05 Julho 2017
Analistas discutem motivações e desdobramentos possíveis da crise política brasileira, que atinge novo auge com a denúncia do presidente.
Os tempos, definitivamente, não estão para brincadeira. Mas é com uma expressão descontraída que o professor Plinio de Arruda Sampaio Junior, do Instituto de Economia da Unicamp, resume o que, na sua avaliação, estaria na raiz da turbulência que tem assolado o Brasil. “Aparentemente lá no andar de cima o pau está quebrando feio”, descreve, com olhos atentos ao momento em que a crise política atinge um novo ‘auge’, com as denúncias de corrupção envolvendo diretamente o presidente Michel Temer.
A reportagem é de Cátia Guimarães e publicada por EPSJV/Fiocruz, 04-07-2017.
Hipóteses diversas tentam explicar as motivações dessa ‘briga’, que envolveria frações do grande empresariado e, cada vez mais, instituições clássicas do sistema político, como o Judiciário, o Legislativo e o Ministério Público. Análises variadas fazem suas apostas sobre o que virá depois do fundo do poço. O consenso é quase nenhum. “Se alguém disser que sabe explicar o que está acontecendo no Brasil hoje, prende porque está envolvido”, brincou também o professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mauro Iasi, durante um evento realizado ainda antes do vazamento da delação premiada dos donos da J&F, que deu início ao ‘cai não cai’ do presidente.
A única certeza é que, comparado com um ano atrás, quando o país assistiu ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, o cenário ficou mais complexo. De um lado, cresceu a mobilização social contra as reformas trabalhista e da previdência que, ironicamente, se tornaram o trunfo do governo Temer para manter o apoio do grande empresariado. De outro, os ‘estragos’ produzidos pela Operação Lava Jato se expandiram para outras siglas e lideranças políticas, complicando as teorias que identificavam apenas um processo de criminalização do Partido dos Trabalhadores. “Até então se imaginava que o movimento da classe dominante era apenas para atingir a esquerda da ordem, o PT. Ficou claro que é uma briga mais profunda do que isso”, completa Plinio.
O comportamento das Organizações Globo, um dos maiores e mais importantes grupos empresariais do Brasil, deu a medida da temperatura da crise. Temer não tinha mais condições de governar, bradavam, já na primeira noite, os comentaristas que circulam diariamente pelos principais veículos de comunicação do país. O ‘furo de reportagem’ chegou à casa dos brasileiros na noite de 17 de maio. E a sensação era de que o breve e instável governo de Michel Temer não duraria nem mais 24 horas. Ele, no entanto, resistiu. Dois dias depois, um editorial do jornal O Globo publicado no meio do dia na versão online dava um passo adiante, pedindo a renúncia do presidente. “O Temer passou uma semana sendo literalmente bombardeado, tanto pelo Globo quanto pelo Jornal Nacional. Isso é muito difícil de explicar”, reconhece Pablo Ortellado, coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, projeto que ele desenvolve como professor da Universidade de São Paulo.
Mas o que parecia um ataque fulminante foi cada vez mais se mostrando uma batalha com dois lados, que dividiu até os grupos de mídia. Na direção oposta àquela assumida pelas Organizações Globo, o Estadão saiu em defesa de Michel Temer: com críticas crescentes ao Ministério Público Federal, chegou a recomendar, em editorial, que a denúncia do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que acusa o presidente do crime de corrupção passiva, fosse recusada pelo Supremo Tribunal Federal. Só depois de passados 18 dias do vazamento, a Folha de S. Paulo assumiu um posicionamento mais claro, recomendando – sem sucesso, como se viu depois – a cassação da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), lamentando repetidas vezes o grau de instabilidade que geraria a saída de outro presidente em tão curto tempo.
O que explica toda essa divisão? “Há setores mais imediatistas que acham que o Temer é um governo capaz de conduzir as reformas e que, por mais que cheire mal, é preciso tapar o nariz e segurar isso até 2018. E há outros setores que, no meu entendimento, trabalham com uma estratégia de transição de longo prazo. Quando a Rede Globo joga o Temer ao mar com tanta rapidez e tanta decisão, eu acredito que o que está em jogo aí é o entendimento de que é preciso construir uma nova transição. Porque o que está se desmontando neste momento não é apenas o governo Temer, é o sistema político da Nova República”, analisa Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
A suposição é de que o grau de rejeição e descrença atual tornou o sistema político brasileiro insustentável, trazendo de forma concreta o ‘risco’ de surgirem “movimentos contestatórios por baixo”. Assim, o crescimento da mobilização social nos últimos meses teria acendido um sinal de alerta. “Eu acho que há setores da classe dominante que perceberam isso e que acreditam piamente em alguma forma de transição conservadora, tal como aquela feita no fim da ditadura militar – e que gerou exatamente esse sistema político. Seria uma transição controlada, feita por cima, de cúpula. E, nesse processo, depositam um papel protagonista para setores do Judiciário”, analisa Boulos. Por enquanto, diz, Temer tem sido mantido por um outro setor do grande empresariado que, “apesar de tudo, o vê ainda como a via mais rápida de realizar as reformas”. Mas ele alerta: “Se essa turma perceber que ele não vai ter condições de entregar esse pacote e, de uma vez por todas, desembarcar do governo, o Temer cai”.
A julgar pela fala do presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Andrade, que representa quase 700 mil empresas no país, esse momento ainda não chegou. Segundo ele, em entrevista à jornalista Maria Cristina Frias, na Folha de S. Paulo do dia 26 de junho, hoje “todo o empresariado” defende a permanência do presidente Temer. “É melhor seguir e fazer a transição no país. Chega de turbulência”, defendeu, de acordo com o jornal. Foi uma fala isolada. Entre as outras entidades, parece reinar um compasso de espera. Entre os analistas ouvidos pela Poli, há controvérsias. “Temer tem muito pouco apoio na classe dominante hoje”, aposta Valério Arcary, professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Baseado em pesquisas que fazem monitoramento da esfera pública nas ruas e nas redes sociais, Ortellado vai além: “Temer está completamente isolado. Na sociedade civil hoje, ele não tem nenhum apoio significativo”. Ele exemplifica com a situação dos movimentos sociais de direita que deram sustentação ao impeachment, como MBL e Vem pra Rua. “Todos eles se retiraram. Se estão apoiando, é por debaixo dos panos, o que conta muito pouco para quem faz agitação na sociedade civil. Eles foram obrigados a se posicionar de forma contrária ao governo Temer, embora não tenham feito nenhum tipo de mobilização, um pouco para não se somar ao grito de Diretas e, com isso, permitir que Lula seja eleito”, explica.
O fato inegável é que a declaração de Andrade foi um passo além, comparada à cautela que marcou a posição das principais entidades empresariais do país, inclusive a própria CNI, nos dias imediatamente após a denúncia. Num ‘Comunicado à nação’ publicado no dia 23 de maio nos principais jornais brasileiros, a Confederação clamou por “estabilidade política e econômica”, reconheceu a “turbulência” do momento e declarou confiança nos “poderes da república” para solucionarem a crise com “serenidade, equilíbrio e espírito público, em estreita observância da Constituição Federal”. Sem fazer qualquer referência ao presidente Temer, a imprecisão sobre o apoio ao governo contrastava com a firmeza na defesa da pauta econômica: “As reformas trabalhista, previdenciária, tributária e política são imprescindíveis e têm de continuar avançando”, dizia o texto.
Três dias depois, foi a vez da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), que, também em anúncio na imprensa, se referiu às denúncias como “acontecimentos inesperados, que não nos cabe julgar”, afirmou confiança nas instituições para a “manutenção do Estado de Direito” e declarou-se contrária a “qualquer resultado” que prejudicasse as reformas. “A interrupção da volta à normalidade representa um grave risco à retomada do crescimento. Este é um destino que não podemos e não vamos aceitar”, diz o texto.
Na véspera, referindo-se genericamente às denúncias como “últimos acontecimentos”, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) pediu paz, apelou a uma “espécie de trégua institucional, política e partidária” e à “união de todas as forças da sociedade civil”. Sem fugir à regra, defendeu que “o Brasil precisa chegar às eleições de 2018 sem novos sobressaltos e com manutenção de uma base de apoio no Congresso Nacional que viabilize a continuidade da agenda de reformas”. É pelas reformas, pareciam dizer em bloco, que Temer deve ficar ou cair. Apenas a Fiesp, que protagonizou a defesa do impeachment em 2016, não fez referência às mudanças trabalhista e previdenciária, dedicando-se a defender a urgência de uma reforma política.
Mas, reproduzindo o velho ditado, o que a realidade já mostrava a essa altura é que tinha faltado combinar com os adversários. Isso porque, quase dois meses antes da delação que envolveu o presidente, no dia 15 de março, cerca de um milhão de pessoas, segundo os organizadores, foram às ruas do país. Em 28 de abril, uma unidade de ação entre as várias centrais sindicais produziu um dia de paralisação e mobilização que foi comemorado como a maior greve nacional do país desde a década de 1980. “A pressão popular já estava extremamente ativa antes mesmo da divulgação das delações da JBS e isso tem a ver, acima de tudo, com a agenda de reformas”, explica Boulos.
Na continuidade dessa mobilização, quando movimentos sociais e centrais sindicais agendaram um ato chamado ‘Ocupa Brasília’ para o dia 24 de maio, o objetivo era o mesmo: intensificar a pressão no Congresso contra a aprovação das reformas. Mas, com o país surpreendido uma semana antes pela denúncia de corrupção que atingiu o Planalto, a manifestação incorporou os gritos de ‘Fora Temer’ e ‘Diretas Já’. O governo resolveu demonstrar força. Literalmente. Uma violenta repressão policial deixou muitos feridos e pelo menos um manifestante atingido por bala letal. Além disso, Temer e o ministro da Justiça, Raul Jungman, assinaram um decreto autorizando a presença das Forças Armadas por uma semana para garantir a ordem em Brasília. Diante da repercussão, no dia seguinte, Temer recuou.
Nas manchetes dos jornais, o descabido do decreto e a bandeira do ‘Fora Temer’ deram o tom do noticiário, deixando a oposição às reformas em segundo plano. Mas não tem sido fácil ignorar o grau de impopularidade dessas medidas. Pesquisa Datafolha realizada em abril deste ano mostrou que 71% dos brasileiros são contra as mudanças propostas na aposentadoria. Enquete desenvolvida pelo Instituto Ipsos em maio aponta que 58% da população também não aprova a reforma trabalhista, o que é reforçado pelo resultado da consulta pública promovida pelo site do Senado: na data de fechamento desta matéria, 154,7 mil tinham votado contra a reforma e apenas 7,5 mil a favor. Além disso, segundo a última pesquisa Datafolha, realizada em junho, 64% dos brasileiros afirmam que essa reforma vai beneficiar mais os empresários do que os trabalhadores.
“O problema é que tanto o governo Temer quanto o Congresso Nacional demonstraram nos últimos meses que governam de costas para a sociedade. As reformas são rejeitadas por mais de 70% da população, uma maioria esmagadora defende eleições diretas e isso não ecoa nem no governo nem no parlamento. Criou-se um verdadeiro abismo entre a voz das ruas, o Congresso e o governo do outro lado”, analisa Boulos. Pablo Ortellado resume: “Como Temer não foi eleito, ele não precisa ligar muito para sua aprovação. Essa agenda econômica não veio do processo eleitoral. Além disso, a gente tem um Congresso unido pelo medo da Lava Jato, que está apostando que, ao fazer as reformas que agradam o mercado, vai conseguir uma espécie de salvo-conduto. Eu acho que essa conjunção de fatores está levando a essa situação excepcional que a gente está vivendo de desprezo pela democracia, em que pouco importa o que os eleitores pensam”.
Não veio das urnas nem das ruas. De acordo com pesquisas realizadas por Ortellado durante os protestos pró-impeachment, mais de 70% dos manifestantes que foram às ruas denunciar o governo Dilma e o Partido dos Trabalhadores eram contra a reforma da previdência. O mesmo se verifica no acompanhamento feito nas redes sociais onde, segundo ele, as lideranças de movimentos como o MBL e o Vem pra Rua têm “apanhado” da sua base a cada vez que fazem campanha pelas reformas do governo Temer. Embora pondere que seus seguidores nas redes sociais não são todos integrantes da sua base, a coordenadora nacional do Vem pra Rua, Adelaide de Oliveira, não nega. “A gente já sabia que as reformas são impopulares, não é novidade. Mas continuamos considerando um remédio amargo que nós teremos que tomar”, afirma, explicando que, no mundo todo, a “população em geral” é “um pouco mais imediatista”.
Ela lamenta que hoje, diante da crise política, sejam “reduzidas as chances” de aprovação, principalmente da reforma da previdência. “A gente torce para que isso aconteça, mas não acredito”, diz. Adelaide considera o Congresso atual “horroroso”, reconhece que boa parte dos parlamentares está comprometida com escândalos de corrupção, mas não concorda com o argumento de que eles não teriam legitimidade para votar mudanças tão profundas como essas. “Legitimidade eles têm porque foram eleitos. A palavra não é ‘legítima’. Se eu acho conveniente que eles façam? Sim, eu acho conveniente que eles façam o correto. E para nós, as reformas estão na direção certa”, afirma.
Da parte do governo, pesa nesse cálculo o fato de as reformas da previdência e trabalhista serem o carro-chefe da carta de exigências que diversos segmentos do grande empresariado apresentaram a Temer quando decidiram apoiar o impeachment que o levou ao Planalto. Entre a popularidade que nunca teve e o compromisso com o que uma parte do andar de cima considerava a receita para a “retomada da economia”, o governo não teve dúvidas em acelerar a votação das medidas. Parecia estar dando certo. “Temer tentou fazer com as reformas trabalhista e da previdência o que ele fez com a PEC do Teto: tramitar muito rapidamente e impedir o debate público. Acontece que houve uma inédita aliança das centrais sindicais, que conferiu força às mobilizações e impediu essa tramitação rápida. E uma vez que a sociedade discutiu o tema, ela foi contra”, explica Pablo Ortellado, ressaltando que as duas últimas grandes mobilizações sociais atrasaram a agenda do governo.
Na avaliação de Plinio de Arruda Sampaio, foi exatamente esse movimento, mais especificamente a realização da greve geral em abril, um dos fatores que acelerou o que ele chama de “derretimento do governo Temer”. O que se viu, diz, foi a “entrada em cena” de um sujeito que estava relativamente ausente: a “classe operária”. “Eu uso uma metáfora: você vai a um velório e, de repente, o morto mexe o dedo. Todo mundo presta atenção, é um susto danado”, brinca, argumentando que essa surpresa “catalisou” um segundo processo: a tal disputa no andar de cima, que, segundo ele, está na raiz da delação dos irmãos Batista e das ameaças que rondam o presidente.
Mas, afinal, que disputa é essa? Antes de tudo, ressalta Plinio, é preciso não esquecer do pano de fundo da crise econômica, que ele considera a maior da história moderna no país. No caso específico do Brasil, ele defende que está em curso uma “crise terminal da industrialização por substituição de importações”, que se intensificou nos últimos 15 anos. Isso significa que, na divisão internacional do trabalho, o país passou a ocupar um lugar “ultraespecializado” – e mais rebaixado – de quem produz e exporta produtos primários como carnes e minérios: as chamadas commodities. Nesse processo, diz, há setores empresariais em decadência e outros em curva ascendente.
No primeiro caso, está, segundo ele, a indústria como um todo, aqueles setores representados por entidades como a CNI e a Fiesp. Engrossam também esse grupo as empreiteiras que, neste momento, sofrem uma grande pressão das concorrentes internacionais que querem entrar no mercado brasileiro. Coerentes com esse novo papel econômico do país, na outra ponta, em “franca expansão”, estariam os setores ligados ao agronegócio e à mineração. JBS e Vale – que, como ele destaca, cometeu um dos maiores crimes ambientais da história e até hoje não sofreu qualquer consequência – são bons exemplos de quem sai ganhando. No mesmo barco, aponta, o sistema financeiro também vai muito bem, obrigado. “A nova burguesia agora não tem a cara do Antonio Ermírio de Moraes [do grupo Votorantim]. Tem a cara do Joesley”, resume.
Tentando mapear o posicionamento do conjunto do empresariado, a reportagem da Poli entrou em contato com três entidades de diferentes segmentos. Nenhuma delas aceitou dar entrevista. Por meio de sua assessoria, a Fiesp respondeu que apenas o presidente, Paulo Skaff, poderia falar sobre isso, mas não tinha agenda. A Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária enviou a nota publicada nos jornais, afirmando que aquela era a posição oficial da entidade. Já a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), que não divulgou anúncio sobre o tema em nenhum jornal, disse, também através da assessoria, que não costuma se posicionar sobre a “crise econômica”. Esclarecida de que a pauta era, na verdade, a crise “política”, a resposta foi: “Menos ainda”.
Mas o que tudo isso tem a ver com a crise? “Ao ajuste econômico vai corresponder um ajuste político”, sugere Plínio, ressaltando que, evidentemente, esse processo não se dá de modo automático. Isso significa que, junto com os representantes do “velho” na economia, estaria morrendo também o que ficou “velho” na política: mais precisamente, a chamada Nova República, entendida como o sistema que emergiu no Brasil após o fim da ditadura empresarial-militar. Para caracterizar os lados dessa disputa, o economista criou até uma nomenclatura própria. “A briga dentro da burguesia se divide em duas frações, que eu chamo de ‘partido do estanca sangria’ e ‘partido do fora todos’”, classifica. Entre os representantes do ‘fora todos’, ele cita Rodrigo
Janot, a Rede Globo e o juiz Sergio Moro – mas, institucionalmente, esse grupo pode ser resumido como aquele que tem sustentado o que ficou conhecido no Brasil como ‘Operação Lava Jato’. Já o ‘estanca sangria’, segundo ele, teria o senador Romero Jucá, ex-ministro do governo Temer, afastado após o vazamento de um áudio em que defendia um pacto para frear a operação, como sua maior expressão.
Afinal, quais as motivações da operação que já prendeu vários políticos e empresários, fomentou o caldo social que facilitou o apoio ao impeachment e agora ameaça o presidente Temer? Sobre isso, mais uma vez, abre-se um terreno em que não há consenso. Para Pablo Ortellado, os fatos mais atuais já permitem concluir que a seletividade antes atribuída à Lava Jato se deve, na verdade, à exploração que os meios de comunicação fazem dos seus resultados e não à operação em si. “Eu acho que uma coisa importante que qualquer análise de conjuntura precisa levar em conta é que não tem nenhuma força política por detrás do que está acontecendo no Brasil”, diz, defendendo que, para entender essa dinâmica, é preciso olhar para as “lógicas institucionais separadas”. “O TSE, a Lava Jato, a Procuradoria Geral, o Supremo, o Congresso, cada um tem um jogo próprio. Todas as explicações que buscam uma força oculta que estaria conduzindo todos esses atores são, obviamente, falsas”, diz. Especificamente em relação à operação, isso significa, na avaliação do professor, que se trata, “aparentemente”, de uma investigação que, ainda que com “recursos de legalidade duvidosa”, está tentando limpar o Brasil da corrupção. “Não está a serviço de nenhum ator político”, resume.
Mantendo o raciocínio da briga entre o ‘partido do estanca sangria’ e o ‘partido do fora todos’, Plinio não nega que as instituições que compõem a Lava Jato tenham se autonomizado – ele acredita, inclusive, que, já na presidência, Temer fez de tudo para frear a operação e não conseguiu. Mas, para o economista, o importante é que, sozinha, essa autonomia “não explica nada”. Isso porque, segundo ele, a pergunta para entender esse processo deve ser: “qual o sentido do conjunto dessas ações?”. E a resposta, na sua opinião, é que – ainda que não se trate de um movimento “intencional e programado”, já que os agentes não seriam “totalmente conscientes”– há uma parte do “sistema de poder” no Brasil que está atuando para destruir a outra. E ele acha que, por enquanto, tem conseguido.
Para Valério Arcary, a Lava Jato tem atuado, ela própria, como ator político. Mas ele recusa qualquer interpretação que se prenda na autonomia das instituições envolvidas. “A ideia de que há uma autonomia da investigação da Polícia Federal ou da atuação do Ministério Público em relação à classe dominante, ao capitalismo brasileiro, é fantasiosa. As classes médias no Brasil não têm musculatura, não têm peso social, não têm iniciativa política nem representação partidária que permita cumprir papel tão elevado”, opina, e conclui: “Isso significa que há um apoio burguês à Operação Lava Jato. Sem isso, não seria possível eles conquistarem esse prestígio, inclusive com os grupos de mídia, que obedecem diretamente às escolhas estratégicas da classe dominante”.
Mas que forças seriam essas representadas pelas ações da Lava Jato? “Eu acho que, primeiro, há uma pressão dos imperialismos em geral, particularmente do norte-americano”, responde. Segundo ele, ainda em 2008, os efeitos da crise na economia dos EUA provocaram, entre outras coisas, uma mudança na relação entre os países que incluiu, por exemplo, uma maior colaboração internacional entre os ministérios públicos. “A Suíça, por exemplo, flexibilizou o seu sigilo bancário, que era inviolável há séculos”, conta. No caso específico do Brasil, o ponto central de incômodo, de acordo com Arcary, passava pela relação dos partidos políticos com alguns “grandes ramos da economia nacional”. “Isso atingiu proporções que subvertem as regras de funcionamento do capitalismo contemporâneo, basicamente, as operações com o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e o papel da Petrobras”, analisa, afirmando que hoje já se sabe que, no início da Lava Jato, “o Ministério Público foi subsidiado pela Polícia Federal com informações do governo norte-americano, que também estabelecia vigilância sobre alguns grandes grupos empresariais no Brasil, em particular, as empreiteiras”. Isso lá na origem, diz. Porque, a partir daí, uma fração da classe dominante brasileira teria se convencido de que, de fato, era preciso “modernizar as regras” do regime político que tinha gerado essas relações. E, na sua avaliação, é precisamente isso que está acontecendo até agora: uma reforma política, só que feita “a quente”.
Ele explica que, em condições normais de temperatura e pressão, uma transição como essa deveria se dar com debate no Legislativo, comandada por um “partido burguês” – papel que, segundo Arcary, caberia ao PSDB, sigla que representaria a “direção política da classe dominante” no Brasil. “Mas o PSDB está falhando”, diz, alertando que, diante dessa ausência, a Lava Jato passou a operar como “sujeito político”. A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Virgínia Fontes também reconhece que, em algum momento, a “condução” da Lava Jato pode ter adquirido certa autonomia quando se tratava de “travar” o PT. Mas ela ressalta que nenhuma parte do Estado tem autonomia completa e acredita que a presença maior da Procuradoria Geral da República atualmente pode ter o objetivo de corrigir os rumos da operação, fazendo com que ela se espalhasse para um espectro político muito além do petismo.
Como elemento da conjuntura, Virgínia não ignora, por exemplo, o fato de o juiz Sergio Moro se achar um “salvador”, mas ela avalia que o magistrado também não deixa dúvidas sobre sua simpatia e “eventualmente proximidade” com o PSDB, o principal partido de oposição ao PT que foi o primeiro foco da Lava Jato. “A estrutura de investigação dele era muito enviesada e não deixou de ser”, opina. Muito ilustrativo disso, na avaliação da historiadora, é o fato de o capítulo mais recente da operação, que atinge o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves, do PSDB, não ter sido conduzido pela chamada força-tarefa de Curitiba e sim pela Procuradoria Geral da República, em Brasília.
De fato, a condução da delação premiada dos irmãos Batista pela PGR não fui fruto apenas de um trâmite legal, pelo fato de o presidente ter foro privilegiado. Segundo a assessoria do procurador Rodrigo Janot, a J&F já tinha sido citada nas investigações da Lava Jato conduzidas pela força-tarefa de Curitiba. Mas, como eram muitos os fios levantados pela operação, naquele momento não se desdobrou uma investigação específica. Um envolvimento mais direto da empresa com esquemas de corrupção veio à tona recentemente, por meio de outras duas operações policiais: a Greenfield e a Carne Fraca. Foi aí que Joesley e Wesley decidiram propor um acordo de delação premiada e, para isso, procuraram diretamente o procurador-geral da República.
Tudo que aconteceu a partir daí – por exemplo, a produção de provas materiais, como o áudio da conversa de Temer, a gravação do telefonema de Aécio e o vídeo do então deputado Rodrigo Rocha Loures com uma mala de dinheiro que os donos da J&F denunciaram como propina – foi acordado e conduzido apenas pela PGR, sem participação da força-tarefa mais conhecida da Lava Jato, associada a Sergio Moro.
Para o cientista político Luiz Felipe Miguel, da Universidade de Brasília, os desdobramentos atuais da Lava Jato expressam as divisões no interior da correlação de forças que instrumentalizou a operação para promover o impeachment da presidente Dilma. Na sua avaliação, quando Temer assumiu o Planalto, esses conflitos se tornaram visíveis tanto no “bloco de poder” quanto nos próprios “operadores do campo jurídico”, o que inclui o Judiciário e o Ministério Público. “Sergio Moro é claramente vinculado ao PSDB. Tanto que ele perde o protagonismo a partir do momento em que a investigação chega, de fato, ao PSDB e ao PMDB”, diz.
No exato momento em que esta matéria estava sendo concluída, novas mudanças pareciam não só deslocar o protagonismo da Lava Jato, mas também alterar os desdobramentos mais imediatos da crise política. No dia 30 de junho, enquanto trabalhadores faziam mais uma greve geral, o STF tomou duas decisões que podem mudar os rumos dos acontecimentos. Primeiro, o ministro Marco Aurélio Mello não apenas negou o pedido da PGR para prender Aécio Neves como determinou a volta do político mineiro às funções de senador. Horas depois, o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo, mandou soltar o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures, ex-assessor de Michel Temer. Na madrugada do mesmo dia, apenas algumas horas antes desta decisão, o blog do jornalista Ricardo Noblat no jornal O Globo informou que Temer havia sido avisado de que Loures tinha decidido fazer delação premiada. “Se de fato delatar, o episódio da mala será só um detalhe de um copioso relato que Loures poderá fazer. Sua estreita ligação com Temer é antiga. Loures prestou relevantes serviços ao amigo. E, agora, está se sentindo abandonado por ele e pelos que o cercam”, dizia o texto, ressaltando o fantasma que há muito assombrava o Planalto.
Vale registrar que, desde o início, não faltam críticas à Operação Lava Jato pelo que vários juristas identificam como uma estratégia de prender investigados para forçar um acordo de delação premiada. Em entrevista para reportagem da Poli em setembro de 2016, Afranio Silva Jardim, promotor aposentado e professor de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, condenou essa prática e lembrou que, no famoso artigo sobre a operação Mãos Limpas, o juiz Sergio Moro defende que é preciso, de fato, “criar um desconforto” ao investigado.
Nas situações em que isso foi denunciado, os responsáveis pela força-tarefa negaram essa motivação, defendendo o argumento de que as prisões são necessárias para impedir a fuga, o cometimento de novos crimes ou a destruição de provas, conforme o caso. Mas o fato é que, com muitos investigados presos preventivamente, a operação conseguiu estabelecer um acordo que incriminasse outros, gerando a bola de neve que a Lava Jato se tornou. Como o próprio texto de Noblat lembra, “a pressão da família e o isolamento numa cela da Polícia Federal” – situação exatamente igual a que Loures estava submetido – “também foram decisivos para que o ex-senador Delcídio Amaral delatasse”. A diferença é que uma possível delação do ex-deputado atingiria diretamente Michel Temer; no caso de Delcídio, a delação – que se concretizou – teve como alvos os ex-presidentes Lula e Dilma. Preso em novembro de 2015, o ex-senador também saiu da prisão por determinação do ministro do STF Teori Zavascki, morto em janeiro deste ano num acidente de avião. Ele foi solto exatamente na mesma data (19 de fevereiro de 2016) em que assinou a primeira parte da sua delação – que, no entanto, só foi homologada por Zavascki em 15 de março.
O abalo que cada novo passo da Lava Jato provoca na conjuntura do país – incluindo, agora, o destino da cadeira de quem ocupa o Planalto – dá a medida da falência do sistema político que está ruindo. E, na avaliação de Luiz Felipe Miguel, isso envolve também o Judiciário. “O que a gente tem visto são acertos entre os poderes ao arrepio da lei”, lamenta. E, de acordo com o cientista político, o abandono desses mecanismos que ele define como de “accountability horizontal” fragiliza as bases do sistema político brasileiro.
Ele volta até os chamados escritos federalistas, que fundamentaram a Constituição dos Estados Unidos, para explicar o arranjo que, também no Brasil, prevê mecanismos de freio e controle entre os poderes. “A ideia é que a ambição controle a ambição. Então, se o interesse individual de quem exerce um cargo de poder seria adquirir mais poder, a gente tem que pôr outras pessoas em outros cargos para controlar essa ambição”, explica. O problema, diz, é que essa é uma “leitura absolutamente individualista das ações políticas”.“Nós temos nessas posições indivíduos com suas ambições em conflito. Mas, na verdade, todos defendem os mesmos interesses básicos”, aponta, colocando o dedo na ferida: “Existe um caráter de classe nessas instituições que faz com que, na hora em que o jogo político parece se expandir para além dos acertos entre os grupos já dominantes, elas fazem refrear qualquer transformação”.
O resultado, segundo ele, é que num momento de crise como o atual enfraquecem-se os mecanismos de responsabilização dos agentes públicos e impera a aposta de que o crime vale a pena. E isso, na sua opinião, ajuda a explicar a resistência de Michel Temer mesmo diante de acusações e evidências tão graves. “Se a gente estivesse com o império da lei funcionado, seria de se esperar uma ação muito rápida para afastá-lo do cargo, o que provavelmente levaria o próprio implicado a se afastar para se preservar do que ele saberia ser uma investigação inevitável”, detalha, explicando que o país está vivendo exatamente o processo contrário: “Como a gente não tem segurança de que haverá punição para esses crimes e de que eles serão investigados efetivamente – porque o próprio Supremo já mostrou como age politicamente, mesmo nessas circunstâncias –, isso leva a que agentes do campo mais propriamente político – como o presidente da Câmara – que deveriam estar impulsionando a retirada do Temer, se sintam à vontade para fazer uma negociação simplesmente política, no mau sentido da palavra, e mais ou menos desprezar o elemento criminal da história”.
Diante desse cenário, que ele caracteriza como uma “crise de legitimidade de todo o sistema político”, os problemas não acabam necessariamente se o presidente sob denúncia cair. Não por acaso, nas ruas e nas páginas dos jornais já está em disputa o caminho para um eventual ‘dia seguinte’ ao governo Temer. Na letra da lei, hoje, ocorreriam eleições indiretas, em que o novo ocupante do Planalto seria escolhido pelos parlamentares. De acordo com Luiz Felipe Miguel, no entanto, mesmo essa legislação não é clara em muitos aspectos. “Não se sabe como a eleição ocorre, se Senado e Câmara têm pesos iguais, se precisa de filiação partidária, se é só parlamentar que pode ser escolhido...”, exemplifica.
Mas o mais grave, na sua opinião, é que, ainda que fosse preenchido esse “vácuo de regulação”, essa solução não dá conta do tamanho do problema. “Evidentemente, nesse sistema, uma eleição indireta não tem condição de relegitimar o exercício de poder no país. O chamamento às urnas é a forma clássica de se buscar injetar legitimidade num sistema que está em crise profunda”, analisa, explicando que “as leis não são tábuas sagradas”.
Posicionamento diametralmente oposto tem Adelaide de Oliveira, do Vem pra Rua. “O Vem pra Rua é legalista”, diz, e completa: “Não adianta num momento de crise nós começarmos a mudar uma regra que já estava estabelecida”. No pacote da “legalidade”, ela lembra que, segundo a Constituição, um presidente precisa ser investigado antes de ser retirado do poder. “É isso que tem que acontecer”, afirma, argumentando que o movimento só aceitou pedir o impeachment de Dilma depois do parecer do Tribunal de Contas da União que apontava o crime de responsabilidade. De todo modo, caso Temer desocupe o Planalto – o Vem pra Rua chegou a defender sua renúncia –, eles não têm dúvida de que o caminho devem ser as eleições indiretas. “Além do que, é discutível a legitimidade de quem pede isso. A esquerda está tão atolada nas denúncias quanto o atual governo”, diz.
Alertada de que, segundo as pesquisas, “quem pede isso” não é apenas a esquerda, mas sim a maioria esmagadora da população, a coordenadora nacional do Vem pra Rua relativiza os resultados. “Mas eu imagino que eleições diretas não são uma coisa só. Nesse ‘eleições diretas’ tem vários anseios, tem eleições diretas só para presidente, eleições diretas gerais, mudanças na Constituição para que as eleições não sejam separadas... Nesse saco tem gatos de várias raças, tem várias opiniões embaixo desse guarda-chuva das ‘eleições diretas’”, opina. De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha em junho, 83% dos brasileiros preferem que sejam realizadas eleições diretas se Temer cair. “A popularidade é uma coisa muito boa, mas nem sempre ela é possível”, justifica, respondendo sobre a distância do movimento em relação à maior parte da sociedade nesse quesito.
Mantendo o argumento da legalidade, Adelaide de Oliveira garante que, se houver uma mudança na Constituição que autorize eleições diretas nesse momento, o movimento passará a apoiar esse caminho. Ela, no entanto, mostra convicção de que, dada a maior complexidade da votação de uma Proposta de Emenda Constitucional, não há tempo hábil “para que se discuta, se esclareça e se tome uma decisão sem casuísmos”.
A resistência de um movimento que se autoproclama de direita em relação a essa alternativa concreta apenas reforça o papel estratégico que Valério Arcary acredita que a bandeira das ‘Diretas Já’ tem para as forças de esquerda neste momento. “As duas frações da burguesia em luta entre si são contra as Diretas. Nenhuma expressão burguesa importante é a favor”, analisa.
Na verdade, no debate público, pelo menos duas declarações poderiam relativizar essa análise. Diferenciando-se do posicionamento das Organizações Globo – que apelam à Constituição para defender eleições indiretas –, o jornal Folha de S. Paulo reconheceu, em editorial, que “o ideal seria que o substituto fosse eleito pelo voto direto”. Da mesma forma, em nota enviada à imprensa no dia 14 de junho, Fernando Henrique Cardoso sugere a antecipação das eleições gerais de 2018, num processo que fosse conduzido pelo próprio presidente Temer.
Há, no entanto, quem não acredite na firmeza dessas posições. “A Folha acena com diretas desde o impeachment de Dilma. Mas me parece um aceno cínico: sem fazer força. Em 1984, a Folha aderiu à campanha e produziu uma faixa amarela em suas edições. Hoje fala, em meias palavras, no editorial. A meu ver, pelo risco de perder leitores. O mesmo ocorre com FHC, que acena para eleições gerais – o que certamente assusta os parlamentares –, enquanto seu partido é o principal pilar de sustentação do governo Temer. Não acho que nenhuma das iniciativas seja para valer”, questiona Marcelo Semer, juiz de direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, que afirma não ver como resolver o “dilema” atual “sem passar pelo povo”. “A Nova República começou quando o povo aceitou a derrota das Diretas Já e legitimou a ida ao Colégio Eleitoral. É hora de corrigir esse erro. Uma república que seja nova começa com o voto popular, não termina com ele”, defende.
Para Virgínia Fontes, no que diz respeito à pauta organizativa das forças de esquerda, é preciso ir além: “Nossas palavras de ordem devem ser ‘Diretas Gerais Já’, ‘Fora Temer’, ‘Greve Geral’ e ‘anulação de todos os atos ilegítimos’. Porque não se trata agora de um governo forte conseguir empurrar goela abaixo a extração de direitos e sim o contrário”, propõe, embora, na sequência, ela reconheça que “a correlação de forças ainda não está à altura da gravidade da situação”.
E por que não está? De acordo com a última pesquisa Datafolha, realizada em junho, 83% dos brasileiros acreditam que Temer teve participação no esquema de corrupção denunciado pela Lava Jato. Seu nível de aprovação chegou a 7%, o pior de toda a série histórica do instituto. Em 2016, 60% queriam a renúncia da presidente Dilma e, caso isso não acontecesse, 65% defendiam que ela sofresse impea-chment. Junto com as centenas de milhares de pessoas nas ruas, esses números eram usados para legitimar o aval dado pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal. Era o desejo da maioria, dizia-se – ainda que essa maioria se expressasse de forma diferente daquela que elegeu a presidente, meses antes. Hoje, 79% dos brasileiros querem a renúncia de Temer e 84% defendem um processo de impeachment caso ele se recuse a sair.
Até o fechamento desta reportagem, 25 pedidos de impeachment do presidente tinham sido apresentados. Diferente da pressa e disposição de Eduardo Cunha no passado recente, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que tem a prerrogativa de aceitar ou não os pedidos, se mantinha em silêncio. Em resposta a uma ação de deputados da oposição submetida ao STF, o ministro Alexandre de Moraes, que integrou o governo Temer, estabeleceu um prazo para que o presidente da Câmara explicasse as razões da inércia.
Mas a verdade é que há diferença também na temperatura das ruas. De um lado, no que tem sido ironicamente denunciado como o “silêncio das panelas”, quando a crise chegou ao presidente Temer e outros partidos da base aliada, os movimentos que organizaram o campo “antipetista” em 2016 simplesmente saíram das ruas. Passado mais de um mês da denúncia, nenhum dos movimentos que lideraram os gritos anticorrupção realizou qualquer manifestação contra o governo Temer. O Vem pra Rua chegou a convocar um ato para pedir a renúncia do presidente, no dia 21 de maio, mas recuou, sob o argumento de que, pela quantidade de manifestações realizadas naquela mesma data em São Paulo, colocaria seus seguidores em risco.
Mais de um mês depois, no entanto, nada ainda tinha sido feito. “Eu poderia hoje evocar uma saída ‘Fora Temer’ e colocar um monte de gente da esquerda na rua, pedindo atrás disso um monte de outras coisas”, admite Adelaide de Oliveira. Segundo ela, diferente do que aconteceu em 2016, hoje as pautas estão muito dispersas, o que justificaria “atos de rede” e não mais de rua. Ela explica que o Vem pra Rua “não é só ‘Fora Temer’”, quer que estejam fora “todos os corruptos”. “A gente não personifica porque a corrupção não está personificada nesse momento”, explica. E completa: “É ‘Fora Todos’, inclusive o Temer, o Jucá, o Renan, o Aécio. Nós precisamos fazer um movimento que seja muito mais estrutural do que personificado”.
Seria um arrependimento por ter personificado a corrupção na presidente Dilma um ano atrás? “De maneira nenhuma”, responde. “A personificação aconteceu pela sociedade que, naquele momento, via no governo do PT o poder de alimentação de uma máquina podre. Por isso tirar o PT uniu tanta gente”, justifica, argumentando que, neste momento, o movimento poderia até convocar, mas não haveria “adesão do cidadão”.
No momento em que esta matéria foi fechada, após a entrevista com a coordenadora nacional do movimento, o Vem pra Rua finalmente convocou uma ‘Marcha contra a Impunidade e pela Renovação’. Diante de uma conjuntura tão dinâmica, em que tudo pode mudar no dia seguinte, chama atenção o fato de o ato ter sido anunciado para o dia 27 de agosto, quase dois meses depois da convocação e mais de três meses depois da denúncia. Talvez a pauta explique o prazo prolongado: “exigimos a saída de Temer, a prisão de Lula, e o andamento célere das condenações e prisão dos diversos bandidos que tomaram de assalto o nosso país”, diz o texto.
Se levarmos em conta os resultados da pesquisa que Pablo Ortellado fez das demandas que se destacaram nas primeiras manifestações desse novo ciclo iniciado no Brasil em 2013, não faltariam motivos para que uma grande massa da população estivesse nas ruas de novo. Segundo ele, as Jornadas de Junho trouxeram dois “conteúdos reivindicativos” principais: a defesa dos direitos sociais e a crítica à corrupção. O problema, diz, é que no “pós-Junho”, houve a cisão dessa “agenda unitária da sociedade brasileira” em dois grupos polarizados: a esquerda continuou se atendo à primeira pauta e o campo que ele chama de antipetista se agarrou à segunda. Do lado dos movimentos que cresceram na esteira da defesa do impeachment, isso se expressa, na avaliação do professor, numa falta de identidade entre liderança e base em vários pontos que não dizem respeito à luta contra a corrupção. A diferença no posicionamento sobre as reformas é um exemplo atual. “A liderança desse campo é toda de direita e muito conservadora, mas as pessoas que habitam esse campo não são assim, são diversas, são a cara da população brasileira”, explica. E reforça: “O que unifica os dois campos hoje é que eles não apoiam o governo”.
O fato é que, com as denúncias de corrupção atingindo partidos identificados com a direita e as reformas que atacam os direitos sociais caminhando no Congresso, o “campo antipetista” saiu das ruas e as manifestações de massa em defesa de direitos trabalhistas e previdenciários voltaram a crescer. Mas, pelo menos até agora, elas não foram suficientes para barrar as reformas nem para impor o fim do governo, que as pesquisas mostram ser o desejo da maioria esmagadora da população.
“Não foi uma avalanche”, reconhece Valério Arcary, referindo-se à massa de pessoas que foram às ruas contra Temer. E ele arrisca algumas suposições sobre o que estaria “bloqueando a entrada em cena de milhões de pessoas para dizer Fora Temer, fora reformas e chamar eleições diretas”. Uma hipótese é que as pessoas estejam presas no que ele chama de “ilusões da Lava Jato”, acreditando que não precisam sair às ruas para derrubar Temer porque a operação já estaria fazendo isso. E ele ressalta o risco dessa situação, já que, apesar do discurso de limpeza ética, a reforma política que a Lava Jato está fazendo “a quente” representará uma mudança de regime com “traços reacionários”.
Outro empecilho à mobilização neste momento, diz, seria a dúvida sobre quem vai entrar no lugar do presidente deposto. Por fim, o professor destaca uma “certa desesperança geral em quem vai governar”. “Quando há uma turbulência provocada por um processo tão rápido, há muita poeira no ar, há simplesmente perplexidade. As pessoas ficam muito confusas. E quando estão confusas, elas não se movem porque têm medo de serem manipuladas”, analisa, defendendo que, por isso, parte da população se sente mais segura de sair às ruas por uma pauta como a reforma da previdência, “que elas têm certeza que precisam combater”. Para Luiz Felipe Miguel, é parte desse diagnóstico também o “sentimento de que estamos derrotados de antemão”. “Eu acho que o golpe, de alguma maneira, reforçou isso. A fúria avassaladora do programa da direita levou a um estado de choque e gera passividade. Parece que não adianta fazer nada porque eles vão sempre ganhar”, diz. Virgínia alerta ainda para o aumento da repressão e da violência como um fator que inibe a participação social.
De acordo com Valério Arcary, no entanto, nada disso autoriza uma avaliação pessimista. Afinal, diz, qualquer comparação com o estado de mobilização atual só pode ser feita em relação ao passado concreto e não a um futuro idealizado. E o passado recente, diz, foi mais de uma década de um processo de desmobilização social produzido pelos governos do PT. “Em comparação com o que nós temos em perspectiva histórica, eu diria que a resposta da classe trabalhadora brasileira foi surpreendentemente poderosa”, anima-se.
O fantasma da desmobilização e dos acordos ‘pelo alto’, no entanto, não desapareceu do horizonte. “O PT é amplo, tem vários setores com posições bem diferentes e muitos com posições muito lúcidas. Mas eu acho que o campo majoritário, que inclui o próprio ex-presidente Lula e a nova presidente do partido, [a senadora] Gleise Hoffmann, tem uma enorme dificuldade de transferir a luta política de volta para as ruas”, lamenta Luis Felipe Miguel. Segundo ele, a desmobilização das suas bases sociais e a opção por acordos institucionais foram parte do pacto feito pelo partido para garantir sua permanência no poder. “O PT está viciado nisso”, diz, incluindo nesse pacote também os “braços” do partido, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Outras forças, no entanto, têm apontado a saída oposta. Guilherme Boulos, do MTST, por exemplo, não tem dúvida: “É preciso construir novos caminhos à esquerda. O maior erro que a esquerda brasileira pode cometer neste momento é se apresentar como salvadora do sistema político. Este sistema ruiu. Quem se agarrar a ele, vai junto”.
No momento em que esta reportagem está sendo finalizada, a última jogada dos trabalhadores organizados nesse tabuleiro de xadrez – o dia de Greve Geral realizado em 30 de junho – ainda estava para ser avaliada. Com repercussão na imprensa, houve piquetes, fechamento de estradas e manifestações em cidades de todos os estados brasileiros. Mas a ação unitária se dividiu, principalmente pela estratégia do governo de chamar algumas centrais, entre elas a Força Sindical, para negociar os termos da reforma trabalhista, esvaziando a luta contra a reforma como um todo. Sejam quais forem as razões, o fato é que as primeiras contas já apontavam uma adesão menor do que a que foi comemorada na Greve de 28 de abril. “Eu acho que ainda vem revolta popular. E vem maior”, apostava Virgínia em entrevista à Poli, antes do dia 30. A conferir.
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Crise política: O que será o amanhã? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU