03 Dezembro 2024
O perigo atual é evidente e manifesto: se se perder o impulso de uma reação em cadeia consolidada em direção a um ponto de inflexão positivo, a dinâmica de autorreforço da mudança climática assumirá o controle e cruzará o limiar na direção contrária.
O artigo é de Nathan Gardels, publicado por El salto, 02-12-2024.
Nathan Gardels é graduado em Teoria e Política Comparada e em Arquitetura e Urbanismo pela UCLA e, atualmente, é editor-chefe da revista Noema. Também é cofundador e assessor principal do Instituto Berggruen, além de autor e coautor de vários livros. Anteriormente, foi editor-chefe de diversos meios de comunicação e escreveu inúmeros artigos para The Wall Street Journal, The New York Times, The Washington Post e também para publicações internacionais como Corriere della Sera, El País, Le Figaro, The Guardian e Die Welt, entre outras.
A corrida entre pontos de inflexão positivos e negativos.
A intervenção do ser humano sobre o meio ambiente atingiu um ponto crítico. O ponto de equilíbrio da biosfera está prestes a inclinar-se para um lado: ou ultrapassa o nível que nos leva à catástrofe climática ou nos mantém a salvo graças à soma de medidas e iniciativas distribuídas globalmente para evitar que tal desastre aconteça.
Como já argumentou anteriormente Katarina Zimmer, a mesma reação em cadeia que potencializa a mudança climática pode funcionar na direção contrária.
"Assim como o derretimento da geleira Jakobshavn na Groenlândia origina um derretimento maior, as tecnologias ecológicas também podem se propagar e se reforçar mutuamente", escreve. "E, assim que atingirem o ponto de inflexão no qual se tornem mais atraentes do que suas rivais baseadas em combustíveis fósseis, poderão conquistar o mercado".
Zimmer se refere a uma pesquisa do cientista climático Tim Lenton. Nela, Lenton observa a rapidez com que uma mudança tecnológica pode ocorrer por meio da aplicação de políticas que incentivem tecnologias verdes até que se atinjam "pontos de inflexão" que acelerem a transição energética de maneira semelhante ao que ocorreu com a máquina a vapor, que foi o motor que iniciou a Revolução Industrial.
A pesquisa de Lenton focada no Reino Unido revela que os subsídios públicos para energia eólica e solar, juntamente com um imposto firme sobre a combustão de carbono, transformaram praticamente da noite para o dia uma infraestrutura energética de mais de um século.
Segundo Zimmer, "na última década, o país reconverteu seu setor energético, abandonando quase completamente a energia proveniente do carvão, que até então gerava 40% de sua eletricidade. Como resultado, as emissões de carbono do Reino Unido diminuíram mais rapidamente do que as de qualquer outro grande país do mundo".
A Noruega é outro exemplo mencionado. A Noruega decidiu eliminar a imposição fiscal sobre a compra de veículos elétricos novos e mantê-la para os movidos a gasolina e diesel. Esta iniciativa "resultou em uma expansão sem precedentes dos veículos elétricos entre a população norueguesa e fez com que 80% dos carros novos vendidos no país (e cerca de 20% de todos os que circulam por suas estradas) sejam completamente elétricos".
Esse fenômeno se repete em todo o mundo, onde se incentiva a introdução e generalização de tecnologias limpas, como a energia hidrelétrica, a eólica ou as baterias de lítio, em detrimento dos combustíveis fósseis. Essas iniciativas incluem medidas como a Lei de Redução da Inflação do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, ou como as da China, onde no ano passado a capacidade das energias renováveis instaladas (eólica, solar, hidrelétrica e nuclear) superou pela primeira vez a capacidade dos combustíveis fósseis.
Esperançosa, Zimmer cita um relatório apresentado no ano passado em Davos, onde se afirma que a estratégia para alcançar um ponto de inflexão em escala global poderia passar pela cooperação em torno de "macropontos de referência"-chave, como veículos de emissões zero, a substituição da produção de fertilizantes por amônio verde e alternativas proteicas à carne, que "provocariam uma reação em cadeia de pontos de inflexão para iniciativas de carbono zero em setores que representam 70% das emissões globais de gases de efeito estufa".
Infelizmente, a dinâmica também está ganhando impulso na direção contrária. De certo modo, quanto mais se agrava a crise climática, maior cresce a resistência que impede lidar com ela de forma eficaz.
No início deste ano, pudemos ver alguns exemplos alarmantes do que está por vir nos extremos opostos do clima mediterrâneo, tão conhecido por sua moderação: a seca e os incêndios florestais violentos devastaram o Chile, enquanto um dilúvio torrencial inundou durante vários dias a até então ensolarada Califórnia. Os cientistas também alertaram recentemente que os modelos de computador indicavam que as correntes do oceano Atlântico, graças às quais a Europa mantém um clima temperado, correm o risco de colapsar.
Para maior consternação, um estudo recém-publicado sobre os esqueletos de carbonato das esponjas marinhas revela que o planeta já se aqueceu além do limite de 1,5°C estabelecido no Acordo de Paris sobre o Clima de 2015, um limite a partir do qual os danos causados à biosfera já não podem ser reparados.
Apesar de tudo isso, as mesmas políticas ambiciosas que acabamos de mencionar, projetadas para cumprir os objetivos de Paris, estão sendo revertidas à medida que começam a afetar cada vez mais os interesses mais urgentes de setores do eleitorado, sejam as economias domésticas, os agricultores ou os empresários. A sensação de urgência que antes se mantinha firme agora vacila diante das políticas do presente, uma situação em que as gerações futuras não têm voz e a humanidade como um todo tem pouca relevância.
Tomemos o caso do Reino Unido, por exemplo. Esse país havia alcançado avanços extraordinários, mas o seu Primeiro-Ministro Rishi Sunak, temeroso de perder o apoio da opinião pública devido ao peso de alcançar os objetivos de emissões líquidas zero até 2050, retrocedeu no projeto e adiou o prazo para proibir a venda de veículos movidos a combustíveis fósseis e a eliminação progressiva das caldeiras a gás.
De forma similar, no início deste ano, a União Europeia abandonou seus planos de reduzir os subsídios aos combustíveis fósseis e as políticas para diminuir o uso de pesticidas e as emissões de metano e outros gases de efeito estufa provenientes da agricultura, diante das protestos dos agricultores, que bloquearam com suas vacas e tratores as estradas de todo o continente.
Na Alemanha, o presidente da principal associação empresarial do país atacou duramente e declarou que as políticas climáticas rigorosas do governo são "absolutamente tóxicas".
A reação em cadeia de pontos de inflexão positivos também está sendo dificultada por tensões geoeconômicas e geopolíticas. No ano passado, a UE introduziu um colossal "plano industrial do pacto verde", cujo objetivo era impedir que os fabricantes de tecnologias limpas fugissem para os Estados Unidos atraídos pelos subsídios à produção nacional e, ao mesmo tempo, reforçar a competitividade frente às exportações chinesas de veículos elétricos e painéis solares de baixo custo. Até o momento, essa iniciativa mal gerou resultados, e agora a UE está considerando adotar medidas protecionistas para evitar que as exportações de tecnologia chinesa acabem com seus setores de energias limpas antes que consigam se consolidar.
Os Estados Unidos também tentaram limitar o avanço da tecnologia chinesa barata e de ponta. Em dezembro do ano passado, estabeleceram uma série de normas que dificultam que os componentes de baterias fabricados por "uma entidade estrangeira relevante" possam se beneficiar da isenção fiscal de 7.500 dólares concedida a quem compra veículos elétricos. Parafraseando ligeiramente a indignação de John Kerry, ex-enviado especial dos Estados Unidos para o clima, expressada em privado a um conhecido comum, a tecnologia limpa se acumula nos portos chineses enquanto o mundo arde em chamas.
Agora que a protesto dos agricultores freou a política climática ativa da UE no setor agrícola, a fragmentação de qualquer possibilidade de alcançar um "ponto de inflexão extremamente favorável" em escala transnacional ganha uma nova dimensão.
O boletim Net Zero de Semafor analisou com bom critério o que está por vir: "o retrocesso da Europa no campo da agricultura é o prelúdio da luta que os Estados Unidos e muitos outros países enfrentarão nos próximos anos para reduzir a pegada de carbono da atividade agrícola, que está prestes a se tornar a maior fonte de emissões da Europa até 2040, mas cuja descarbonização tem sido muito mais lenta do que a de outros setores, como eletricidade ou transporte".
O perigo atual é evidente e manifesto: se se perder o impulso de uma reação em cadeia consolidada em direção a um ponto de inflexão positivo, a dinâmica de autorreforço da mudança climática assumirá o controle e cruzará o limiar na direção contrária.
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À beira do abismo climático. Artigo de Nathan Gardels - Instituto Humanitas Unisinos - IHU