27 Setembro 2023
"Comitê corta apenas 0,5 pontos dos juros, que seguem os mais altos do mundo. Preocupa que diretores nomeados por Lula não apresentem uma proposta alternativa. Enfrentar o rentismo exige coragem, mesmo que seja para marcar posição", escreve Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, em artigo publicado por Outras Palavras, 26-09-2023.
A 257ª reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) transcorreu exatamente de acordo com as recomendações apresentadas pela nata do financismo em nosso país. Na verdade, o encontro ordinário do colegiado nada mais é do que uma reunião diferenciada da própria diretoria do Banco Central (BC). Ao longo da terça e da quarta-feira da semana passada, os nove integrantes do corpo diretivo do órgão regulador e fiscalizador do sistema financeiro trocaram de boné. Assim, na condição de membros do comitê, discutiram à exaustão a respeito da conjuntura econômica e decidiram pela redução de apenas 0,5% na taxa Selic. Atualmente ela está em 12,75%.
O comunicado divulgado ao final do encontro registra que a deliberação foi adotada por unanimidade. Isso significa que os dois novos diretores indicados recentemente por Lula, a partir da recomendação do ministro da Fazenda, se esquivaram de apresentar alguma proposta mais ousada para que a taxa retornasse ao nível de alguma normalidade e racionalidade. Deveriam ter sugerido algo que apontasse para as reais necessidades de um projeto de governo voltado para a retomada do crescimento e do desenvolvimento. Apesar da minúscula diminuição no patamar da taxa referencial de juros, o Brasil segue ocupando o primeiro lugar mundial no quesito taxa real de juros. Tal fenômeno se explica pelo fato de a inflação estar em queda, de forma que os cálculos a respeito da rentabilidade real dos ativos recomendam subtrair a perda monetária derivada do crescimento dos preços.
A aprovação da Lei Complementar nº 179/21 sacramentou, durante a tragédia representada pelo binômio Bolsonaro & Guedes, a independência do BC. Na verdade, tratava-se de uma proposta antiga do próprio sistema financeiro, para evitar que a chegada de um governo com um programa mais progressista e desenvolvimentista pudesse provocar alguma mudança na linha da austeridade e do incentivo ao rentismo. Assim, Lula está convivendo desde o início de seu terceiro mandato com um coletivo responsável pela política monetária cuja maioria foi nomeada pelo genocida. Falta a Roberto Campos Neto e aos demais colegas bolsonaristas um pouco de vergonha na cara – para dizer o mínimo – e renunciarem ao cargo. Afinal, além de terem servido ao governo anterior e feito campanha aberta para sua reeleição, eles incorporam uma abordagem da economia que é totalmente antagônica ao programa de governo para o qual Lula foi eleito em outubro do ano passado.
Mas mesmo do alto de sua arrogância conservadora e liberaloide, eles ainda encontram espaço para alguma forma de pragmatismo. Durante o período que vai do segundo semestre de 2020 até o início de 2021, por exemplo, esse mesmo coletivo manteve por cinco reuniões consecutivas do Copom a Selic em 2%. Ou seja, na hora de colaborar com um governo que lhes é simpático na opção político-ideológica, que se dane o dogmatismo da ortodoxia neoliberal. Mas a partir de então, o colegiado optou por uma escalada crescente da taxa, com 12 reuniões consecutivas de alta, até chegar aos 13,75% em agosto de 2022. Uma vez atingido esse ápice, o comitê assim manteve a Selic nas alturas por oito novas reuniões. Apenas nas duas últimas oportunidades eles optaram por uma redução homeopática de 0,5% em cada uma delas.
É interessante observar que o Copom quase sempre adota o resultado que é proporcionado por uma enquete semanal realizada pelo próprio BC junto às elites dirigentes do financismo. Trata-se da pesquisa Focus, divulgada religiosamente às segundas-feiras na página do órgão na internet. Ali se manifesta o desejo agregado do sistema financeiro relativamente a variáveis macroeconômicas relevantes, tais como a inflação, o crescimento do PIB e outras. Mas dentre elas, ganha relevo aquela que reflete a expectativa de seus participantes quanto ao patamar da Selic. Assim, o Copom segue absolutamente refém da vontade do povo das finanças.
Lá se vão quase nove meses de governo e a taxa de juros oficial segue praticamente inalterada. A perpetuação do espírito do rentismo parasitário em um governo que prometeu “fazer 40 anos em 4” é uma verdadeira contradição. Afinal, frente a uma rentabilidade financeira tão elevada, torna-se praticamente proibitiva qualquer iniciativa de empreendimento produtivo. O mais preocupante, contudo, é que os dois diretores nomeados por Lula não tenham apresentado até agora nenhuma proposta alternativa para – pelo menos que fosse – marcar posição no interior do colegiado.
Por outro lado, o surpreendente é que o Copom siga baseando suas decisões nos resultados da Pesquisa Focus. Trata-se de um punhado de dirigentes de bancos e instituições similares umbilicalmente vinculados aos interesses de suas empresas – qual seja, opinam e operam com o intuito de maximizar os seus ganhos financeiros. Não há nenhuma voz dissonante nesse universo: não são ouvidos pesquisadores, economistas e professores de economia vinculados ao movimento social, aos sindicatos, às universidades ou aos institutos de pesquisa. Nada! Só quem responde ao questionário semanal são banqueiros. E ponto final.
O histórico das pesquisas está disponível para consulta na página do BC na internet. E ali pode-se perceber claramente que se trata exclusivamente de opinião de torcida uniformizada e de desejo de ganhos financeiros. No ano passado, às vésperas das eleições, por exemplo, a pesquisa transparecia ao pessimismo que as elites financistas deixam exalar por conta de uma possível vitória de Lula no pleito. A possível saída de seu queridinho Paulo Guedes do comando da economia assustava os dirigentes do setor. Daí divulgavam uma avaliação de que a economia iria afundar mesmo, não tinha jeito. Eles projetavam um crescimento do PIB de apenas 0,37% em 2023. A pesquisa desta semana já aponta para um aumento das atividades econômicas da ordem de 3% até o encerramento do ano. Ou seja, erraram feio. Como quase sempre ocorre, aliás.
Ora, qual a seriedade que deve ser conferida a esse tipo de avaliação e de projeção do cenário econômico? Nesse caso em particular, houve um erro de mais de 700% entre a previsão e o resultado verificado. Imaginemos o que teria ocorrido se algum cliente destes senhores tivesse sofrido uma perda patrimonial de tal monta em suas aplicações financeiras. Pois esses mesmos indivíduos que são levados muito a sério pelo Copom e pelos “especialistas” do setor, pois os líderes do financismo estariam embasando suas opiniões pela abordagem “técnica” e não “política”. Haja paciência para tamanha mentira e hipocrisia.
A ata do Copom aponta para mais duas possíveis reduções de mesmo montante para as reuniões previstas até o final do ano. Caso esse cenário se concretize, encerraríamos 2023 no patamar de 11,75%. Apesar da queda de 2%, ainda assim a Selic continuaria em um patamar muito elevado. Afinal, essa taxa impacta diretamente o volume dispendido com juros sobre o estoque de dívida pública. Atualmente, a União gasta por volta de R$ 700 bilhões a esse título a cada 12 meses. Por outro lado, a complacência e a cara de paisagem dos dirigentes do BC quanto aos spreads praticados pelas instituições financeiros fazem com que o custo financeiro efetivamente bancado por empresas, famílias e indivíduos seja também altíssimo.
A sociedade brasileira não pode permitir que essa distorção permaneça no interior do Estado brasileiro. A diretoria bolsonarista do BC não tem a mínima legitimidade para seguir criando obstáculos à implementação do programa de um Presidente da República eleito pela maioria. Não basta uma atitude conformista pelo fato da recente redução. É fundamental que o governo recupere seu total controle da política monetária.
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Juros: o perigoso consenso do Copom. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU