03 Mai 2024
“Botar a casa em ordem”, para o ministro, significa acabar com o déficit mesmo às custas de cortes na Saúde e Educação. Mas o que pesa nas contas públicas são os R$ 5 trilhões que o Tesouro pagou em juros, na última década. Neste vespeiro, ele não quer mexer.
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 30-04-2024.
No próximo dia 5 de maio ocorrerá o Concurso Público Nacional Unificado, um importante processo de inovação e democratização dos certames para seleção de funcionários públicos em uma série de carreiras do governo federal. Como a economia é uma das matérias que deverão ser apresentadas aos candidatos, não seria de todo impossível imaginar a seguinte questão:
(…) “Mais importante do que o número é o compromisso de que nós vamos botar ordem em 10 anos de déficits públicos que acumulam quase 2 trilhões de reais” (…).
Aponte quem foi o ministro da Fazenda que fez a afirmação acima:
b) Joaquim Levy
d) Paulo Guedes
e) Nenhuma das anteriores
Tendo em vista o evidente viés de austeridade fiscal que a frase comporta, os candidatos talvez ficassem em dúvida respeito de quais dos quatro responsáveis por política econômicas ortodoxas e monetaristas dos últimos governos poderiam ter sido os responsáveis pela afirmação. Ainda assim, é bem provável que poucos ousassem assinalar a alternativa e) em seu cartão de respostas. Mas o fato é que o responsável por essa pérola do fiscalismo extremado foi ninguém mais, ninguém menos do que o atual titular da pasta da Fazenda, Fernando Haddad. O perigoso e revelador sincericídio do professor do Insper ocorreu em entrevista recente que ele concedeu à jornalista Mônica Bérgamo.
A frase expressa de maneira cristalina a abordagem que o conservadorismo econômico apresenta para a política econômica em geral e para a política fiscal em particular. Trata-se de reproduzir ad nauseam as simplificações reducionistas a respeito dos impactos das despesas públicas sobre a atividade econômica e sobre as contas governamentais. Um dos pontos de partida de tal falácia reside na comparação equivocada e oportunista entre as contas de um governo de um país soberano e a contabilidade da dona de casa. O governo de uma nação tem às suas mãos um conjunto amplo e diversificado de instrumentos de política econômica, ao contrário do que ocorre com os indivíduos e mesmo com as empresas. O governo pode lançar mão de tributos, pode utilizar suas reservas internacionais ou pode lançar títulos da dívida pública, dentre outras opções de busca de recursos para cumprir com suas obrigações junto à sociedade.
Dessa forma, a frase mais ouvida do “não temos recursos” não se aplica como argumento para a falta de vontade política de recompor os seis anos de desgraça que o Brasil enfrentou entre os governos de Temer e Bolsonaro. Os recursos existem e poderiam muito bem servir como lastro para colocar em movimento o tão necessário processo de planejamento, condição fundamental para que o Brasil reencontre a trilha do desenvolvimento social, econômico e ambiental. Apenas a chamada Conta Única do Tesouro Nacional que é administrada junto ao Banco Central mantém um saldo credor de R$ 1,8 trilhão, de acordo com as informações oficias do órgão.
Porém, o que mais impressiona na fala de Haddad é a desenvoltura com que ele assume o personagem do financista raiz. A primeira questão refere-se à necessidade de “botar ordem” nas contas públicas. Isso significa que o ministro parte do princípio de que as coisas estariam em desordem. O próximo passo, caso houvesse tempo e espaço na entrevista, provavelmente seria falar em descontrole e na gastança generalizada. Ora, não é por essa ótica que um responsável pela política econômica de um governo progressista deveria expressar seu diagnóstico. O presidente eleito já afirmou por mais de uma oportunidade que pretende colocar em marcha ações buscando a estratégia desenvolvimentista.
Assim a prioridade não seria “botar ordem” nas contas públicas, mas sim colocar o Brasil em condições de oferecer um futuro de crescimento, de qualidade de vida e de bem estar para a maioria de sua população. Pra cumprir tais missões, Lula sabe que o país precisa voltar a ter elevação nas despesas governamentais e nos investimentos públicos. A recuperação do protagonismo é condição sine qua non para que ele consiga realizar 40 anos em 4, como frisava durante a campanha eleitoral de 2022. Romper com a lógica da austeridade extremada é a única maneira que ele tem para “fazer mais e melhor do que nos dois primeiros mandatos”.
Haddad adota o “bordão do trilhão”, imagem que se tornou moeda corrente nas falas de seu antecessor, Paulo Guedes. Na tentativa de apontar um suposto escândalo no volume dos gastos públicos, ele chama a atenção para uma sucessão de déficits fiscais que teriam acumulado um total de quase R$ 2 trilhões ao longo da última década. Ora, o ministro apenas se esqueceu de esclarecer aos espectadores que se trata de um tipo bem particular de abordagem das contas públicas. Ele se refere ao déficit primário, cuja metodologia de cálculo exclui as rubricas relativas à dimensão financeira da contabilidade pública. Assim, esse déficit surge na agregação de despesas como previdência social, saúde, educação, assistência social, segurança pública, salários de servidores, saneamento e outras.
Ora, apresentar uma necessidade de financiamento nesta abordagem está muito longe da expressão “rombo” como os especialistas a soldo do financismo tratam do assunto nos grandes meios de comunicação. É triste ver o principal ministro do terceiro mandato de Lula tratar essa dimensão da política econômica de forma semelhante ao povo da alta finança. Haddad sabe muito bem que as necessidades exigidas para a recomposição das políticas públicas desmontadas e para a reconstrução das instituições públicas destruídas ao longo dos últimos seis anos pressupõem um esforço fiscal de peso. Esse processo demandaria uma orientação exatamente oposta à da austeridade e de chamar atenção de forma desonesta para supostos rombos trilionários.
Na verdade, não há nada de problemático nem escandaloso em um governo apresentar contas públicas deficitárias. Aliás, esta é a realidade atual da absoluta maioria dos países desenvolvidos. E nem por isso Estados Unidos, Alemanha, França, Canadá ou Japão estão à beira do apocalipse. Pelo menos, não por conta de estarem apresentando déficit fiscal. Ao contrário do que Haddad deixa a entender, a existência de déficit fiscal neste momento no Brasil é um dos caminhos para a busca de solução para nossos problemas.
Portanto, se o ministro quisesse realmente “botar ordem na casa”, ele deveria olhar para outra conta do gasto público. Refiro-me aqui justamente àquele tipo de despesa que escapa de qualquer tipo de teto, de limite ou de contingenciamento. Trata-se da rubrica que assinala o pagamento de juros de dívida pública. Esse tipo de despesa que o ministro não mencionou foi responsável por R$ 748 bilhões ao longo dos últimos 12 meses, o segundo maior item do Orçamento da União. Mas enquanto isso, o pessoal da Fazenda fica colecionando cortes e empecilhos de algumas centenas de milhões nas contas das universidades, da saúde e outras áreas sensíveis da dimensão social.
A verdadeira comparação com os tais R$ 2 trilhões que Haddad faz referência deveriam ser os R$ 5 trilhões que o Tesouro Nacional destinou ao pagamento de juros da dívida ao longo da mesma década. Mas neste caso, ele não deve achar a cifra relevante e talvez não considere importante “botar ordem” nesse domínio. Afinal, mexer com esse vespeiro significa afetar os interesses dos 1% do topo da nossa vergonhosa pirâmide da desigualdade. A opção de Haddad tem sido sempre a de buscar algum tipo de resultado positivo nas contas públicas por meio de redução ou limitação dos recursos nas despesas primárias. Assim, a lógica no Novo Arcabouço Fiscal – que ele elaborou após consultas ao presidente do Banco Central e a meia dúzia de banqueiros do oligopólio privado – supõe a retirada dos pisos constitucionais para saúde e educação, além da tão sonhada desindexação dos benefícios da previdência social em relação ao salário mínimo.
Lula sabe muito bem dos prejuízos que a trilha da austeridade extremada de Haddad pode provocar ao seu governo e à maioria da população. O próprio Partido dos Trabalhadores apontou tal risco em reunião recente. O Diretório Nacional usou, inclusive, a expressão “austericídio” na resolução em que condenou aspectos da política econômica do governo. No final de abril completam-se os primeiros 16 meses de Lula 3.0. Isso significa que já passou 1/3 deste mandato. Apesar dos inegáveis avanços realizados, a longa lista de demandas e necessidades continua sem ser atendida em função do arrocho fiscal imposto pela lógica do “não podemos gastar para botar ordem nas contas”.
É fundamental que Lula assuma o leme do barco e se desvie da rota da austeridade fiscal. Ele mesmo já se manifestou por diversas ocasiões a respeito da importância da responsabilidade social em comparação com a responsabilidade fiscal:
“Se não resolvermos problemas sociais, não vale a pena recuperar esse país. Não adianta só pensar em responsabilidade fiscal, temos de pensar em responsabilidade social”.
Para dar conta das imensas tarefas que a História lhe reserva como dirigente político perante o futuro da nação, Lula precisa se livrar do abraço de afogado do financismo. Para colocar em marcha o motor do desenvolvimento, é preciso abandonar de forma urgente os dogmas financistas da austeridade.
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Lula, abandone o arrocho de Haddad. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU