Pesquisa realizada por professor e pesquisador da UFRGS aponta para relações de um pequeno grupo de empresários que tem relações diretas com o centro do poder municipal, incluindo político de Executivo e Legislativo
Doze anos após a redemocratização do Brasil, Porto Alegre, que sofreu uma tragédia ambiental sem precedentes nos meses de maio e junho deste ano, era vista como símbolo internacional das lutas altermundialistas. Duas décadas depois o mesmo território se transforma em mais uma anódina cidade que busca refletir em seus eventos e arquitetura uma versão emergente do neoliberalismo global.
“Em um mundo marcado pela hegemonia ideológica do neoliberalismo, Porto Alegre se destacou como uma experiência que mostrava na prática que ‘um outro mundo é possível’. Nesse sentido, a escolha da cidade como sede dos primeiros Fóruns Sociais Mundiais, no início dos anos 2000, foi a expressão mais acabada da importância de Porto Alegre no imaginário utópico do progressismo global”, recorda Marcelo Kunrath Silva, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “O que não resta dúvida é que Porto Alegre vivenciou uma profunda mudança política que é um enigma importante a ser compreendido e explicado”, complementa.
O artigo que ensejou esta entrevista é intitulado “Os ‘donos’ de Porto Alegre”, o que, para além da provocação, não significa que não há resistência às forças dominantes, mas que há uma coalizão organizada e capaz de se manter no poder. “O uso do termo ‘dono’ pode gerar a interpretação equivocada de que essa coalizão exerce seu domínio de forma livre e sem oposição. Ao contrário, tal domínio é objeto de muita disputa, crítica e confrontação por outras forças sociais e políticas. Mas é possível afirmar que essa coalizão adquiriu um grau de domínio sem precedentes nas duas últimas administrações da cidade (Nelson Marchezan Jr., 2017-2020; Sebastião Melo, 2021-2024)”, afirma.
Embora o estudo não possa demonstrar que os integrantes desta coalizão sejam responsáveis diretos pelos danos da enchente causados por má gestão pública, o fato é que indiretamente isso não pode ser descartado. “Avaliações têm mostrado que a dimensão catastrófica do impacto causado pela enchente está relacionada a diversas ações ou omissões do governo municipal. Essas ações ou omissões são, em parte, decorrentes de um projeto político explicitamente voltado à desestruturação e privatização de setores importantes da administração municipal. Tal projeto político obviamente gera uma perda de capacidades estatais que se mostraram cruciais no momento da enchente. Uma vez que esse projeto político é compartilhado pelo conjunto da coalizão dominante, pode-se argumentar que há uma responsabilidade compartilhada”, explica Kunrath.
Marcelo Kunrath Silva (Foto: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) | UFRGS)
Marcelo Kunrath Silva é sociólogo, graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutor em Sociologia pela mesma instituição. É pós-doutor pelo Watson Institute for International Studies/Brown University, concluído em 2008. Professor titular do Departamento de Sociologia da UFRGS, integra os PPGs em Sociologia e em Desenvolvimento Rural.
IHU – No artigo, “Os ‘donos’ de Porto Alegre”, o senhor coloca uma questão que eu gostaria de recuperar como introdução a esta entrevista: como a cidade que inspirou utopias democráticas e igualitárias, entre os anos 1990 e o início dos 2000, se tornou um polo do liberal-conservadorismo brasileiro?
Marcelo Kunrath Silva – Essa é uma questão que é feita recorrentemente a qualquer porto-alegrense que transita em redes e movimentos progressistas no Brasil e no exterior. Nós porto-alegrenses temos, muitas vezes, dificuldade de entender o significado político que Porto Alegre assumiu ao longo da década de 1990, com a experiência dos governos da Frente Popular. Em um mundo marcado pela hegemonia ideológica do neoliberalismo, Porto Alegre se destacou como uma experiência que mostrava na prática que “um outro mundo é possível”. Nesse sentido, a escolha da cidade como sede dos primeiros Fóruns Sociais Mundiais, no início dos anos 2000, foi a expressão mais acabada da importância de Porto Alegre no imaginário utópico do progressismo global.
Como saliento no artigo, uma resposta adequada a essa questão sobre a mudança política ocorrida em Porto Alegre demandaria analisar diversos processos locais, nacionais e transnacionais que convergem na sua produção.
Por exemplo, a difusão e radicalização do antipetismo nos anos 2000, especialmente após as denúncias de corrupção nos governos Lula e Dilma (com destaque para o Mensalão e a Lava Jato), parece ser um processo que contribui para a explicação do deslocamento à direita de importantes segmentos da classe média porto-alegrense, que votavam massivamente no PT nos anos 1990. Mas essa e outras hipóteses demandam pesquisas aprofundadas, pois a demonstração da relação causal entre fenômenos e processos sociais sempre é um grande desafio. O que não resta dúvida é que Porto Alegre vivenciou uma profunda mudança política que é um enigma importante a ser compreendido e explicado.
IHU – O que significa dizer que Porto Alegre tem “donos”? De onde vem essa conclusão?
Marcelo Kunrath Silva – Obviamente o uso da expressão “Os donos de Porto Alegre” no título tem um objetivo provocativo. É preciso compreender que esse não foi um artigo produzido para uma publicação científica, o que demandaria uma explicitação de posicionamentos teóricos e metodológicos que não estão presentes no artigo. Isso não significa que o artigo foi produzido sem rigor científico. Ao contrário, foram seguidos os procedimentos científicos na pesquisa que fundamenta o artigo. Mas os resultados da pesquisa foram apresentados de forma a ser compreensível para um público não acadêmico das ciências sociais.
Em termos técnicos, podemos dizer que o artigo buscou caracterizar e analisar a presença e atuação de uma “coalizão governante” que conquistou um significativo domínio político em Porto Alegre; ou seja, um grupo de pessoas e organizações que têm acesso privilegiado aos recursos e às decisões governamentais.
O uso do termo “dono” pode gerar a interpretação equivocada de que essa coalizão exerce seu domínio de forma livre e sem oposição. Ao contrário, tal domínio é objeto de muita disputa, crítica e confrontação por outras forças sociais e políticas. Mas é possível afirmar que essa coalizão adquiriu um grau de domínio sem precedente nas duas últimas administrações da cidade (Nelson Marchezan Jr., 2017-2020; Sebastião Melo, 2021-2024). Legislações, políticas e ações governamentais favoráveis aos interesses e demandas dessa coalizão foram recorrentemente implementadas. Enquanto isso, outros interesses e demandas foram sistematicamente desconsiderados. As desigualdades de oportunidades de acesso às decisões governamentais aumentaram significativamente. E a cidade, que já foi reconhecida como fonte de inovações em termos de democracia participativa, hoje vê seus canais de participação social (Orçamento Participativo e Conselhos Municipais) sofrerem constantes ataques e redução de sua influência na gestão municipal.
IHU – Como foram coletadas e trabalhadas as informações que subsidiam seu artigo e como elas são apresentadas no artigo? Que evidências atestam a influência de famílias poderosas na gestão pública do município?
Marcelo Kunrath Silva – Na medida em que a pesquisa tinha como objetivo caracterizar a analisar a atuação dessa coalizão governante, o procedimento metodológico adotado para produzir as informações foi a identificação de quais entidades (pessoas, organizações, empresas, partidos políticos, eventos) constituem essa coalizão e quais as relações (familiares, econômicas, políticas) que estas entidades estabelecem entre si. Para isso, utilizou-se a metodologia de Análise de Redes Sociais. A fonte de dados é constituída por conteúdos publicados na internet. Ou seja, não é uma pesquisa que se propõe a descobrir ou denunciar algo que está oculto. Ao contrário, foi uma tentativa de sistematização e análise de informações públicas, mas que estavam dispersas na rede. O resultado publicado é uma análise preliminar de um conjunto muito maior de informações que foram coletadas. Avaliou-se que as informações trabalhadas nessa análise preliminar já permitiam identificar elementos importantes e consistentes para serem publicizados. Mas a pesquisa está em andamento e, certamente, novas informações permitirão ampliar e complexificar a análise preliminar.
Um dos desafios da metodologia de Análise de Redes Sociais é que ela tende a permitir a demonstração de como a rede se estrutura, mas tem mais dificuldade de oferecer suporte para a análise de como a rede opera. Além disso, o uso de informações públicas deixa de captar um conjunto de práticas e relações não públicas que tendem a ser tão ou mais importantes para entender a forma como a rede exerce seus efeitos. Mas um dado que é bastante contundente para demonstrar como o poder econômico se traduz em influência política é o financiamento de campanha. E os dados coletados no site do Tribunal Superior Eleitoral – TSE sobre as relações entre empresários e políticos, por meio do financiamento de campanha, demonstram que há uma ação sistemática e organizada para a eleição de candidaturas alinhadas com o interesse empresarial tanto no Executivo quanto no Legislativo municipal. E tais candidaturas, se bem sucedidas, retribuem o apoio tanto através de gestos simbólicos (é recorrente, por exemplo, a concessão de medalhas a empresários por proposição de políticos que são financiados por tais empresários) quanto através da aprovação de leis e projetos favoráveis aos interesses econômicos do empresariado.
IHU – O que é o Instituto de Estudos Empresariais e qual sua ligação com o poder público?
Marcelo Kunrath Silva – O Instituto de Estudos Empresariais – IEE apareceu como a entidade com mais conexões na rede apreendida a partir da pesquisa. Esse resultado, em parte, é produto do processo de coleta de dados, que começou por uma entidade (o Instituto Cultural Floresta) cujos integrantes tendem a ter relações históricas e intensas com o IEE. Mas essa centralidade também indica a importância do IEE na conformação dessa coalizão dominante.
O IEE tem o objetivo explícito de não apenas defender os interesses corporativos do empresariado, mas também de fazer uma disputa ideológico-cultural mais ampla na sociedade. Nesse sentido, especialmente através do Fórum da Liberdade, evento anualmente patrocinado e realizado pelo IEE, o Instituto busca defender e difundir o ideário “liberal”. Esse termo é colocado entre aspas, pois o sentido de liberalismo defendido é, centralmente, a “liberdade do mercado”. Dessa forma, elementos centrais do liberalismo clássico, como a garantia de direitos universais, por exemplo, tendem a ser pouco considerados. Essa compreensão estreita do liberalismo é que permite estranhas composições como o já famoso “liberal na economia, mas conservador nos costumes”.
O IEE exerce sua influência junto aos agentes públicos, do Executivo e do Legislativo, de diversas formas: convites para palestrar nos eventos, presença de agentes políticos entre seus membros (o atual vice-prefeito de Porto Alegre, Ricardo Gomes, foi presidente do IEE), financiamento de candidaturas por parte de membros, influência ideológica etc. Mas, como ressaltei acima, a metodologia utilizada tem como principal objetivo identificar e analisar como as relações se estruturam. Assim, a compreensão mais aprofundada de como as relações operam, produzindo influência política por exemplo, demandam uma ampliação da metodologia de pesquisa.
Ecossistema do Instituto de Estudos Empresariais (IEE) | (Fonte: Matinal Jornalismo)
IHU – Quais outros think thanks atuam na capital? Como interferem na vida de Porto Alegre?
Marcelo Kunrath Silva – A pesquisa identificou outras organizações com grande importância em termos da produção e defesa de ideias e propostas desta coalizão que governa Porto Alegre. As entidades com maiores vínculos na rede analisada foram: Pacto Alegre, Instituto Caldeira, Transforma RS e Instituto Cultural Floresta. Unidas em torno de um discurso comum, que destaca a atuação na criação de um “ecossistema” que promove empreendedorismo, inovação, competitividade e desenvolvimento, essas organizações compartilham membros e financiadores.
Apesar das significativas diferenças entre as organizações, elas tendem a atuar conjuntamente na reestruturação da própria imagem da cidade: da “capital da participação popular”, como foi conhecida nos anos 1990 e início dos 2000, hoje Porto Alegre é apresentada por estas organizações e pelos agentes governamentais que a elas se aliam como a “capital da inovação”. E, assim como o Fórum Social Mundial foi o evento que simbolizou a capital da participação popular, o South Summit é o evento que atualmente simboliza a capital da inovação.
Ecossistema do Instituto Caldeira (Fonte: Matinal Jornalismo)
Além dessa atuação no campo ideológico-cultural, há outras ações de impactos mais diretos na vida da cidade. O exemplo que parece ser mais evidente disto é a atuação do Instituto Cultural Floresta (ICF) na segurança pública da cidade. Durante um tempo, o ICF atuou na realização de doações de equipamentos para as instituições de segurança pública em Porto Alegre. A partir de tal atuação, atuou na construção e proposição de uma política pública, o Programa de Incentivo ao Aparelhamento da Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul – PISEG/RS, aprovado em 2018. O PISEG permite que empresários substituam parte do ICMS por doações às forças de segurança pública, escolhendo o que é doado e quem recebe a doação. Dessa forma, o governo abre mão da decisão sobre a alocação de uma parte do imposto, que passa a ser decidida pelos doadores. Tal processo expressa uma privatização na definição das ações governamentais, que passam a ser definidas por entes privados (doadores).
IHU – Qual o papel de Sebastião Melo neste xadrez?
Marcelo Kunrath Silva – As relações do prefeito Sebastião Melo com os agentes mais centrais da coalizão governante apresentam uma trajetória interessante. Nas eleições de 2016, quando o MDB de Sebastião Melo se alia ao PDT de Juliana Brizola, os dados de financiamento de campanha mostram uma evidente opção do empresariado pela candidatura de Nelson Marchezan Jr., do PSDB. Já nas eleições de 2020, o quadro se altera significativamente: com o ex-presidente do IEE, Ricardo Gomes (na época no Democratas) como candidato a vice-prefeito, Sebastião Melo recebe o apoio financeiro (e, obviamente, político) de empresários centrais da coalizão governante.
Assim, observa-se que representantes políticos são apoiados na medida em que combinam duas características: chances de êxito eleitoral e alinhamento com os interesses empresariais. Nesse sentido, o prefeito Sebastião Melo tem tido uma atuação que o habilita a manter o apoio que obteve em 2020. Em um eventual declínio das chances eleitorais de Melo, no entanto, outras candidaturas podem ser apoiadas.
Ecossistema de relações do prefeito Sebastião Melo (Fonte: Matinal Jornalismo)
IHU – Que outros políticos aparecem na pesquisa como relacionados a esses grupos?
Marcelo Kunrath Silva – Analisando os financiamentos de campanha e outras relações identificadas, identificam-se diversos políticos na rede. Aqueles com maior centralidade são: Mônica Leal (PP), Cezar Schirmer (MDB), Ricardo Gomes (sem partido), Fábio Ostermann (Novo), Marcel Van Hattem (Novo), Felipe Camozzato (Novo), Fernanda Barth (PSC), Mariana Pimentel (Republicanos), Ramiro Rosário (PSDB), Tiago Albrecht (Novo) e Jessé Sangalli de Mello (PL). Ou seja, a coalizão governante articula diversos partidos que se colocam no espectro político da direita. Essa amplitude possibilita uma grande capacidade de influência nas decisões do Legislativo Municipal, como se observou em temas que envolvem diretamente os interesses econômicos dos grupos empresariais, como é o caso da construção civil e do planejamento urbano.
IHU – A capital gaúcha e a gestão municipal viraram alvos de muitas críticas em função do não investimento no sistema de proteção contra cheias, apesar o superávit milionário do Dmae. Esses “donos” de Porto Alegre seriam sócios do colapso causado pela enchente?
Marcelo Kunrath Silva – Essa é uma afirmação que a pesquisa não permite responder de forma direta. No entanto, avaliações têm mostrado que a dimensão catastrófica do impacto causado pela enchente está relacionada a diversas ações ou omissões do governo municipal. Essas ações ou omissões são, em parte, decorrentes de um projeto político explicitamente voltado à desestruturação e privatização de setores importantes da administração municipal. Tal projeto político obviamente gera uma perda de capacidades estatais que se mostraram cruciais no momento da enchente. Uma vez que esse projeto político é compartilhado pelo conjunto da coalizão dominante, pode-se argumentar que há uma responsabilidade compartilhada.
Além disso, há uma questão mais estrutural que se refere às implicações das enchentes em cidades marcadas por desigualdades extremas. Apesar do impacto em áreas de maior renda da cidade, como Menino Deus e Cidade Baixa, o fato é que o impacto mais devastador e de maior duração recaiu sobre os territórios habitados por populações em situação de maior precariedade. Tais populações são forçadas por uma sociedade excludente a habitarem as áreas mais propensas a serem afetadas por desastres, como as enchentes. Na medida em que o projeto político defendido pela coalizão dominante não incorpora essas populações nem como sujeitos de direitos, nem como cidadãos e cidadãs que devem ser ouvidos pelos governantes, obviamente que o resultado é uma fragilização dessas populações frente a desastres como as enchentes de 2024.
IHU – Quais os riscos e as chances de submeter o processo de reconstrução de Porto Alegre após as enchentes aos interesses desses grupos com forte influência no poder público municipal?
Marcelo Kunrath Silva – O processo de reconstrução de Porto Alegre e, mais amplamente, do Rio Grande do Sul se tornou objeto de uma forte mobilização da rede identificada na pesquisa. De um lado, há iniciativas do próprio empresariado, como o Reconstrói RS, promovido pelo Instituto Ling, o Instituto Cultural Floresta e a Federasul, e o Regenera RS, promovido pelo Instituto Helda Gerdau, com recursos iniciais da Gerdau e da Vale. Essas iniciativas se caracterizam por doações de recursos empresariais para ações de reconstrução escolhidas pelos doadores. O que se vê aqui é uma lógica muito similar à referida ação do ICF na segurança pública e que deu origem ao PISEG.
De outro, há uma forte mobilização para incidir nas políticas de reconstrução de diferentes níveis de governo: municipal, estadual e federal. Nos âmbitos municipal e estadual, como seria esperado, é visível a grande permeabilidade dos governos às demandas e propostas da coalizão governante. Desde a escolha dos locais (Instituto Ling e TecnoPuc) que a Prefeitura de Porto Alegre utiliza para apresentar seus projetos até a composição do conselho do Plano Rio Grande, há um forte privilegiamento da coalizão governante. Essas escolhas apontam para um sério risco de uma reconstrução que mantenha e, talvez, amplie as brutais desigualdades e violências que marcam as vidas da imensa maioria da população, que hoje está excluída dos espaços de decisão sobre políticas que definirão o seu futuro.