09 Abril 2022
"Por enquanto, apenas 300 padres russos assinaram uma declaração crítica sobre a guerra (de 40.000) e nenhum bispo em território russo. Um levantamento recente do Centro de Estudos Levada sobre o conjunto da população recolheu estas respostas: 53% apoiam firmemente a intervenção militar, 28% são bastante favoráveis. Apenas 14% são contra", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 06-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Demiti-lo, retornar ao Evangelho: o debate intraortodoxo sobre o patriarca de Moscou, Kirill, e sobre a sua censurável declaração a favor da agressão de Putin à Ucrânia, mostra como o conflito feriu profundamente a consciência dos que creem.
Quase 500 assinaturas foram recolhidas pelo documento teológico contra a ideologia do "mundo russo". As quatro vozes registradas nesta nota vivem na ortodoxia do Ocidente, mas preanunciam o futuro confronto dentro à Rússia: Jean-François Colosimo, Bernard Le Caro, Georges Nivat, Kirill Hovorum.
No dia 3 de abril, no cenário da gigantesca igreja das forças armadas russas inaugurada recentemente, o patriarca volta a defender a guerra contra a Ucrânia: "Estou muito feliz por ter hoje a oportunidade de celebrar a divina liturgia nesta bela igreja, na presença de nossos militares. Nossa pátria está passando por um tempo difícil. Hoje a qualificação "militar" ressoa novamente não apenas em uma nação em paz, mas em meio a um campo de batalha... (Celebro diante de) todos os defensores da pátria, para que percebam a importância histórica do momento presente. Quero repetir mais uma vez: somos um país amante da paz, muito amante da paz, com cidadãos que sofreram guerras como poucos outros países europeus. Não queremos guerra ou prejudicar os outros. Mas fomos educados ao longo de nossa história para amar a pátria, prontos para defendê-la da maneira que os russos conhecem bem”.
Estamos diante de um escândalo intolerável - afirma J.F. Colosimo -: “é necessário que seja posto um fim à mentira em que Kirill de Moscou arrastou a fé cristã diante do mundo. Devemos pôr fim à impostura de ver o primaz e o potentado russo pregar o conflito, abençoar a cruzada, absolver o crime conspurcando a cruz da salvação na mortalha da Ucrânia. Deve acabar a vergonha que petrifica os ortodoxos e a consternação que atinge católicos e protestantes”. “Cabe ao direito ao trono de Constantinopla, que é responsável pelo exercício da primazia (…), reunir os líderes das Igrejas locais, fortemente traumatizados por Kirill, para depô-lo com um ato colegial. Ou seja, destitui-lo, efetivando uma excomunhão que ele mesmo provocou” (Le Figaro, 23 de março).
"Na situação atual, Putin entende que toda a sua comitiva está sob forte pressão, que tenta escapar da catástrofe que se aproxima, por isso está tentando identificar quem o trairá - escreve Kirill Hovorun, ex-diretor do site patriarcal Credo e ex-colaborador de Kirill. A elite ao seu redor reage de maneiras diferentes: alguns fogem, nem mais nem menos; outros, por outro lado, declaram-lhe fidelidade até o fim. A declaração do patriarca parece significar para Putin: pode contar comigo, não vou traí-lo. Seu fim será meu fim, estou pronto”.
E ele lembra como a ideia de Russkij mir (o mundo russo) chegou a Kirill através de alguns politólogos liberais que visavam recuperar as inteligências russas dispersas após a queda da URSS. Kirill primeiro a transformou em pensamento pastoral para manter relações canônicas com as Igrejas dos antigos países soviéticos e depois em uma ideologia teológica a serviço do império de Putin. Aos olhos deste último, “a Rússia não passava de um grande distribuidor de gás. Foi a Igreja que ofereceu a Putin uma visão nova, uma nova linguagem para o projeto imperial”. "Chego a supor que sem a Igreja, sem a ideologia do Russkij mir... esta guerra talvez não tivesse acontecido" (La Nuova Europa, 28 de março).
Respondendo veementemente às observações de Colosimo, Bernard Le Caro afirma que não "fustigará" Kirill como solicitado por Colosimo. “É oportuno constatar que esta não é a primeira vez na história da Igreja que a hierarquia enfrenta uma situação difícil. Exemplos recentes incluem a Guerra Russo-Japonesa (130.000 mortos) de 1905. Na época, a Igreja Russa vivia de uma próspera missão no Japão. Seu líder era o arcebispo Nicholas (Kassatkine, falecido em 1912), posteriormente canonizado. Se ele deu permissão ao clero japonês para celebrar liturgias pela vitória de seu país, ele, no entanto, não participou delas. Ele não sentia vontade de se colocar contra os irmãos que derramavam seu sangue, mesmo que por uma causa discutível" (Orthodoxie.com 3 de abril).
Afinal, por que Bartolomeu abençoou a guerra do governo turco contra os curdos em 2018? E por que nenhum cristão no Ocidente se revoltou em relação aos ataques à Sérvia, à guerra no Iraque e à migração forçada de 200.000 cipriotas após a intervenção do exército turco no Chipre? Em vez de polemizar, é muito melhor rezar, como Kirill pediu repetidamente.
Georges Nivat (Parlons d'Orthodoxie, 4 de abril) responde a Le Caro: o problema não é fustigar ou não Kirill. “É antes uma questão da fé cristã em seu próprio fundamento. No momento dramático desta guerra, conduzida com frieza contra um país irmão e ortodoxo, um rebanho da Igreja Ortodoxa, é bom voltar ao que é para nós o ensinamento evangélico”. Estamos todos, como os acusadores da adúltera na narrativa evangélica (Jo 8, 1-13), com as pedras na mão para serem lançadas contra os outros. Voltemos a ser nós mesmos!… Nas torrentes das mentiras, retomemos simplesmente a oração de Cristo. Não vamos argumentar em demasia, vamos sim ajudar as vítimas”.
Por enquanto, apenas 300 padres russos assinaram uma declaração crítica sobre a guerra (de 40.000) e nenhum bispo em território russo. Um levantamento recente do Centro de Estudos Levada sobre o conjunto da população recolheu estas respostas: 53% apoiam firmemente a intervenção militar, 28% são bastante favoráveis. Apenas 14% são contra.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ortodoxos: sim e não à guerra. Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU