20 Outubro 2024
"Diversamente do mito platônico de Eros, no amor ao próximo como amor ao inimigo não há nenhuma reconciliação possível, nenhuma recomposição dialética da divisão, nenhuma harmonia pacificada", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por La Repubblica, 17-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "pois essa é a raiz mais escabrosa do amor. Não amar quem está à nossa disposição, quem está ao nosso lado, quem está próximo de nós. Não amar sua presença empática, sua proximidade, sua segurança. Mas amar o próximo como a parte mais estranha de mim mesmo e do Outro, amar a sua alteridade, aquela mais profunda e insondável".
"A identidade de sangue nunca pode ser a última palavra sobre a fraternidade - afirma o psicanalista. Aliás, de certa forma, ela é um obstáculo para a instituição do amor como amor pela diferença irredutível do Outro".
O mandamento do Evangelho não concebe o “próximo” como o “semelhante”, mas como o outro de si mesmo. Esse é o aspecto mais escabroso do ensinamento de Jesus, apontado por Nietzsche.
O amor cristão pelo próximo, declarado por Jesus como mandamento fundamental do Evangelho e diante do qual Freud recua horrorizado, já está, de fato, anunciado, como sabemos, na Torá. Especificamente nos versículos de Levítico (19,18): “ame o seu próximo como a si mesmo”. E, um pouco mais adiante, a retomada desse preceito fundamental torna-se ainda mais radical. Trata-se de uma mudança significativa de ênfase que será retomada e enfatizada justamente pela pregação de Jesus. A referência agora é ao “estrangeiro”.
“O estrangeiro que viver entre vocês deverá ser tratado como o nativo. Amem‑no como amam a vocês mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito” (19,34). Essa especificação adicional do amor ao próximo como amor ao estrangeiro é de considerável importância, pois o amor não investe o próximo tanto como uma figura daquele que está ao nosso lado, como o vizinho ou o quem vem à nossa ajuda, mas como um desconhecido, distante, precisamente um estrangeiro. Com o acréscimo igualmente importante de que esse estrangeiro não é apenas aquele que vem de fora, mas também aquele que é um estranho em mim.
O primeiro ato de fraternidade que encarna o amor ao próximo é, portanto, um ato que devo dirigir ao estrangeiro dentro de mim, ao fato de eu ser um estrangeiro para mim mesmo. Aquele que não sabe acolher essa intimidade desconhecida não está predisposto a amar o próximo. Esse é um esclarecimento que é radicalizado pelo ensinamento de Jesus, para quem o amor ao próximo não é de forma alguma um amor baseado no espelhamento mútuo, mas sim em uma dissimetria fundamental. De fato, o próximo não deve ser confundido com o semelhante, com o idêntico, com o igual. Mas, o contrário disso.
Essa é sua escandalosa interpretação do mandamento de Levítico: “Pois se alguém amasse quem o ama, se amasse quem já gosta dele, que mérito teria?” O verdadeiro salto é conceber o próximo não como o “semelhante”, mas como o “remoto”. É um esclarecimento encontrado em Assim falou Zaratustra, de Nietzsche: somente se o amor for pelo distante e não pelo próximo é que ele se revela verdadeiramente como amor pelo próximo. É por isso que Jesus, em sua leitura radical da Torá, interpreta o amor ao próximo como amor ao forasteiro, ao estrangeiro, a quem não é de casa e, por fim, ao inimigo.
Pois essa é a raiz mais escabrosa do amor. Não amar quem está à nossa disposição, quem está ao nosso lado, quem está próximo de nós. Não amar sua presença empática, sua proximidade, sua segurança. Mas amar o próximo como a parte mais estranha de mim mesmo e do Outro, amar a sua alteridade, aquela mais profunda e insondável. Essa mesma alteridade que Jesus, em seu testemunho humano, foi capaz de encarnar quando, por exemplo, lembra aos seus que não veio para ficar, mas para partir, ou quando, no momento de sua ressurreição, dirige-se a Maria Madalena lembrando-lhe que ela não pode mais tocá-lo (Noli me tangere). Testemunho radical da impossibilidade de conceber o amor como apropriação, fusão, identificação narcísica ao semelhante. É isso que Freud não entende: o amor ao próximo não é amor por aquele que me é indiferente, mas pelo desconhecido que está em mim e para quem está ao meu redor, para o estrangeiro que sou para mim mesmo e pelo traço sempre inapropriável da liberdade absoluta do Outro.
Diversamente do mito platônico de Eros, no amor ao próximo como amor ao inimigo não há nenhuma reconciliação possível, nenhuma recomposição dialética da divisão, nenhuma harmonia pacificada.
O horizonte da fraternidade já é, de fato, inaugurado na narrativa da Torá, com o ato fratricida cometido por Caim: o irmão é, em primeiro lugar, um intruso e um usurpador. O ódio, portanto, precede o amor porque expressa a recusa do compartilhamento, da presença do Outro que não está à minha disposição. Não por acaso a guerra sempre se desencadeia a partir de um sentimento de violação dos próprios limites. Consequentemente, não pode ser a substância do sangue que funda a fraternidade, que garante a conversão do ódio no amor. Não por acaso quando a Bíblia relata os laços fraternos, sempre conta fracassos traumáticos. Não apenas o de Caim e Abel, mas também de Esaú e Jacó, de José e seus irmãos ou do filho pródigo e seu irmão mais velho. A lógica do sangue e da descendência não é suficiente para fundamentar o amor ao próximo como núcleo intransponível de toda possível irmandade.
O que é necessário é um impulso a mais, um esforço diferente. A necessidade da biologia - a identidade do solo e do sangue - é sempre uma ilusão perigosa, como a época do totalitarismo do século XX demonstrou de forma aterrorizante. Jesus nos tinha advertido: “quem é minha mãe, quem são meus irmãos?” A identidade de sangue nunca pode ser a última palavra sobre a fraternidade. Aliás, de certa forma, ela é um obstáculo para a instituição do amor como amor pela diferença irredutível do Outro.
Pois isso indica o amor pelo inimigo escandalosamente afirmado por Jesus: ame quem não é seu, quem não é como você, quem não está à sua disposição, ame a distância que o separa de você, ame que ele vá embora, que não fique, que não esteja aqui, que nunca pertença a você. Disruptura radical de toda simetria e reciprocidade especular. É por isso que ele nos lembra que o ato de amor é sempre a fundo perdido. Não se realiza ao ser retribuído, mas ao ser despendido sem medida, ilimitadamente, sem interesses. É por isso que a verdadeira glória nunca é do amado, mas do amante.
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Ame seu inimigo como a si mesmo. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU