve presente até 2004. Além do desgaste natural de governos de longo curso, a partir daí o campo liberal mudou e percebeu que precisava adotar o OP ao invés de criticá-lo como fazia até então, o que possibilitou ganhar uma maioria nas eleições desse ano, apesar dos 45% de apoio da candidatura da esquerda naquele ano.
O OP começou a ser visto como uma alternativa de gestão pública fora de Porto Alegre e do RS. Como e onde se deram essas repercussões?
Um marco importante foi a premiação recebida em 1996 na Conferência Habitat da ONU, que ocorreu em Istambul, quando o OP foi eleito uma das 40 melhores experiências de gestão urbana. Mas nos anos 1990, o OP de Porto Alegre foi referência central para a multiplicação de casos semelhantes em mais de 350 cidades brasileiras, incluindo grandes metrópoles, como Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, São Paulo, Brasília, Vitória, João Pessoa. Também ocorreu grande disseminação internacional de casos inspirados em Porto Alegre, primeiro na América Latina e depois na Europa, África e Ásia. Segundo a última edição do Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos, cerca de 10 mil cidades estariam adotando práticas autodenominadas de OP. Alguns países inclusive aprovaram legislação obrigatória aos municípios, como o Peru e a República Dominicana. Dentre as capitais europeias, Paris faz escolhas de modo virtual no seu OP.
Todavia, é necessário relativizar esses dados, porque a disseminação mundial implicou uma notória diversidade de modelos e práticas que levaram a esterilização ou neutralização dos objetivos mais radicais e redistributivos contidos no caso de Porto Alegre. Quanto mais conhecemos e estudamos os OP no mundo, mais claro fica que o caso de Porto Alegre foi único em termos redistributivos e empoderamento popular, constituindo um verdadeiro processo contra-hegemônico à democracia elitista. Hoje, ocorrem casos com inovações interessantes, como é o caso do OP nacional das juventudes em Portugal – país europeu onde os OP estão mais presentes hoje –, além de Chengdu, quarta maior cidade da China, que realiza o OP digital. Na América Latina hoje destacam-se Bogotá e Medelin, sendo que essa última já realiza uma forma de OP há 25 anos, e a cidade do México, que articula o OP e as Assembleias Cidadãs.
Por sua vez, no Brasil, após o crescimento do número de cidades que praticavam alguma forma de OP, ocorreu uma nova fase de declínio dos casos desde meados dos anos 2000. O abandono é de tal ordem que poderá levar a sua extinção, um paradoxo para o país que criou essa inovação democrática. Não há ainda uma explicação definitiva sobre as causas dessa perda na democracia. Estamos nos dedicando a isso atualmente em projeto que criou o Observatório dos Orçamentos Participativos. Todavia, pode-se apontar questões de ordem fiscal e questões de ordem política. Por um lado, nos anos 2000, o ajuste fiscal no país (LRF) e a fixação dos percentuais constitucionais mínimos para as políticas de educação e saúde, somados à crise econômica, reduziram os recursos e a margem discricionária de sua aplicação nos municípios. Isso provavelmente desincentivou os governos a se comprometerem com demandas populares via OP. De outro lado, a perda de influência eleitoral do campo progressista e de esquerda nas cidades, na década de 2010, principalmente do partido mais identificado com o OP, o PT, também teve repercussões. O PT caiu de 644 prefeituras em 2012 para 179 em 2020. O dado, entretanto, parece não explicar totalmente a perda de centralidade do OP nos programas do partido, porque a diminuição dos casos ocorreu quando o PT chegou ao governo federal, o que nos obriga a aprofundar a hipótese da mudança da relação do PT com o método do OP nos governos das cidades brasileira. O OP foi central no chamado método petista de governar.
Há um nexo de continuidade entre o OP nos anos 1990 e a organização do Fórum Social Mundial, em sua primeira edição, em Porto Alegre? Como se deu?
Sem dúvida, a realização do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 2001, aconteceu porque a cidade alcançou um prestígio internacional nos círculos dos movimentos sociais e das lideranças políticas e intelectuais altermundistas. A continuidade dos governos de esquerda por reeleições sucessivas e a inovação democrática representada pela alternativa participativa à democracia liberal-elitista tiverem um efeito positivo naquele momento da primeira onda de contestação mundial à ordem neoliberal da globalização. Desde os anos 1990, centenas de gestores públicos, acadêmicos e ativistas de todos os continentes vieram conhecer e pesquisar o caso de Porto Alegre. A Administração Municipal promoveu eventos internacionais e atraiu personalidades do mundo intelectual e da cultura crítica, que jamais haviam pisado aqui. A aldeia ficou conhecida no mundo, apesar de não fazer parte do centro do país.
Como analisado no livro, esse contexto é contrastante com o que vemos hoje, quando os governos da cidade posteriores apagaram esse legado positivo para implementar uma estratégia de citymarketing já conhecida no mundo dos negócios e que corresponde ao ideário da acumulação urbana neoliberal de venda da cidade. Nesse modelo do urbanismo, conhecido como “empreendedorismo urbano”, quem ganha são os setores que compõem a coalizão política-empresarial-midiática-acadêmica dominante da cidade, principalmente do mercado imobiliário, da construção civil e da indústria do entretenimento, e não os setores de baixo que são marginalizados com empregos ruins, baixos salários e falta de infraestrutura básica, inclusive falta de água no verão em algumas regiões da periferia. Segundo as pesquisas que fazemos no Observatório das Metrópoles isso está muito claro na tônica das políticas urbanas e dos projetos que são priorizados, como a Orla do Guaíba, Cais Mauá, Centro Histórico e 4º Distrito.
Com a saída de governos petistas e/ou simpáticos ao OP, o que ocorreu, em linhas gerais? O que se perdeu nesse processo novo? E o que se ganhou?
Não se pode avaliar a trajetória dos 35 anos do OP sem considerar o lugar que ele ocupa e a função que deve desempenhar segundo os projetos políticos que governam a cidade. Como demonstram as pesquisas no livro, o OP sofreu um processo gradativo de enfraquecimento e descaracterização, após 2004. Entretanto, a legitimidade e o apoio duradouro – em nível local, mas também internacional – impediu sua extinção pura e simples, como aconteceu com grande parte dos casos em outras cidades brasileiras, desde os anos 2000. Mas, inegavelmente, ele foi alvo do processo desdemocratizante verificado em Porto Alegre. As características contra-hegemônicas do processo foram sendo desconstruídas e adaptadas aos objetivos dos novos projetos políticos de cada período.
No primeiro momento, o OP foi deslocado de importância pelo projeto liberal-centrista, que criou outro modelo participativo paralelo baseado na ideia de governança público-privada-comunitária, que não deu certo. Nesse período, também ocorreu o evento da Copa do Mundo, com prejuízos à centralidade do OP. Foram modificadas ainda as regras da representação popular que oportunizaram a captura do processo por conselheiros e delegados descomprometidos com a democracia e a independência. No período seguinte, o OP sofreu um golpe mortal durante os governos claramente neoliberais e autoritários de Marquezan (PSDB) e de Melo (MDB). De coadjuvante o OP passou a um simulacro da participação, porque totalmente desempoderado em termos de recursos, poder de decisão e controle do orçamento e das demandas.
A partir daí as outras instituições participativas da democracia em Porto Alegre, como os Conselhos Municipais de Políticas e do Plano Diretor, também foram atacadas frontalmente, dada a contradição entre a agenda neoliberal e a democracia participativa. Práticas clientelistas que haviam sido bloqueadas com o OP retornaram na relação da gestão pública com comunidades das periferias. Os dois prefeitos foram explícitos na vontade de fazer a cidade regredir ao período pré-Constituição Federal de 1988, refletida na própria Lei Orgânica Municipal de 1990, que garante a participação cidadã. Nessa recomposição antipopular do regime político a Câmara de Vereadores ganhou mais peso a partir do poder das emendas impositivas, cujo valor dos recursos é hoje quase três vezes maior do que o valor para atender todas as necessidades das 17 regiões do OP, são R$ 55 milhões contra apenas R$ 20 milhões.
Como estudioso do tema, como tu vês o futuro: tem lugar para algo como um novo momento para o OP na cidade e no estado? E no país?
Creio que a retomada do OP poderá ser viabilizada, mas será necessária uma mudança do contexto político local, com a derrota da coalizão político-empresarial de perfil neoliberal-autoritário que governa Porto Alegre. Essa agenda não pode conviver com um sistema participativo de demandas populares porque suas prioridades são outras e sua concepção de regime político é limitada ao poder das elites. Por outro lado, no caso de um contexto favorável, creio que será necessária uma ampla negociação entre o governo e as comunidades para enfrentar o passivo de mais de 2.300 demandas não executadas do OP. Não será possível em pouco tempo resgatar esse enorme déficit de mais de 20 anos. Terá que haver uma pactuação transparente e comprometida com a real efetivação de prioridades e urgências.
O OP avançou pouco no planejamento participativo dos territórios de forma mais integral. Por isso, ao retomar os princípios do OP, também será importante avançar na qualificação da democracia participativa, articulando-o com a ideia de planejamento participativo, os instrumentos redistributivos da reforma urbana, o plano diretor e as políticas setoriais, um programa integral de reforma urbana para o direito à cidade. Também merece discussão a questão da participação digital, embora essa modalidade não deva desincentivar a forma presencial, insubstituível quanto à riqueza das interações e a educação coletiva que oportuniza. Há boas lições de outros casos de participação digital a se inspirar no país e no exterior.
Entendo que a recuperação da participação deveria se dar no bojo de um projeto de direito à cidade, contemplando um desenvolvimento econômico e social mais equitativo e inclusivo, com valorização dos espaços públicos e do patrimônio histórico, diversidade cultural e forte ênfase na preservação e sustentabilidade ambiental. Será preciso ressignificar o conceito de cidade em outras bases contrárias às políticas neoliberais. A retomada do OP poderá adquirir um significado internacional, pela importância que Porto Alegre já teve frente à hegemonia do neoliberalismo.
Esse novo contexto poderia ser incentivado se o governo federal adotasse o OP nacional, como foi previsto por Lula na campanha eleitoral de 2022. Na parte final do livro isto é abordado e estamos trabalhando na Rede Brasileira dos OP (RBOP) e no Observatório das Metrópoles para que o governo Lula efetive essa proposta como um contraponto ao “orçamento secreto”. O OP não é e não será uma panaceia aos problemas da democracia representativa. Mas, sem dúvida poderá criar uma arena pública de discussão aonde atores da sociedade civil possam se posicionar e participar ativamente da disputa dos recursos orçamentários, hoje limitada aos três poderes institucionais, terreno em que o centrão patrimonialista e a extrema-direita levam vantagem no sequestro dos recursos por emendas impositivas do Congresso Nacional, que já abocanham R$ 50 bilhões, quase metade dos investimentos federais. O OP nacional poderia ajudar parte da sociedade a entrar nesse jogo de garroteamento e cerco do governo Lula.
O Plano Plurianual Participativo realizado pelo governo federal em 2023 mostrou a plena viabilidade da participação na escala nacional, articulando a modalidade presencial nos 27 estados e a virtual pela internet, sem afronta ao Congresso Nacional. Foram 4 milhões de acessos na plataforma Brasil Participativo e mais de 1,5 de votos em 8.254 propostas. O Governo Lula está errando ao não dar continuidade a essa mobilização. Por outro lado, os movimentos sociais e atores civis estão passivos, demonstrando uma fragilidade do campo democrático na disputa, em que apenas a extrema-direita está mobilizada. O aprofundamento da precarização e da fragmentação social está impactando a capacidade de ação coletiva dos movimentos e organizações sociais do campo progressista, mas creio que isso não explica por si só a passividade observada diante da captura dos recursos que faltam para as políticas públicas no país e que estão mudando o sistema para o parlamentarismo, sem modificar a Constituição Federal. Ou o setor democrático e progressista da sociedade acorda ou os retrocessos serão irreversíveis.