12 Setembro 2024
"Precisamos adiar o fim do mundo. Isso só vai ocorrer se o Brasil, de fato, colocar o ambiente em primeiro lugar, e isso significa: dinheiro, estrutura, plano. Cadê? É isso ou veremos a repetição do mesmo filme que vimos na primeira década do século"
O artigo é de Moysés Pinto Neto, publicado por Outras Palavras, 11-09-2024.
Moysés Pinto Neto, é doutor em Filosofia pela PUCRS. Editor do canal Transe, disponível aqui, e fundador da plataforma educacional Alternativa Hub, disponível aqui. Escreve normalmente sobre política, música, futebol, filosofia e outros temas próximos.
É preciso decretar emergência climática agora. Lula esqueceu-se de que sua “frente ampla” tem em um dos braços a sociedade civil? Esta força, subestimada pelo governo, é o seu maior trunfo para encarar o Centrão e vencer a ultradireita.
Quando o governo Lula assumiu, uma esperança reacendeu no Brasil. Sua vitória foi ocasionada pela mais forte mobilização social pela esquerda desde a redemocratização. Foi necessário aparar arestas, superar ressentimentos, apostar no futuro. Lula voltou energizado, com forte apoio dos movimentos sociais, discurso inicialmente mais à esquerda, e prometendo traçar um plano de governo que estaria mais atento ao clima e aos direitos indígenas e da população negra. A subida à rampa do Planalto representou isso.
Mas, ao mesmo tempo, o governo também contou com um apoio majoritário do centro político – uma camada sobrerepresentada devido ao seu enorme peso na comunicação social. Apesar das votações cada vez mais minúsculas e do desaparecimento do partido que melhor os representava – o PSDB – o centro sempre se imiscuiu da tarefa de ensinar Lula como deveria governar e como deveria se comunicar. Com algum desconforto, economistas liberais e a mídia tradicional, ambos representando o mesmo setor, acabaram entendendo que Bolsonaro representava não apenas um novo governo inepto, de extrema direita e truculento, mas uma ameaça existencial ao país. E que, fora Lula, ninguém teria condições de derrotar Bolsonaro. Mesmo assim, a empáfia de continuar ensinando a esquerda a se comunicar, de defender o “razoável” sob pena de aguçar a extrema direita, continuou dando o tom por alguns meses.
Até que, finalmente, os veículos de São Paulo abandonaram o antifascismo, catapultado ainda pela evidência do golpe de 8/1 e as múltiplas tramoias de Bolsonaro para virar a mesa, na medida em que Tarcísio começava a se apresentar como “bolsonarista moderado”. Obviamente, não um oxímoro, nem um paradoxo, mas uma contradição em termos. E, seguindo para argumentar a lei da não-contradição, é nítido que, ou se é bolsonarista, ou se é moderado. Tarcísio não é moderado. E tanto não é que seu campo de apoio, a mídia paulista e a burguesia a que serve, começou a disparar seus petardos em direção a Alexandre de Moraes e o Inquérito contra os golpistas.
Ao lado disso, a entrega do poder de governar do bolsonarismo para o “Centrão” produziu a inflação ainda maior do seu poder. O bloco fisiológico, corrupto, reacionário e vigarista que controla o Congresso, turbinado desde Eduardo Cunha e depois Temer, tornou-se uma força incontrolável que inviabiliza o planejamento orçamentário do Poder Executivo. Vou chamar o Centrão de Picaretão, para evitar a confusão com o centro tecnocrático que comentava anteriormente.
Apesar da vitória elogiável de Haddad em aprovar parte da Reforma Tributária, derrotas foram se acumulando e a articulação política segue confusa. A tentativa de Lula de empurrar a força de fora para dentro – a partir do seu prestígio internacional – não funcionou, uma vez que os problemas não foram solucionados (Venezuela, Nicarágua, Rússia/Ucrânia, Israel/Palestina) e, segundo a leitura do centro sobrerepresentado, demasiado posicionada. Enquanto isso, o Picaretão deita e rola, em geral em aliança com a extrema direita, até porque a maioria dos seus políticos representam os interesses do poder, o que torna a diferenciação entre ideologia e fisiologia muito mais suave que parece. A articulação governista tenta dançar, mas cambaleia com um Rui Costa desenvolvimentista boicotando outros ministros, um Padilha atritado com os líderes parlamentares e Lula ausente. O governo fica próximo da “estratégia zumbi”: consegue tudo que os adversários pedem sem levar nada em troca. Paga sem contrapartida nos votos. A “aliança” é um tigre de papel.
O governo tem apenas um trunfo poderoso e é o mais do mesmo: a injeção de renda entre os mais pobres movimenta a economia, gerando mais empregos, subindo os salários, formalizando relações, vitaminando o comércio e alavancando o crescimento. Nenhum outro movimento identifica mais o que chamaríamos de lulismo: a ascensão social dos pobres da primeira década do século XXI, minada em seguida pela plataforma neoliberal adotada por Temer e Bolsonaro – que, como costuma acontecer, pauperizou a classe média, enriqueceu mais os ricos e contou com um bom discurso midiático e econômico para ser justificada como a melhor das soluções. Não é o suposto neoliberalismo de Haddad e Tebet que está dificultando o traçado do governo, mas a falta de um projeto mais ambicioso, que inclua a transição ecológica e, mais que isso, a superação das formas de vida baseadas no consumo e na predação capitalista. O centro adora dizer que a esquerda “não compreende” os pobres, mas a verdade é que, se tem alguém que não os compreende, é justamente o centro liberal. Imersos na sua divisão fantasiosa entre “ideologia” e “técnica”, como se um governo pudesse ser tocado apenas pelos “méritos técnicos” e qualquer coisa que desafiasse o status quo fosse automaticamente “populismo”, os tecnocratas entendem muito pouco os desejos populares. A esquerda entende um pouco mais: Lula, ao prometer picanha e cerveja, fala a língua do povo. Lula, ao injetar grana no orçamento doméstico do pobre, sabe o que ele quer bem melhor que os tecnocratas do bom senso.
Mas as coisas são um pouquinho mais complexas. O mundo mudou – e quem mudou o mundo foram, sobretudo, as plataformas digitais. O brasileiro é um dos maiores, se não me engano o segundo maior, consumidor de smartphones em tempo de tela no mundo. Todos – ricos, classe média e pobres – estão nesse mesmo lugar. Tivemos uma primeira explosão capitaneada pela esquerda, com o uso subversivo do Twitter e do Facebook para protestar contra os modelos de cidade e a violação dos direitos no campo impostos no Brasil inteiro pelo projeto aceleracionista de Dilma – e, com ela, os grandes oligopólios do mercado. Mas sabemos o resto da história: uma segunda onda terrível de protestos pelo impeachment, comandados ainda no Facebook, e uma terceira onda fascista levada a cabo por memes de WhatsApp e influenciadores do Youtube.
Vivemos, agora, a quarta onda: um combo entre influenciadores e picaretas que vendem uma indústria de sonhos baseados em apostas, criptomoedas, coachs, exercícios físicos, cirurgias plásticas e procedimentos estéticos, suplementos, instruções para meditação, sono e estudo, enfim, uma panaceia de vendedores de ilusões que controlam boa parte da população brasileira. A ascensão dos pobres, marca registrada do lulismo, agora é carimbada com Shoppee, AliExpress, Uber, Kwai, Tik Tok, Instagram, — Bet, sem falar no caminhão de golpes fáceis aplicados em pirâmides como o “tigrinho”. E sabemos que o bolsonarismo, e para além dele o discurso da extrema direita como um todo, é popular nesses meios. Talvez seu principal argumento seja: a esquerda quer deixar você pobre para te explorar; nós queremos te deixar rico. O discurso da esquerda, sem dúvida, não é esse: é de que temos que ter uma distribuição justa das riquezas e não deixar ninguém para trás. Mas não encontramos sequer uma linguagem simples para transmitir isso. O crescimento de influenciadores marxistas e social-democratas não muda. É fenômeno de nicho e em geral atinge uma classe média que já está convencida de antemão.
O que gostaria de destacar é que a atenção do governo Lula está nisso. No pobre evangélico urbano convencido pelo pastor a votar em Bolsonaro. No motorista de Uber que está contra os direitos trabalhistas. Na mulher negra periférica que foi tributada na sua “blusinha”. Lula, sem dúvida, está atento a isso, pois esse é seu segmento preferencial, aqueles a quem suas políticas são dirigidas e, sobretudo, seu vetor de aposta. Não tenho dúvidas que Lula tem a hipótese de repetir seu sucesso de 2000 em condições mais desfavoráveis: produzir um aquecimento “silencioso” da economia, de baixo para cima, até o ponto em que as elites ficarão surpresas com um povo que sabe dos seus próprios interesses e mede no bolso o sucesso do governo.
O problema é que isso é mais do mesmo. Na década de 2000, o desenvolvimentismo passou como um caminhão por cima dos direitos indígenas, das populações pobres removidas para promover obras urbanas e gentrificação e, sobretudo, do ambiente. Hoje, suas ideias são as mesmas: a exploração de petróleo no Amazonas deixa isso bem claro. Então, temos o mesmo quadro anterior: o lulismo como tática imediata, o desenvolvimentismo como estratégia. Ouvi dizer que Haddad estaria elaborando com Marina Silva uma estratégia paralela, baseada em transição verde e aquecimento dessas indústrias. Onde isso está? Se existe, só nos bastidores.
Enquanto isso, o Brasil queima. Nossas cidades estão cobertas com uma camada de fumaça tóxica que invade os sistemas respiratórios dos seus habitantes, produzindo recordes de atendimento no sistema de saúde. O mundo aquece 1,5 grau de acordo com as previsões, pela primeira vez, pelo período cheio, indicando que o processo já começou. Cadê o Brasil?
Não adianta dizer que Marina Silva ou Sonia Guajajara estão lá. Isso é tokenização. É preciso decretar emergência climática agora. É preciso uma mobilização social de amplitude para adiar o fim do mundo. Lula esqueceu que sua “frente ampla” tem em um dos braços a sociedade civil? É impressionante como essa força é subestimada. Enquanto alguns marxistas e esquerdistas economicistas continuam atacando os “identitários”, sabemos que a força de mobilização dos movimentos negro, feminista, LGBTQIA+ e indígena são a maior possibilidade de manifestação de massa pela esquerda hoje no Brasil. Se a esquerda partidária é maior, como costuma dizer, por que não consegue colocar ninguém na rua? Lula precisa convocar a sociedade para agir. Para sair às ruas. Para enfrentar a ameaça da devastação total. Os bolsonaristas não são maioria, e mesmo assim dominam as ruas. Isso ocorre porque as pessoas não conseguem encontrar um motivo para sair, todas juntas. O fim do mundo não é um motivo suficiente?
Se Lula não mobilizar a sociedade civil, produzindo um movimento de antagonismo, o agro vai continuar reinando com suas queimadas, seus agrotóxicos e sua monocultura, exportando seu modo de existência para outros rincões, tornando o Brasil um grande paraíso para as milícias urbanas e rurais, apoiados muitas vezes por facções religiosas e por um mercado cujo único compromisso é com o próprio bolso. O governo precisa escapar da cilada de reproduzir unicamente o mesmo foco de atenção do ciclo anterior: é bom, é ótimo que o governo esteja voltado a entender e disputar os pobres urbanos por meio de programas de incremento de renda e aquecimento da economia, com um upgrade no consumo, mas é pouco. Precisamos adiar o fim do mundo. Isso só vai ocorrer se o Brasil, de fato, colocar o ambiente em primeiro lugar, e isso significa: dinheiro, estrutura, plano. Cadê? É isso ou veremos a repetição do mesmo filme que vimos na primeira década do século.
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A arapuca do lulismo e sua saída possível. Artigo de Moysés Pinto Neto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU