03 Janeiro 2024
"As políticas social-democratas tradicionais, reerguidas como projetos do Estado Social, não têm sido suficientes para unir a maioria da sociedade em torno da democracia política, como conseguiram nos seus 'anos gloriosos'".
O artigo é de de Tarso Genro, foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil, publicado por Sul21, 01-01-2024.
Segundo ele, "transformar uma utopia socialista numa plausível democracia socialista de caráter emancipatório não foi uma tarefa cumprida, até agora, nem pelos comunistas, nem pela ideologia e pelas práticas social-democratas reais. Mas isso é possível? Podemos dizer – muito de nós – que não sabemos se é realmente possível, pois – até agora – não foi".
A ideia marxiana de uma revolução soviética está expressa no Manifesto Comunista e nas obras de Trotsky e Gramsci de maneira diferente. A ideia de um reformismo forte, não insurrecional, está muito bem representada por Kautsky e Bernstein e a crise social-democrata, que atravessa todos os continentes, está bem expressa pelo que foi uma lúcida, mas impotente, reação política da esquerda espanhola, para reduzir o potencial demolidor do franquismo, ainda aceso e depois recidivo, mesmo depois do Pacto de Moncloa.
É meu primeiro e difícil artigo do ano da graça de 2024.
As estreitas margens de manobra que sufocam hoje as experiências social-democratas de diversas matizes, para aplicar programas de corte nitidamente reformista “forte”, visando atender — em cada país específico — às necessidades dos excluídos e mais explorados, têm aberto a possibilidade — em todo o mundo — de uma grave recidiva de caráter fascista ou protofascista. Não é um acaso, nem uma nuance, mas um sistema-mundo novo que emerge, através do qual a direita “democrática” tradicional, conservadora ou reacionária, declina de hegemonizar a extrema-direita e pode se lançar em massa aos braços do fascismo, buscando promover a reação e o conservadorismo a um estatuto “revolucionário”.
As políticas social-democratas tradicionais, reerguidas como projetos do Estado Social, não têm sido suficientes para unir a maioria da sociedade em torno da democracia política, como conseguiram nos seus “anos gloriosos”. Não só porque ela – a política social-democrata –, ao mesmo tempo que definiu direitos que geraram custos financeiros elevados e não absorvidos pelo sistema de tributos, criou também uma malta de ricos insaciáveis, alimentados pela reprodução especulativa do dinheiro, que jamais renunciarão aos seus “direitos” de uma maneira cordial.
A flexibilidade da social-democracia, em relação aos direitos, vem acompanhada de “reformas” liberais que também criam sua própria base social, como na ilusão empreendedora supostamente universal, que conquista grande parte das “classes populares”, sem qualquer resposta convincente das esquerdas, já limitadas por aquelas escassa margens de manobra permitidas pelo capital financeiro organizado em termos globais.
A situação é análoga ao ambiente criado no mundo após a Primeira Guerra Mundial, com a diferença que as guerras não são mais “concentradas” em “blocos” contra “blocos”, que depois se resumiram em dois grandes blocos desenhados na Segunda Guerra. Agora, há numa sucessão de guerras localizadas que dispensam grandes mobilizações físicas das tropas dos países ricos em confronto para se apropriarem das riquezas naturais e das fontes de energia ainda encontrada nas regiões mais remotas do globo: os países coloniais-imperiais, de longe, apenas “terceirizam” e determinam o “dever de casa” dos países que estão sob seu jugo, no xadrez imperial-colonial.
Trata-se, assim, não de uma barbárie “extensiva” na crise civilizatória, mas de uma barbárie “em compota” – supostamente mais limpa (embora mais suja e mais desigual) – ora visando o controle de territórios estratégicos, ora para a extinção de “focos de terrorismo”, em ações militares que acabam por martirizar populações inteiras, que passam a ter seus territórios ocupados pelo países coloniais-imperiais. Velhos, mulheres, crianças, população civil, são alvo de ações terroristas de Estado que, se são tecnicamente “crimes de guerra”, não têm maiores diferenças dos genocídios que acompanharam o lado irracional da modernidade e a história da acumulação privada sem limites.
Este pequeno ensaio sobre o futuro da estratégia da democracia social, visa fazer uma súmula – leve e rápida – do rumo do legado que a social-democracia deixou para a Humanidade, procurando explorar não a sua universalidade abstrata, mas o seu particularismo concreto em países como o Brasil. Abordada a partir do início do Século XX verifica-se que a social democracia se repartiu em dezenas, senão em centenas de “galhos” de uma grande árvore social-democrata, cuja resultante ainda está longe de ser inteiramente compreendida.
Sua mais significativa divisão foi a que definiu o campo marxista revolucionário – comunista e bolchevique – do campo social-reformista, cujas presenças mais fortes até os anos 70 foram representadas pelo Partido Socialista Francês, o Partido Trabalhista da Inglaterra e as experiências edificantes da Noruega, Suíça, Suécia e Dinamarca, pequenos países inseridos no mundo capitalista com importantes experiências de democracia e bem-estar social, que são referenciais até hoje.
O “dossier” da árvore social-democrata (L’Arbre social-démocrate, Presses Universitaire de France, “Actuel Marx”, 1998, n. 23, diversos autores”) contextualiza este meu artigo e limita o meu tema, principalmente a partir da elaboração teórica e da “prática fundadora”, que vai de Marx a Engels, e de Kautsky a Bernstein e que passa evidentemente por Lenin e Stalin. A partir da liderança destes dois dirigentes na formação da URSS, o ocidente triunfa sobre o nazismo – depois da Segunda Guerra – abrindo o espaço histórico do Estado de Direito no ocidente e a ideia de uma social-democracia “realista”.
A social democracia realista expurga a ideia de um socialismo proletário com democracia política para aderir a um capitalismo com direitos sociais ampliados, selando o fracasso – pelo menos neste período – da ideia da emancipação humana pela igualdade, até ali dada pela ideia marxiana da redenção “proletária” pelo Estado: a burocracia vence a classe, o ritualismo manipulatório derrota os ”sovietes” e a impotência jurídica e política da socialdemocracia de Weimar derrota a utopia de socialismo desacomodado da luta de classes.
Destes dois grandes galhos da social democracia do Século XX é possível destacar dois legados históricos importantes: o primeiro, da experiência soviética, que conseguiu fundar um Estado altamente militarizado, afastou os laços feudais da velha Rússia e gerou uma moderna sociedade industrial que derrotou o demônio da Humanidade moderna, o nazismo e as suas terminações fascistas; o segundo “galho” (da socialdemocracia) mostrou que o capitalismo pode oferecer uma vida bem melhor aos povos da nações modernas, do que aquela originária da sua acumulação primitiva colonial. São duas conquistas civilizatórias que pouco tem a ver com a ideia utópica, democrática e libertária, do ideal socialista e da formação do homem “social”, ou “novo”, que lhe é correspondente.
Apontados estes traços concretos do processo socialista moderno, indiquemos precedentes teóricos autorizados. O primeiro deles está no próprio Manifesto Comunista e assim é narrado: “O proletariado vai usar seu predomínio político para retirar, aos poucos, todo o capital da burguesia para concentrar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado – quer dizer, do proletariado organizado como classe dominante – e para aumentar a massa das forças produtivas o mais rapidamente possível”.
Esta equação foi assim simplificada na URSS: o proletariado russo exaurido pela Guerra, não só não formou quadros para a gestão do Estado como jamais exerceu qualquer predomínio político na URSS, que foi exercido pelos quadros do Partido Comunista que substituíram os sovietes, assembleias proletárias que estavam constitucionalmente destinadas ao exercício de poder. A realidade da História mostrou, na URSS pelo menos, a inviabilidade da hegemonia proletária sobre o Estado e teve o efeito maléfico de identificar, falsamente, a “direção proletária” da Revolução com a gigantesca burocracia “soviética”.
Benjamim ressaltou que “quando Marx fez a sua crítica do modo capitalista de produção esse modo ainda estava em sua infância” (e assim ele) “direcionou os seus esforços para dar a sua crítica valor de prognóstico.” A sacralização de cada frase de Marx pelo marxismo soviético e por muitas das suas leituras dogmáticas não só empobreceram e desvalorizaram a sua obra genial e complexa – inspiradora inclusive de intelectuais que lhe sucederam e que sequer se identificavam como marxistas – como também atropelou a política de maneira devastadora.
Isso foi feito pela deslegitimação de “hereges” que tentavam problematizar algumas formulações de Marx, como a ideia de “ditadura do proletariado” e as simplificações leninistas sobre o tema do socialismo, identificadas, por exemplo, na sua fórmula simplória “socialismo = sovietes + eletricidade. Está em Gramsci que, com a simplificação do marxismo para torná-lo “a filosofia do proletariado”, muitos “adeptos” de Marx promoveram um certo culto da “simploriedade” das massas de espoliados, esquecendo que desta forma o marxismo poderia se transformar numa “filosofia primitiva do senso comum.”
Passemos para o segundo referencial teórico da social-democracia do início do século passado, a saber , o socialismo reformista e progressivo de Kautsky e Bernstein que, como já se viu, se tornou tão prudente que foi depenado de qualquer resquício libertário, embora resguardassem o valor substancial da democracia política de caráter liberal-representativo. Kautsky faz a previsão que com as amarras internas do partido, combinadas com a visão de ditadura do proletariado, o Estado Soviético terminaria sendo governado por um “Napoleão Vermelho”, desenhando a figura mítica de Stálin, como Chefe de Estado e de Governo, que elevou ao ponto máximo de eficácia os termos do regime da Revolução Bolchevique que, ao fim e ao cabo, derrotou o militarmente a máquina de guerra e de extermínio do nazismo.
Trotsky, também marxista ortodoxo, fez uma formulação tão profética e coerente como a de Kautsky sobre o regime do “Napoleão vermelho”, quando observou que a falência do proletariado como força política dominante, tanto no regime soviético real como no processo global de um suposto processo de revolução socialista (face às mudanças causadas pelos novos meios tecnológicos apropriados pelo capital) que obrigariam a redefinição da estratégia de toda uma época e das próprias potencialidades revolucionárias do proletariado.
Aquela apropriação, que mudou o sentido da época industrial clássica – tanto na produção de bens materiais como imateriais – teve reflexos em sequência na História contemporânea e foram ficando cada vez mais visíveis, tanto no Cinturão Vermelho de Paris onde Madame Le Pen vem obtendo grandes votações, ao ABC Paulista, onde Bolsonaro e a direita neoliberal fizeram grandes votações em eleições livres. Os excluídos da sociedade formal vão na mesma direção: numa sociedade em que o mercado comanda todas as grandes emoções e as lutas entre as classes se transfiguram como guerras em torno do consumo evasivo e suntuário, a produção da obsolescência programada e a fragmentação estrutural da nova sociedade de classes tende a reiterar a destruição dos sujeitos “naturais” da revolução, se é que eles realmente existiram.
O que, então, nos disse Trotsky com todas as letras: “se contra todas as possibilidades, a revolução de outubro não conseguir se estender a algum país avançado e se, ao contrário, o proletariado for obrigado a recuar em todas as frentes, então teremos indubitavelmente de colocar a questão da revisão da nossa concepção da época atual e das forças motrizes desta época”. A esta revisão das concepções da esquerda sobre a época, as esquerdas em regra responderam, ou com o velho dogmatismo improdutivo ou com a laceração das organizações socialistas – proletárias ou não- compondo uma constelação de grupos, donos – cada um – das suas verdades cultuadas como normas de convívio formal.
Um outro (terceiro) texto mais recente de virada de rumo do movimento social-democrata mais significativo, que pode ser considerado como uma síntese de toda a social-democracia europeia, é a apresentação do Manifesto Programa de 2000 (Ed. Sistema, Colección de Ciências Sociales, Madrid, 1991, págs. 21,22,23 ) escrito por Willy Brandt, Felipe González e Alfonso Guerra.
Naquele documento está expresso todo o desencanto com a ideia socialista-comunista, derrotada com a falência política da URSS, que o Manifesto do novo socialismo deve agora afirmar defendendo (…) “a validade de uma economia mista em que o estado, em novas funções, com novos procedimentos e abrindo-se à participação, deve atuar sobre a base do mercado e (…) desfraldar a bandeira de uma sociedade livre e cooperativa, que é a meta do socialismo democrático”.
É evidente um esforço revisional emancipatório, que não consegue superar a desigualdade de meios para vencer, entre o reformismo democrático e social de um lado, e, de outro, o conservadorismo das diversas releituras do franquismo, já também abrigadas no democratismo liberal e apoiado, materialmente, no capitalismo financeiro que controla a União Europeia.
Na verdade, o capitalismo monopolista de Estado que se trasladou, nas últimas décadas, para uma forma de “capitalismo financeiro monopolista de Estado”, tanto seria propício — se “desapropriado” pela “revolução proletária” – para encaminhar o socialismo em escala mundial, como mostrou-se — (sem desapropriação), um campo seguro para a implementação mundial do modelo neoliberal em curso, que vem subjugando a economia da socialdemocracia e do Estado Social, este, em crise, antes mesmo de ser implementado de forma moderada.
Transformar uma utopia socialista numa plausível democracia socialista de caráter emancipatório não foi uma tarefa cumprida, até agora, nem pelos comunistas, nem pela ideologia e pelas práticas social-democratas reais. Mas isso é possível? Podemos dizer – muito de nós – que não sabemos se é realmente possível, pois – até agora – não foi. Creio, todavia, que devemos sempre repensar o enigma dos então jovens marxistas Ernst Bloch e Lukács, que ao começar os seus diálogos filosóficos antes da Primeira Guerra se perguntavam : “Como se pode e como se deve viver hoje?”
Bloch respondia, no seu grandioso livro o “Espírito da Utopia”, publicado logo após aquela Guerra: “é em nós mesmos que brilha esta luz e começa agora a marcha imaginária rumo a ela, a marcha para interpretação do sonho acordado …”. Sem isso, afinal, qual é a graça de viver, para reconhecer no cotidiano o sofrimento humano, sem fazer da nossa própria história um pequeno espaço da sua redenção?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Três informes da crise socialista e três desafios da sua redenção. Artigo de Tarso Genro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU