O atual sistema agroalimentar, baseado em cadeias globais de distribuição e processamento, não se sustentará. A conversão à produção regionalizada é inevitável e Brasil pode realizá-la. Mas terá de dar um novo e destacado lugar à agricultura familiar.
O artigo é de Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71) e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA), Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016 Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta, publicado por Outras Palavras, 04-09-2023.
Este é o quarto texto de uma série intitulada “Um novo lugar para a agricultura”, que começa a ser escrita e publicada em agosto de 2023. Leia os outros textos aqui.
Nos artigos anteriores procurei apresentar a realidade da Agricultura Familiar (AF) no Brasil e sua evolução em tempos recentes, bem como analisar como as políticas públicas influíram nesta evolução. No presente artigo vou discutir o que deveria ser ou o que deverá ser o lugar da agricultura, em particular o da AF, na economia e na sociedade brasileira no futuro.
A agricultura é a atividade econômica mais importante no plano mundial. Não estamos discutindo sua importância como elemento vital para a sobrevivência da humanidade, mas os trilhões de dólares movimentados pelo sistema agroalimentar capitalista no mundo. Nenhum negócio tem esta amplitude, nem a exploração, refino, distribuição e emprego dos combustíveis fósseis.
Este sistema é regido, obviamente, pela lógica do capital. Questões como impacto no meio ambiente ou na saúde de consumidores só são levadas em conta se os poderes públicos as impuserem. E as empresas que participam deste complexo agroalimentar lutam permanentemente para ficarem à margem de qualquer controle.
O sistema agroalimentar (SAA) é globalizado e dominado por um número pequeno de empresas, muitas delas interconectadas. O SAA define quais e como os produtos agropecuários devem ser produzidos, processados e consumidos. O modelo adotado é conhecido como agroquímico, motomecanizado e geneticamente manipulado, com o incorreto e enervante apelido de “Revolução Verde”.
Os insumos necessários para a produção são controlados por um punhado de multinacionais:
– No setor de adubos químicos, um dos menos concentrados, as três maiores empresas controlam 21% do mercado e as 10 maiores controlam 35% de um mercado de US$ 128 bilhões.
– No setor de agrotóxicos, as quatro maiores empresas controlam 62% do mercado e as seis maiores controlam 78% de um mercado de US$ 63 bilhões.
– No setor de sementes, as duas maiores empresas controlam 40% do mercado e as seis maiores controlam 58% de um mercado de US$ 45 bilhões.
– No setor de maquinário, as quatro maiores empresas controlam 44% do mercado e as seis maiores controlam 50% de um mercado de US$ 128 bilhões.
– No setor farmacêutico, as quatro maiores empresas controlam 61% do mercado e as seis maiores controlam 72% de um mercado de US$ 34 bilhões.
O processamento e a comercialização, tanto no atacado como no varejo, seguem este padrão de concentração em poucas empresas multinacionais:
– No setor de comercialização das commodities, as dez maiores empresas controlam 40% de um mercado de US$ 1,33 trilhão.
– No setor de processamento de alimentos, rações e bebidas, as quatro maiores empresas controlam 18% e as dez maiores empresas controlam 34% de um mercado de US$ 1,3 trilhão.
– No setor de varejo de produtos alimentares e bebidas, as duas maiores empresas controlam 5% e as dez maiores controlam 12% de um mercado de US$ 8,3 trilhões. Neste caso, a concentração parece inexpressiva, mas ela esconde grandes oligopólios em mercados nacionais específicos, sobretudo nos países mais desenvolvidos.
É importante anotar que grandes fundos de investimento detêm parcela importante das ações de empresas ao longo de toda a cedia do sistema agroalimentar, em média 25% de cada setor.
O sistema tem custos diretos altíssimos e depende de subsídios de Estados nacionais para sobreviver. E tem custos indiretos ainda maiores, que são assumidos pela humanidade como um todo. Sim, o SAA mundial é responsável por pouco mais da metade da emissão de gases de efeito estufa (GEE), incluindo as emissões por desmatamento e queimadas, por uso de fertilizantes e emissões do gado (arrotos, flatulência e esterco), uso de combustível fóssil, emissões de lixo orgânico derivado da etapa de consumo. Não vou me estender sobre o conjunto dos impactos ambientais do SAA por ser demasiado longo, mas é importante lembrar a vulnerabilidade inerente ao modelo de produção adotado, sobretudo no que se refere ao alto custo energético, dependente de combustíveis fósseis em toda a cadeia.
O SAA é um sistema globalizado onde insumos e produtos circulam mundo afora em função de economias relativas das partes que irão compor o produto final. Uma lata de macarronada pronta para o consumo produzida na Europa ou em qualquer outro lugar, pode conter trigo dos EUA, tomate do México, pimenta do reino da Malásia, sal do Peru, etc., e ser distribuída em todos os continentes. A milhagem viajada por cada produto do SAA e pelo produto final tende a ser gigantesca, envolvendo transportes terrestres, marítimos e aéreos. E tudo isso para oferecer uma alimentação de péssima qualidade nutricional, carente de fibras, vitaminas, sais minerais e com excesso de sal, açúcar e inúmeros produtos químicos (conservantes, corantes, espessantes, aromatizantes, etc.).
No mundo capitalista, a única coisa que importa é a lucratividade do empreendimento, sendo que, nesta briga de cachorro grande, os produtores primários (agronegócio ou AF) são atores menores. Têm muito mais peso as grandes transnacionais de insumos, transformação e comércio de atacado.
No futuro, muito mais próximo do que muitos (inclusive o nosso governo atual) imaginam, os preços dos transportes, dos insumos e da energia vão implodir ou explodir o SAA e o conjunto das suas grandes empresas.
O mundo vai ter que se reciclar de forma radical e a economia vai ter que priorizar a produção de gêneros essenciais para a sobrevivência da humanidade, onde os alimentos serão um fator chave. Alimentar corretamente uma população que deve se estabilizar em 10 bilhões de habitantes no planeta terra vai ser um enorme desafio e a questão não está colocada, como hoje, apenas no volume total de produção. A localização desta produção vai ser um elemento central da sobrevivência da humanidade. O SAA vai ter que ser substituído por uma produção descentralizada ao máximo, para conter os custos de transporte. A produção agropecuária vai ter que cortar a mecanização em larga escala, assim como o uso de adubos químicos solúveis e agrotóxicos, pelas mesmas razões de custo.
A agricultura do futuro vai ter que ser de carbono zero e até capaz de retirar carbono do ar. Vai ter que produzir de forma diversificada e intensiva, com alta produtividade do solo, mesmo sacrificando a produtividade do trabalho. Vai ter que abrir espaços para um movimento intensivo de reflorestamento, a única forma operacional em larga escala capaz de fazer recuar o processo de aquecimento global. E vai ter que enfrentar o desafio de produzir alimentos diversificados para uma dieta nutricionalmente adequada para a saúde humana. Tudo isto aponta para um fato básico: um novo SAA não pode ser regido pelas leis do capitalismo e orientar-se pela busca do lucro máximo. E isto condenará o agronegócio ao desaparecimento, esperando que ele se dê antes que ele destrua o meio ambiente e nos deixe todos sujeitos a condições de extrema penúria.
A agricultura do futuro terá que ser assumida pela AF, em escalas que hoje chamaríamos de micro, mini, pequena e média. E, pelas condições intrínsecas do modelo adequado para a situação descrita, tudo indica que somente a agroecologia, aplicada por agricultores familiares, será capaz de dar resposta ao conjunto dos problemas provocados hoje pelo SAA.
Esta combinação da agroecologia aplicada pela AF de forma diversificada e buscando encurtar ao máximo a distância entre a produção rural e o consumidor é o objetivo de médio e de longo prazo de qualquer força política e social que tenha consciência da profunda crise em que estamos mergulhados e nos afundando cada vez mais.
O novo lugar para a agricultura é o de produtor de bens essenciais para a humanidade, responsabilidade de produtores familiares em número muito maior do que hoje existem. A produção de alimentos terá que ser assumida essencialmente pelos produtores nacionais, já que o movimento do comércio mundial de commodities vai levar um golpe fatal pelos preços do transporte.
Como foi visto nos artigos anteriores, a AF está, no Brasil e no mundo, sendo deslocada pelo agronegócio, integrante maior do SAA. Em um futuro sem agronegócio, a produção de alimentos para o conjunto da população deve ser a meta a ser alcançada. Mudanças terão que ser feitas nas dietas hoje predominantes no país, limitando o consumo de produtos pouco adaptados aos nossos ambientes agrícolas. Por sorte, temos um país com amplíssima diversidade e muitas possibilidades de diversificação regional de dietas adequadas. É claro que os produtos de trigo vão ter que ser limitados, como a carne bovina e as frutas temperadas. Os 168 milhões de hectares de pastagens nativas ou plantadas terão que ser muito reduzidos, embora métodos de pastoreio intensivo sustentável permitam que a queda da oferta de carne de gado não seja tão alta quanto a da área de pastagem. Pães de milho e mandioca vão ocupar o lugar do pão de trigo e das massas italianas. Mas o potencial existe para produzirmos o suficiente em quantidade e qualidade para nutrir corretamente a nossa população, coisa que o SAA nunca ofereceu em toda a nossa história.
Existem 360 milhões de hectares em propriedades registradas no censo de 2017. 280 milhões estão ocupadas pelo agronegócio, em escalas variadas, mas com grande concentração nas propriedades de mais de mil hectares. A Reforma Agrária que nos levará à superação do modelo atual de produção agropecuária deverá garantir terras para 20 milhões de agricultores familiares, com uma área média nacional de 18 ha, muito embora esta média implique em grandes diferenças segundo as regiões e os produtos. Este movimento de volta do campesinato terá que acontecer e o papel destes neocamponeses vai ser muito maior do que o dos atuais 3,8 milhões de AF residuais, sobreviventes de anos de privilégios para o agronegócio.
A sociedade vai ter que rever os seus valores e aceitar que uma parte importante da riqueza produzida deverá ser retida por esta categoria, simplesmente porque ela vai garantir a segurança alimentar de todos, como vai ter um importante papel na contenção e eventual reversão do processo de aquecimento global. Isto além de garantir a economia de água e sua qualidade, hoje ameaçada pela poluição por agrotóxicos e adubos químicos.
A sociedade, aqui e no resto do mundo, habituou-se a olhar para o mundo rural de forma distraída, para não dizer depreciativa. Os preços dos produtos alimentares têm que ser sempre menores, é o reflexo de consumidores urbanos e de políticos. Que isto se reflita em custos indiretos gigantescos (ambientais, saúde) pouco importa. Isto vai ter que mudar pois entraremos em uma nova era, a da racionalização do consumo, que obrigará a humanidade a escolher entre bens essenciais e os supérfluos. A alimentação vai estar no centro da vida futura e com todas as suas dimensões: nutricional, saúde, cultural, religiosa. Sim, o futuro vai nos obrigar a escolher entre o carro individual e o transporte coletivo, e a limitar os deslocamentos de longa distância, sobretudo aéreos. Mas na alimentação não há escolhas possíveis que não impliquem em valorizar os produtores agrícolas. A relação de forças entre urbanos e rurais vai ser radicalmente alterada. E esta população de neocamponeses terá o pleno direito de almejar um padrão de vida tão bom ou melhor do que o dos urbanos em remuneração pelos seus serviços essenciais à humanidade.
Este enorme deslocamento de população e de distribuição de renda, invertendo parcialmente o que vivemos entre 1950 e 1980, terá efeitos benéficos para o conjunto, já que todos os analistas internacionais apontam para a total insustentabilidade das grandes concentrações urbanas. Frente aos riscos permanentes de novas pandemias impulsadas pelos desmatamentos e pelo aquecimento global, a descentralização da população e o esvaziamento das megacidades vai ser um grande alívio.
Para concluir, o novo lugar para a agricultura vai ser o de prover alimentos saudáveis e outros produtos agrícolas de forma sustentável, com muita economia no uso de combustíveis fósseis, sem impactos no meio ambiente e contribuindo de forma decisiva para a retirada de carbono da atmosfera, descentralizando a distribuição da população de forma a esvaziar a megaurbanização em curso.
O planejamento das políticas públicas nestes próximos anos deve estar alinhado com estes objetivos estratégicos, assunto para o próximo número desta série.