16 Dezembro 2023
Existem alguns livros que explicam a enorme transferência de renda dos pobres e da classe média para o topo da pirâmide social anunciada pelo ministro Luis Caputo. O ministro da Economia é o ex-banqueiro do JP Morgan, do Deutsche Bank e endividador em série que ofuscou Bernardino Rivadavia e seu empréstimo do Baring Brothers tomado em 1824 e que a Argentina terminou de pagar em 1947. Formado pelo Colégio Cardeal Newman, assim como Mauricio Macri, demonstra a insensibilidade da classe rica a que pertencem. Beneficiária da crise que ambos aprofundaram e que foi replicada pela maioria dos governos democráticos sem pôr um freio à sua ganância.
A reportagem é de Gustavo Veiga, publicada por Página/12, 15-12-2023. A tradução é do Cepat.
São bucaneiros do século XXI, cujos antecedentes e perfis parecem retirados de ensaios de grande impacto, não estritamente acadêmicos, mas que fizeram escola ao descrever a rapina desta classe de empresários e financistas a serviço da sua majestade o mercado. Um bando de cretinos que sempre pesca em águas turbulentas. Especialmente quando as economias empobrecidas estão a caminho do colapso.
Não é um mercado como La Salada, o Central de La Matanza ou a feira de qualquer bairro. É mais intangível. Você não vê senhoras ou senhores de shorts sofrendo com os preços. Nos mercados que “conversam” – como os personificam seus porta-vozes jornalísticos – sua presença só é percebida em um formulário do Excel, quando os traders apertam a tecla enter do celular ou do computador para transferir seus lucros para um paraíso fiscal ou quando aparecem fundos abutres como o Black Rock, o principal credor do país que reivindica uma parcela maior do bolo.
Os livros de fácil leitura que descrevem esses comportamentos e que seria apropriado reler nestes tempos de angústia coletiva são: O horror econômico (Editora Unesp), conforme definido pela ensaísta Viviane Forrester em 1997 ou Uma estranha ditadura (Unesp, 2001), da mesma autora francesa que faleceu em 2013. Também A doutrina do choque, de Naomi Klein (Nova Fronteira, 2008), que a jornalista canadense publicou em 2007. Evidentemente, há mais livros escritos antes e depois. Alguns são muito eruditos, como O capital do século XXI (Intrínseca, 2014), de Thomas Piketty, publicado em 2013. Neles é possível traçar a voracidade desses cavalheiros de colarinho duro e luvas de pelica que não hesitariam em transformar o próprio presidente Javier Milei em material descartável. Digamos, sem sutileza: o seu bisturi ou o fusível da motosserra.
O que estamos vivendo parece ser a crônica de um ajuste anunciado em textos muito antigos, que incluem os próprios autores, onde o personagem prospera com ideias e cabelos bagunçados. Dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, foi criada a Sociedade Mont-Pèlerin. Tem esse nome porque a nata liberal-ortodoxa da época reuniu-se num hotel dessa localidade suíça. Eles temiam não apenas o coletivismo. Além das ideias keynesianas sobre o Estado de bem-estar social.
O encontro de 1947 foi financiado por banqueiros desse país que esconderam as fortunas roubadas pelos nazistas da comunidade judaica vítima do Holocausto nas chamadas contas inativas. As duas referências ideológicas de Milei, os economistas austríacos Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, estiveram presentes. O primeiro já havia escrito em 1944 seu livro O caminho da servidão, que reivindica o deus mercado acima de todas as manifestações da vida humana no planeta.
Hayek escreveu: “Foi a submissão do homem às forças impessoais do mercado que, no passado, possibilitou o progresso de uma civilização que sem isso não poderia ter sido alcançado; é através da submissão que participamos diariamente da construção de algo maior do que aquilo que todos nós podemos compreender plenamente”.
Subordinação é o que eles buscam no governo da casta que não é tão casta. Render-se à força invisível do mercado como se o mercado não fosse movido por propostas que Piketty, a indiana Jayati Ghosh e outros economistas de prestígio chamaram de “simplistas” e sem “evidências comparativas ou históricas sérias”.
No dia 8 de novembro, o jornal britânico The Guardian e o jornal espanhol El País, para citar alguns, publicaram a declaração assinada por 108 economistas intitulada: “Os perigos do programa econômico de Javier Milei na Argentina”. Eles não estavam errados.
Ao se referir ao verdadeiro poder, que “não é o Estado”, Forrester diz em O horror econômico que “estas classes (ou castas) nunca deixaram de agir, suplantar e perseguir. Sedutoras, mestras da sedução, sempre foram objeto de incitamentos. Os seus privilégios continuam a ser objeto das fantasias e dos desejos da maioria, mesmo daqueles que dizem sinceramente que os combatem”.
Uma descrição semelhante à que os economistas deram no mês passado sobre a elite e o objetivo perseguido por Milei: “A visão econômica subjacente a estas propostas supostamente defende uma intervenção governamental mínima no mercado, mas na realidade baseia-se em grande medida em políticas estatais para proteger aqueles que já são economicamente poderosos”.
A análise de Forrester foi concluída três anos depois com a publicação de Uma estranha ditadura em que aponta como foi criada uma política de vocação totalitária que destrói a economia em benefício da especulação. Crítica da globalização, ela diz que ideias como as destes predadores “marginalizam setores cada vez maiores e ao mesmo tempo preservam as formas democráticas”.
Em A doutrina do choque, Klein fornece a definição de “capitalismo do desastre”. Aquela que apregoa como por trás de uma tragédia sempre existe uma oportunidade. E lista exemplos que vão do golpe militar de Pinochet contra Salvador Allende com o apoio dos EUA até a destruição de Nova Orleans pelo furacão Katrina em 2005. O livro da canadense foi transformado em documentário em 2009 pelos diretores britânicos Michael Winterbottom e Mat Whitecross.
Atribui-se a Hayek uma frase distópica sobre aquele Chile de 1973: “Um ditador pode governar de maneira liberal, assim como uma democracia pode governar sem o menor liberalismo. A minha preferência pessoal é uma ditadura liberal e não um governo democrático onde todo o liberalismo esteja ausente”.
O ultradireitista empobrecedor que governa desde domingo e dirigia insultos durante a campanha eleitoral assinou a certidão de óbito do peso quando o chamou de “excremento”. A moeda em que milhões de argentinos ganham seus rendimentos. Recebeu acusações por prática de terrorismo econômico e até o ex-presidente Alberto Fernández – em plena reforma muito antes de completar o seu mandato – o denunciou criminalmente.
Hoje vivemos mais uma vez o horror econômico, a doutrina do choque e uma já – não tão estranha – ditadura do mercado dirigida pelas mesmas pessoas de sempre. Nostálgicos dos Chicago Boys, Margaret Thatcher, José Alfredo Martínez de Hoz, Carlos Menem e Domingo Cavallo, o mais notório membro da antiga casta endividadora, cujo imitador e discípulo é o ministro Caputo.
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O horror econômico e a doutrina do choque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU