14 Dezembro 2023
O novo presidente argentino Javier Milei justificou a necessidade imperiosa de fazer duros ajustes econômicos argumentando com base nos supostos bons resultados das políticas neoliberais anteriores na região.
A reportagem é de Nathali Gómez, publicada por RT, 12-12-2023. A tradução é do Cepat.
Há mais de três décadas, os discursos de vários presidentes da América Latina após a chegada ao poder seguiam a mesma trilha: a necessidade irremediável de um ajuste doloroso e fulminante para evitar a queda no despenhadeiro econômico e fiscal. No entanto, a história mostrou que essas manobras neoliberais apenas aceleraram a descida ao abismo da violência e da pobreza.
Hoje, 30 anos depois, o recém-empossado presidente argentino Javier Milei, em linhas gerais, disse a mesma coisa. Em sua primeira mensagem como presidente em exercício, ele disse que não haverá "panos quentes" e que a dor será preferível à “baboseira do progressivismo”.
Milei propôs atravessar um caminho de escuridão para os argentinos que, nas suas palavras, levará essa nação a uma situação que começará a melhorar até chegar a ver a “luz no fim do caminho”.
O fundador de La Libertad Avanza disse que “não há alternativa possível ao ajuste” e que não há “lugar para a discussão entre ‘choque’ e gradualismo”, porque considera que “do ponto de vista empírico, todos os programas gradualistas terminaram mal, ao passo que todos os programas de 'choque', exceto o de 1959 [durante o governo desenvolvimentista de Arturo Frondizi], foram bem-sucedidos”.
“A conclusão é que não há alternativa ao ajuste e não há alternativa ao ‘choque’”, o que – advertiu – terá um impacto “negativo”. Além disso, prognosticou a estagflação como “a última bebida amarga para iniciar a reconstrução da Argentina”.
O termo "terapia do choque" é atribuído ao economista americano Jeffrey Sachs, um arquiteto do plano para acabar com a hiperinflação na Bolívia, em 1985. No entanto, essa mesma prática já havia sido usada pelo monetarista americano Milton Friedman, no Chile, logo depois do golpe de Estado que derrubou Salvador Allende, em 1973.
Segundo Friedman, “apenas uma crise – real ou percebida – dá lugar a uma verdadeira mudança” e, quando isso ocorre, as ações devem ser tomadas de forma rápida, repentina e irreversível para causar reações psicológicas que “facilitariam o processo de ajuste”, palavras recolhidas pela jornalista canadense Naomi Klein no seu livro A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre (Nova Fronteira, 2008).
Nesse trabalho, publicado em 2007, Klein se refere a vários casos no mundo e na região – entre os quais se encontram a Argentina, a Bolívia e o Chile – de governos que procuraram frear a hiperinflação “com a aplicação das medidas duras e drásticas corretas”.
Entre os chamados casos que serviram de modelo para a aplicação da terapia do choque na América Latina está o do Chile. No país sul-americano, mesclou-se o impacto que “o violento golpe de Pinochet” teve com o trauma causado pela hiperinflação aguda, escreve Klein.
Por isso, Friedman aconselhou o ditador a impor um “pacote de medidas rápidas” que incluía “redução de impostos, livre mercado, privatização dos serviços, cortes de gastos sociais e liberalização e desregulamentação”.
Pinochet, afirma Klein, fez “seus próprios tratamentos de choque, implementados pelas múltiplas unidades de tortura do regime”, que foi o caldo de cultivo da vulnerabilidade psicológica da população.
Já o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro havia catalogado como “bem-sucedidas” as práticas econômicas de Pinochet, o que foi negado por vários analistas, entre os quais o economista chileno Ricardo Ffrench-Davis, da Universidade do Chile.
Na sua opinião, as reformas econômicas neoliberais do militar chileno têm um equilíbrio “puramente negativo”, que foi acompanhado por “duas graves recessões, baixo investimento produtivo e alto investimento especulativo”. Isso aprofundou “a desigualdade, o excesso de importações, a desindustrialização, a deterioração da educação e o investimento público em saúde” e provocou um “alto desemprego”.
Klein descreve o caso argentino como “paradigmático” e lembra que, em 1983, após a dissolução da Junta Militar, foi eleito como presidente Raúl Alfonsín, que tinha como ameaça a chamada “bomba da dívida”, cuja mecha foi acesa nos anos da ditadura, fruto dos elevados gastos com a manutenção de um regime de repressão e tortura.
Esta situação econômica alarmante que recebeu não fez outra coisa a não ser piorar ao longo dos sucessivos anos de sua administração em que a dívida e a estagnação andavam de mãos dadas.
Assim, após sua chegada à Casa Rosada, em 1989, Carlos Saúl Menem (1989-1999) prometeu uma “grande cirurgia sem anestesia” com o neoliberalismo manejando o bisturi.
Em sua gestão, foi promovida “a concentração e a centralização do capital e a abertura da economia ao capital transnacional”, e a intervenção do Estado ficou anulada, através da liberação do mercado interno, do acesso ao capital transnacional e da privatização interna”, destaca a revista El Trimestre Económico, publicada pela Editora Fondo de Cultura Económica (FCE).
Estas medidas neoliberais tiveram o respaldo dos investidores internacionais, de Washington, do Fundo Monetário Internacional (FMI), que os venderam para o resto do mundo como um exemplo a seguir.
Seu sucessor, Fernando de la Rúa (1999-2001), manteve-se na mesma linha e “solicitou repetidas vezes grandes empréstimos internacionais ao FMI”, de acordo com a FCE, o que inevitavelmente desembocou na sua renúncia após o chamado ‘corralito bancario’, em 2001. Essa explosão social, no contexto de uma grave crise multifatorial, estendeu-se até a chegada do falecido Néstor Kirchner, em 2003.
O que aconteceu na Venezuela situa-se na mesma narrativa da aplicação de políticas neoliberais na região, com consequências trágicas que vieram quase de imediato.
O recém-eleito presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez propôs, em fevereiro de 1989, a necessidade de uma “mudança de rumo”, e uma “grande mudança” que levaria o país aos braços do FMI, que já havia ditado sua receita para aprovar uma ajuda financeira de 4,5 bilhões de dólares a serem pagos em três anos.
“Não haverá vacilações ou hesitações no caminho imposto pela construção da Venezuela moderna”, disse CAP – como era conhecido o falecido ex-presidente – ao anunciar o chamado “paquetazo” que, como nos outros países, incluía privatizações; liberalização de preços e juros; aumento do custo dos serviços públicos e do transporte público.
A promessa de um aumento do preço da gasolina em 26 de fevereiro de 1989, desencadeou um dia antes o ‘El Caracazo’, para buscar oxigênio em meio à asfixia econômica, cuja repressão por parte dos órgãos de segurança do Estado deixou pelo menos 3.000 mortos.
Apesar da resistência popular, o acordo com o FMI foi assinado no dia 1º de março e as manifestações se estenderam até o dia 8 daquele mês. Embora esse movimento popular espontâneo sem precedentes não tenha conseguido a renúncia de CAP naquele momento, foi qualificado como o ponto de inflexão para a sua saída, nos anos 90, e o nascimento do chavismo.
Essas experiências na América Latina também foram replicadas em países como o Peru, onde Alberto Fujimori (1990-2000), que apesar de sua minoria parlamentar, também optou por acabar com os subsídios, liberalizar preços e privatizar empresas.
Agora, 30 anos após o auge neoliberal na região e as terapias do choque, através de golpes dolorosos que tiveram respostas contundentes da população, o novo presidente argentino coloca sobre a mesa o déjà vu de uma solução que ele considera bem-sucedida, apesar do que diz a história.
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Os três casos em que a “doutrina do choque” na América Latina apostou no sucesso e perdeu o jogo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU