05 Julho 2024
"Com o declínio do hiperpresidencialismo, as dificuldades se avolumaram para a esquerda brasileira", escrevem os professores Armando Boito e Danilo Martuscelli, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 03-07-2024.
Armando Boito Jr. é professor titular de ciência política na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Estado, política e classes sociais (Unesp).
Danilo Enrico Martuscelli é professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e editor do blog Marxismo21. Entre outros livros, escreveu: Crises políticas e capitalismo neoliberal no Brasil (CRV, 2015).
O contraste entre a força do PT nas eleições presidenciais e a sua fraqueza nas eleições legislativas destoa do que se vê em outros países da América Latina.
Nos tempos áureos do hiperpresidencialismo brasileiro, o chefe do Executivo federal governava por intermédio de Medidas Provisórias (MPs). Foi assim nos dois governos FHC, quando a Presidência da República editou e reeditou mais de 4.800 MPs. As MPs tinham prazo de validade de 30 dias e podiam ser reeditadas indefinidamente. Em 2001, com a aprovação da Emenda Constitucional n. 32, foi ampliado o prazo de validade das MPs para 60 dias com possibilidade de prorrogação por mais 60 dias e abolido o dispositivo que possibilitava a reedição das MPs originais. Mesmo com as limitações criadas pela nova legislação, o ciclo de governos do PT, entre 2003 e 2016, foi também marcado pelo uso intensivo desse expediente legiferante. A partir do golpe do impeachment, o hiperpresidencialismo começou a fazer água. Um dos sintomas desse fenômeno é a queda significativa da taxa de MPs convertidas em lei, o que ocorreu já no governo Temer, como podemos constatar na tabela abaixo.
* Medidas provisórias promulgadas até 19 de junho de 2024.
** 29 MPs ainda estão tramitando no Congresso Nacional.
*** Para fins de cálculo, subtraímos as MPs ainda em tramitação.
O PT, em contraste com a sua força nas eleições presidenciais, sempre teve um desempenho eleitoral pífio nas eleições legislativas – daremos números mais à frente para fundamentar a contundência dessa afirmação. Contudo, enquanto o hiperpresidencialismo esteve forte, a debilidade do PT no Congresso Nacional podia ser contornada, como sabemos, por intermédio da formação de uma base parlamentar fisiológica composta por partidos conservadores. Esses partidos acatavam a grande maioria das Medidas Provisórias e também os projetos de lei elaborados pelo Executivo federal. Aliás, na maior parte desse período, os projetos de lei oriundos do próprio Legislativo eram em número menor que os do Executivo. Pagava-se um preço pela dependência do governo frente aos partidos conservadores, mas mesmo assim os governos do PT puderam praticar com sucesso o intervencionismo do Estado na economia para estimular o crescimento econômico e para reduzir a pobreza, política essa que podemos denominar neodesenvolvimentista – o desenvolvimentismo possível dentro dos limites estabelecidos pelo modelo capitalista neoliberal. Porém, da crise do impeachment para cá, como já indica a tabela que apresentamos acima, surgiram novidades. O Congresso Nacional foi se dotando de novos recursos de poder.
De acordo com matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo[i], no período de 2015 a 2018, a proporção entre os projetos de lei aprovados de iniciativa do Executivo Federal e de iniciativa dos congressistas era de 154 para 111. Essa relação se inverteu na legislatura subsequente. Considerando o período de 2019 a junho de 2022, a relação passou a ser de 140 projetos do Executivo para 215 dos congressistas. No que respeita à capacidade de interferir no orçamento do Estado, na legislatura iniciada em 2019, e novamente considerando o que foi registrado até junho de 2022, o orçamento destinado às emendas parlamentares mais do que triplicou em relação à legislatura anterior, passando de R$ 33 bilhões para R$ 115 bilhões. O número de vetos presidenciais rejeitados ou parcialmente rejeitados saltou de 23, no período de 2015 a 2018, para 86 no período de janeiro de 2019 a junho de 2022. Além disso, cresceu muito nas duas últimas legislaturas a bancada de extrema-direita, bancada que na sua maior parte não é fisiológica, pois possui projeto próprio de poder. Tudo, então, se tornou mais difícil para a ação do Executivo federal e mais difícil, principalmente, para um Executivo federal progressista.
O hiperpresidencialismo está fazendo água e o que estamos vendo nascer nada mais é que o presidencialismo na forma como ele é praticado, por exemplo, nos Estados Unidos, onde o Congresso sempre teve participação muito mais ativa na definição da política de Estado que no hiperpresidencialismo brasileiro. Tal transformação nada tem a ver, ao contrário do que muitos têm alardeado, com a passagem para um imaginário “semiparlamentarismo” ou para algo que está sendo denominado “parlamentarismo orçamentário”. Num regime parlamentarista é impossível ocorrer aquilo que justamente está caracterizando a situação da política brasileira: o conflito permanente entre a maioria parlamentar, que não pode recorrer ao voto de desconfiança, e o chefe do Executivo Federal, que está blindado pelo mandato com tempo determinado. A questão mais interessante é outra: o declínio do hiperpresidencialismo poderá levar ao declínio do lulismo, corrente política que tem se mostrado incapaz de obter maioria parlamentar?
Nas rodadas de segundo turno das eleições presidenciais que ocorreram desde o fim da ditadura militar, o PT obteve entre 40 e 60% dos votos. No mesmo período, nas eleições para a Câmara Federal esse mesmo partido, o PT, patinou em torno de 15% das cadeiras e tem desempenho semelhante ou pior no Senado Federal[ii]. É certo que essa comparação poderia ser feita de modo mais preciso. Poderíamos, para exemplificar, tomar em consideração, não a votação do segundo turno da eleição presidencial, mas, sim, a votação do primeiro turno, e poderíamos também ponderar que o voto para o Legislativo no Brasil é um voto desigual que reduz o valor do voto do eleitorado dos Estados mais populosos. Se fizéssemos esses dois procedimentos mais finos, é certo que a primeira modificação reduziria um pouco o contraste entre a votação que o PT tem obtido para o Executivo e aquela que esse partido vem obtendo para o Legislativo, mas a segunda ponderação, ao contrário, aumentaria esse contraste, já que o PT, pelo menos desde 2006, é mais forte eleitoralmente nos Estados menos populosos cuja representação parlamentar é inflada, em detrimento dos Estados mais populosos, pelo voto desigual para o Legislativo imposto pelo sistema eleitoral brasileiro. Para este pequeno texto, contudo, estamos considerando que podemos ignorar tais precisões já que é demasiado grande a diferença entre a performance eleitoral do PT no Executivo e no Legislativo, sejam quais forem as contas que venhamos a fazer.
Uma rápida análise comparativa com alguns dos principais países da América Latina, permite afirmar que esse grande contraste entre a performance do PT nas eleições presidenciais e nas eleições legislativas pode ser caracterizado como uma excepcionalidade brasileira. Com efeito, na Argentina, na Bolívia, no México e no Uruguai, esse enorme contraste na performance da esquerda e da centro-esquerda nos dois tipos de eleição simplesmente não existe. E é preciso chamar atenção para essa particularidade da situação brasileira frente à situação vigente nos principais países da Região, porque o jornalismo político e inclusive parte da esquerda tendem a naturalizar a exceção brasileira que, na verdade, deveria causar muita estranheza. A candidata presidencial da esquerda mexicana, Claudia Sheinbaum, acabou de vencer a eleição presidencial deste ano e o seu partido, o Morena, obteve maioria qualificada de dois terços na Câmara e também no Senado mexicano. O Morena forma uma coalizão com dois partidos progressistas menores – notem bem: progressistas – mas apenas com os seus próprios votos o Morena já é maioria no Congresso do México. Evo Morales e Luis Arce sempre puderam contar com o seu partido, o MAS, como partido majoritário no Congresso boliviano. O MAS chegou a obter em 2009 e em 2014 dois terços das cadeiras da Câmara e do Senado, usufruindo, portanto, de maioria qualificada para sustentar o Executivo Federal e, mesmo perdendo um pouco de votação nos mandatos legislativos iniciados no período seguinte, ficou com a maioria absoluta nas duas casas legislativas. Na Argentina e no Uruguai do século XXI, as presidências de centro-esquerda sempre contaram com maioria de centro-esquerda no Congresso ou quase isso. Enfim, em nenhum dos países citados se verifica o contraste que temos no Brasil: presidente progressista, eleito com mais da metade dos votos, e Congresso conservador, onde o partido do presidente é, literalmente, raquítico. Um impeachment do presidente da República progressista em todos os países hispano-americanos citados é praticamente impossível. Lá, ao contrário do Brasil, a direita tem de assumir um alto custo se pretender desferir um golpe de Estado. No Brasil, como sabemos, a reação pode realizar a ruptura institucional arcando com um custo político bem menor.
Por que a esquerda e a centro-esquerda no Brasil têm representação raquítica no Congresso Nacional? Uma resposta taxativa a essa questão exige uma investigação aprofundada. Não é esse o objetivo deste pequeno texto. Queremos apenas indicar algumas hipóteses plausíveis e contribuir para uma discussão que, seguramente, é da maior importância para a definição da tática política da esquerda brasileira. Essas hipóteses evidenciam que é preciso algo mais do que meros alertas e chamamentos sobre a importância de se eleger deputados progressistas se se quer, realmente, mudar a correlação de forças, historicamente desfavorável para a esquerda, no Congresso Nacional.
Uma das causas fundamentais da representação raquítica da esquerda e da centro-esquerda brasileira no Congresso Nacional consiste no fato de o lulismo ser um tipo de populismo e, por isso, politicamente personalista e não-organizador, e isso principalmente no que respeita à organização no nível partidário[iii]. É certo que o personalismo político não é apanágio da política brasileira, pois se trata de um fenômeno generalizado da política contemporânea, mas acreditamos que esse fenômeno comporta gradações. O populismo lulista, nessa nossa hipótese, é muito mais personalista que as lideranças políticas progressistas dos demais países citados. Ou, dito de outro modo, estamos admitindo que na Argentina, na Bolívia, no México e no Uruguai, o voto é mais partidário que no caso do lulismo no Brasil. Como destacam muitos observadores, a maioria dos eleitores de Lula são, com perdão da redundância, eleitores de Lula, não do PT. No Brasil, o fato de o voto ser mais personalizado, isto é, menos partidarizado que nos países citados, esse fato dificulta a percepção, por parte do eleitor, da unidade política existente entre a candidatura presidencial progressista e os candidatos do PT ao Congresso Nacional e, o que vem a ser o outro lado da mesma moeda, dificulta também a percepção da diferença que separa a candidatura presidencial progressista das candidaturas conservadoras ao Congresso Nacional.
Isso significa que o eleitorado lulista é despolitizado? Sim, e não. Ele não o é da maneira que pretendem os liberais e a direita em geral. Isto é, o eleitor não vota em Lula pelo seu suposto “carisma” ou pela sua pessoa, que passaria a dispor, assim, de condições para manipular um eleitorado dito desinformado, mas vota em Lula pela política econômica e social que espera dele. Logo, existe, sim, uma relação política efetiva, mas a particularidade nesse caso é que o caráter político dessa relação é ocultado pela percepção que dela possuem as partes nela envolvidas. Esse ocultamento faz com que o eleitor lulista sinta-se grato à pessoa do presidente pelas políticas sociais e não se veja comprometido com um programa partidário definido. A identificação política mantém-se difusa. E essa é a outra dimensão, tão efetiva quanto a anterior, personalista e despolitizadora do lulismo. Acrescente-se que a principal base de apoio – não a força dirigente – do lulismo é o grande contingente de trabalhadores da massa marginal que, devido sua situação econômica e social, apresenta grande dificuldade de organização política. Participam apenas de modo intermitente da atividade política e por intermédio do voto.
Por ocasião da Caravana Lula pelo Brasil em 2017, quando Lula fez um périplo pelos Estados do Nordeste, era comum o público presente aos seus comícios expressar o seu apoio com o brado: “Lula, eu te amo”. Naquele ano, uma reportagem, até hoje estampada no site do PT e no Facebook do partido, trazia como chamada: “Para muitos nordestinos, Lula é conhecido como ‘pai’”. E a matéria continua: “É assim que ele é chamado em todas as cidades, por milhares de pessoas que o acompanham. Nesta segunda [-feira], ele recebeu diversas declarações de amor em Lagarto.” [iv]. Acrescentamos nós: esse fenômeno antecede de muitos anos a Caravana Lula Pelo Brasil e continua presente nos dias de hoje. No período de 2021 e 2022, reiterados foram os discursos emitidos por Lula ou por sua campanha que reforçavam sua relação de tipo personalista e paternalista com apoiadores. Em suas aparições públicas, Lula fez questão de salientar que a palavra governar deveria ser substituída pela expressão “cuidar do povo”. O jargão “o pai tá on” foi amplamente utilizado em seu marketing político para reiterar a ideia de Lula como pai do povo e para sugerir também que Lula é um pai que se faz presente e é responsável pelo seu povo[v]. O amor pelo presidente foi celebrado por um dos jingles mais difundidos nos comícios e atividades de campanha: “Oh Lula, teu nome tá guardado no meu coração / Tu não me sais da mente não / E aqui no meu barraco todo mundo já te ama”. A percepção vigente no campo lulista segundo a qual a relação política da liderança com sua base seria uma relação pessoal, essa percepção é algo sabido, mas grande parte da esquerda não dá a devida importância a esse fenômeno. Chegou-se mesmo a “teorizar” que a individualização da liderança é a “maneira brasileira” de se fazer política, sugerindo que seria desnecessário e até inútil lutar contra ela.
A personalização da liderança política pode recuar, ou até desaparecer, somente se os trabalhadores estiverem organizados em partidos de massa, isto é, partidos políticos com organização de base nos locais de trabalho e/ou de moradia; partidos que forneçam educação política permanente para seus membros; que tenham atividade política perene e não apenas em ano eleitoral e que travem a disputa política interna com base em questões programáticas e em processos e fóruns destinados a esse fim. Já se chegou a alegar, em debates públicos, que em países populosos como o Brasil seria inviável a construção de partidos de massa. Não restaria assim outra opção que não aquela da relação de tipo personalista do líder com a massa. O argumento é estranho porque os mais destacados partidos de massa da história existiram justamente em países com população numerosa ou gigantesca – a Alemanha da II Internacional, a Rússia czarista e a China Revolucionária. Pois bem, se, em vez de se encontrarem organizados em partidos de massa, os trabalhadores estiverem politicamente desorganizados, mobilizando-se apenas em período eleitoral para sufragar uma liderança política progressista, tornam-se vulneráveis ao assédio da grande mídia, dos robôs das redes sociais e daqueles que têm poder capilarizado na sociedade brasileira, poder oriundo da estrutura capitalista e dependente dessa sociedade – os proprietários de milhões de pequenas e médias empresas espalhadas pelo país, os proprietários de terra, os chefes políticos locais, os pastores evangélicos, as milícias etc.
É verdade que esses centros de poder social agirão não só contra os candidatos progressistas ao Congresso Nacional, mas também contra a candidatura progressista à Presidência da República. Contudo, nossa hipótese é que eles têm motivo para centrar os seus esforços na luta pelas candidaturas legislativas e pelos ramos subnacionais do Estado. Essa miríade de centros de poder capilarizados na sociedade brasileira representa classes sociais e frações de classe que não têm condições de lutar pela hegemonia no Estado nacional – a pequena burguesia, o médio capital, os fazendeiros, a alta classe média e outros. Na disputa pelo controle da política econômica, social e externa do Estado nacional, participa apenas o grande capital – produtivo e/ou financeiro, nacional e/ou internacional. São os segmentos burgueses que têm condições, no Brasil atual, de determinar os principais aspectos da política do Estado brasileiro. O que resta, realisticamente, para as classes e frações de classe que, embora burguesas, encontram-se excluídas da luta pela hegemonia no Estado, é focarem na luta pelos ramos subalternos do aparelho de Estado e tentarem influir, seja qual for o segmento momentaneamente hegemônico do grande capital, seja qual for o governo do momento, nas medidas políticas cuja importância não é vital para os segmentos burgueses mais poderosos, mas que são suficientes para moderar os prejuízos advindos da posição necessariamente subalterna que ocupam. Enfim, envolvem-se eleitoralmente na disputa presidencial e legislativa, mas concentram suas forças na obtenção de prefeituras, governos de Estado e de cadeiras no ramo legislativo nacional, estadual e municipal[vi]. E é aí que as coisas ficam muito difíceis para os candidatos a cargos legislativos do PT que se dirigem ao eleitorado sem a mediação da organização partidária de massa. A doutrinação ideológica, a prática do clientelismo e a intimidação que a direita, apoiada pelos centros periféricos de poder econômico e social, pode fazer, é a arma com a qual contam as candidaturas conservadoras à Câmara Federal[vii].
Outro elemento a ser considerado, e que deixaremos apenas indicado aqui, é, como destacam alguns observadores, o sistema eleitoral brasileiro. Esse sistema realiza as eleições legislativas em lista aberta de candidatos. O eleitor pode escolher o candidato a vereador ou a deputado que preferir, inclusive votar em partidos diferentes para os cargos em disputa. O voto é no candidato, não no partido. Na Colômbia, onde o presidente Gustavo Petro está em minoria no Congresso nacional, o sistema também utiliza a lista aberta, embora a combine com a lista fechada[viii]. O personalismo da eleição presidencial também está presente na eleição legislativa em lista aberta ou, dizendo de outra forma, a despartidarização atravessa o sistema de alto abaixo. A lista aberta é um arranjo institucional que favorece o personalismo, enquanto a lista fechada favorece a partidarização das eleições legislativas. É do conhecimento de todos o fato de que nas eleições municipais as barreiras partidárias que dividem a política nacional podem ser ignoradas em proveito de arranjos locais[ix].
Voltando à comparação com países da América Latina, cabe observar que na Argentina, Bolívia, México e Uruguai, o voto para o legislativo é em lista fechada[x]. O eleitor não escolhe o candidato, apenas o partido em que deseja votar para ocupar as cadeiras do legislativo. É claro que o exame em profundidade dos sistemas eleitorais de todos os países citados exigiria considerar também outras características de tais sistemas, mas a alternativa voto em lista fechada versus voto em lista aberta é suficientemente importante para que a consideremos um elemento central na nossa discussão.
No Brasil, em 2007 e novamente em 2015, a Câmara dos Deputados rejeitou propostas de reforma do sistema eleitoral que estabeleciam o sistema de lista fechada para as eleições legislativas. Em 2007 se tratava do Projeto de Lei 1210/07 e os deputados do PT votaram a favor da lista fechada; mas, em 2015, os deputados do PT se posicionaram contrários à Emenda apresentada pelo PMDB à PEC da Reforma Política, emenda que estabelecia o voto em lista fechada para o Legislativo[xi]. Nessa ocasião o líder do PT na Câmara, Deputado Sibá Machado (PT-AC), declarou que o PT era, em princípio, a favor da lista fechada, mas que antes de sua implantação seria preciso, primeiro, educar politicamente a sociedade. “Hoje, a sociedade olha o processo político e diz que quer votar no candidato e não em partido”, observou a liderança petista. Não investigamos o suficiente para poder ajuizar sobre os motivos que levaram o PT a se posicionar contrário à partidarização das eleições legislativas no Brasil, partidarização essa que tanto interessa aos trabalhadores[xii].
Com o declínio do hiperpresidencialismo, as dificuldades se avolumaram para a esquerda brasileira. Até aqui, a combinação entre, de um lado, liderança política nacional personalizada no topo, e, de outro, movimentos reivindicativos e segmentados, isto é, limitados como todo movimento reivindicativo, na base, estava dando certo para o lulismo, graças justamente ao regime de completa concentração do processo decisório nas mãos do Executivo federal. Parte da esquerda pode ter chegado a imaginar que estava liberada da labuta de organizar em partido político a grande massa de trabalhadores – estamos falando de organização partidária, que é a forma superior de organização dos trabalhadores e trabalhadoras, e não de movimentos sociais. A receita era a aliança do populismo com a postura que supervaloriza o movimento reivindicativo, os decantados movimentos sociais. Mas, agora que o Congresso Nacional deixou de ser uma instituição tão dócil às demandas da Presidência da República, como o fora nos governos FHC 1 e 2, Lula 1 e 2, e agora que existe no Congresso Nacional uma direita neofascista que não faz o jogo da fisiologia, estamos assistindo a um desgaste crescente do próprio lulismo, pois esse dependia daquela modalidade de presidencialismo.
[1] Disponível aqui.
Disponível aqui.
Disponível aqui.
[ii] O número de deputados federais eleitos pelo PT nas seis últimas eleições nunca permitiu ao partido ultrapassar a modesta marca de 17% das cadeiras da Câmara Federal em qualquer legislatura: 91 deputados eleitos em 2002, 83 em 2006, 86 em 2010, 69 em 2014, 56 em 2018 e 69 em 2022. Os resultados do partido no Senado Federal são igualmente modestos. O número de senadores eleitos pelo PT nos anos em que estavam em disputa 54 vagas são os seguintes: 10 em 2002, 11 em 2010, 4 em 2018. Nos anos em que estavam em disputa 27 vagas, o cenário é igual ou pior: 2 em 2006, 2 em 2014 e 4 em 2022. Para um panorama completo desses e de outros dados eleitorais sobre o PT no período de 2002 a 2022, veja o artigo de Danilo Enrico Martuscelli e Sávio Machado Cavalcante, “Efeitos políticos da terceira ofensiva neoliberal na Bolívia e no Brasil”. Caderno CRH, v. 36 (2023) –Disponível aqui. Chama a atenção também o fato de que, nesse mesmo período, o número máximo de candidatos que o PT conseguiu lançar a deputado federal sempre foi bastante inferior ao número de cadeiras da Câmara Federal que é 513: 442 candidatos do em 2002, 367 em 2006, 373 em 2010, 395 em 2014, 403 em 2018 e 362 em 2022. Disponível aqui.
[iii] Essa tese é desenvolvida em Armando Boito Jr, “O lulismo, o populismo e o bonapartismo”, in Armando Boito Jr., Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos governos do PT. São Paulo e Campinas: editoras Unesp e Unicamp. 2018. Pp. 121-155.
[v] Ver a matéria publicada na semana passada no site Brasil247 com a seguinte chamada: “Eu vou cuidar de vocês como eu cuido do meu filho, como eu cuido da minha neta, diz Lula aos mineiros”. Na ocasião desse discurso o presidente estava anunciando pacote de investimentos em infraestrutura e áreas sociais do Estado de Minas Gerais. Brasil247 em 29 de junho de 2024. Disponível aqui.
[vi] No período de 2002 a 2022, nos anos em que obteve melhor desempenho eleitoral, o PT elegeu apenas cinco governadores de um total de 27 em cinco eleições sucessivas – 2006, 2010 e 2014 – e 638 prefeitos de um total de 5.568 em 2012. Além disso, cabe observar que, nas 26 capitais e nos 70 municípios com mais de 200 mil eleitores, o desempenho do PT foi tendencialmente frágil, e passou a ser inexpressivo a partir de 2016: 9 prefeitos eleitos em 1996, 22 em 2000, 21 em 2004, 25 em 2008, 18 em 2012, apenas e tão-somente 1 em 2016 e 4 em 2020. Disponível aqui. A Assembleia de Deus, antes da candidatura presidencial de Bolsonaro, concentrava, sistematicamente, seus esforços eleitorais nos cargos legislativos. Ver Vinicius do Valle, Entre a religião e o lulismo. São Paulo: Editora Recriar. 2019.
[vii] Falamos em clientelismo e não em coronelismo pois consideramos esse último um fenômeno residual na política brasileira. Ver Franscisco Farias, “Clientelismo e democracia política: elementos para uma abordagem alternativa”. Revista de Sociologia e Política (15) novembro de 2000.
[ix] Exemplo significativo. Nas eleições municipais de 2008, quando o lulismo se encontrava na sua melhor fase, mais de 40% das alianças locais uniam o PT a partidos que faziam oposição ao Governo Lula. Especificamente com o PSDB, o PT aliou-se em mais de 1.000 municípios dos 5.563 então existentes. Ver Eleições 2008 – Coligações. Jornal Folha de S. Paulo. 30 de setembro de 2008. Disponível aqui.
[x] Guillermo Oglietti, “Reglas electorales presidencias y legislativas en América Latina”. Celag, disponível aqui.
[xi] Ver a matéria “Plenário rejeita sistema eleitoral de listas fechadas”. Agência Câmara dos Deputados. Disponível aqui.
[xii] Jornal Estado de Minas. “Câmara rejeita lista fechada para eleição de parlamentares”. Edição de 26 de maio de 2015. Disponível aqui.
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O lulismo e o declínio do hiperpresidencialismo brasileiro. Artigo de Armando Boito Jr. e Danilo Enrico Martuscelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU