26 Março 2022
Nascido em 1968, autêntico moscovita do Arbat, Sergey Chapnin é um dos poucos que podem dizer que conhecem bem a Igreja Ortodoxa Russa (Cor) e o Patriarca Kirill. De fora, porque como jornalista sempre investigou a vida religiosa da Rússia.
De dentro, porque durante seis anos foi diretor do Jornal do Patriarcado de Moscou, secretário da Comissão Eclesial para as relações com a sociedade e as instituições e professor da Universidade Ortodoxa "São Tikhon", docente titular de um curso que, à luz dos acontecimentos recentes, tinha um título quase profético: "A Igreja e a sociedade da informação".
Tudo terminou quando, apresentando uma palestra ao prestigioso Carnegie Center de Moscou, Chapnin ousou falar de “Igreja do silêncio” diante da retórica da guerra e, sobretudo, de “Igreja do império”. Kirill, que o conhecia desde a década de 1990 e que o havia colocado à frente do Jornal logo após se tornar patriarca em janeiro de 2009, o demitiu em poucas horas.
Agora Chapnin se tornou promotor de uma carta aberta contra a guerra e contra a atitude da Igreja Ortodoxa Russa que em poucos dias angariou o apoio de uma centena de intelectuais e especialistas da Rússia e da Ortodoxia.
A entrevista com Sergey Chapnin é de Fulvio Scaglione, publicada por Avvenire, 24-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Igreja do Império... Você tinha uma visão de longo prazo.
Em determinados temas, o patriarca e o presidente Putin têm ideias que coincidem há pelo menos quinze anos.
Kirill tem a mesma visão imperialista para a Igreja que o Kremlin tem na política. Durante muito tempo o patriarca sentiu-se como a única figura que pode manter unidas as terras da ex-URSS, o verdadeiro líder espiritual do antigo império soviético, porque a Cor está presente nos países bálticos, na Ucrânia, no Cáucaso, na Ásia Central.
Ele acredita que a Ucrânia seja "dele", assim como Putin acredita que a Ucrânia seja "de Moscou". Portanto, é natural que os dois se apoiem um no outro. Por outro lado, o conceito de Russkij mir (mundo russo) e de Santa Rus' (ou seja, de um único corpo de povos eslavos que devem permanecer unidos sob a égide de Moscou, ndr), que há anos estão na base da propaganda e da historiografia do Estado, foram elaborados por um estreito âmbito de círculos intelectuais e think tanks, entre os quais teve um papel fundamental o Vsemirnyj Russkij Narodny Sobor (Conselho Mundial Popular Russo), que havia sido fundado justamente por Kirill quando ainda era metropolita e responsável pelas relações exteriores da Cor. Kirill conseguiu então "vender" essa ideia ao Kremlin, que se tornou a pedra angular da ação política da Rússia.
O que também está acontecendo do ponto de vista religioso, no entanto, é que Moscou está perdendo a Ucrânia.
A Ucrânia já foi perdida. Já 17 dioceses, quase metade do total, deixaram de nomear o Patriarca Kirill durante as liturgias, negando assim sua autoridade espiritual. E depois há outros sinais. Um convento de Lviv decidiu deixar a Cor para entrar na Igreja Ortodoxa da Ucrânia, aquela autocéfala nascida em 2018. Há uma avalanche a caminho.
Você acha que aqueles que saem da Cor entrarão na Igreja autocéfala ou que uma nova Igreja nascerá?
Acredito que uma nova estrutura da Igreja Ortodoxa nascerá na Ucrânia. Mas só quando a guerra acabar.
Não há dissenso interno na Igreja Ortodoxa Russa?
Antes se pensava que o metropolita Tikhon Shevkunov, o "confessor de Putin", fosse o falcão e o metropolita Hilarion Alfeev a pomba...
A situação é complexa, as leis em vigor não permitem chamar de guerra a guerra e de invasão a invasão, se você não usar a expressão “operação especial” você corre o risco de ser processado, multado e até ser preso. Há um grande número de conselhos paroquiais e párocos que têm medo de falar em público. Mas apenas um pároco fez uma homilia contra a guerra, o padre Ioann Budrin de Kostroma: em dois dias ele foi levado diante do tribunal e condenado a uma multa de 35.000 rublos, o que é uma grande soma para um pároco.
Podem se posicionar quase apenas aqueles que estão fora da Rússia, como o Metropolita Innokenty de Vilnius e da Lituânia, que proferiu afirmações muito corajosas contra a guerra. Mas até onde eu sei, essa foi a única voz de um alto membro da Igreja Ortodoxa Russa. Quanto aos dois metropolitas... Tikhon defende há muitos anos a necessidade de se opor ao Ocidente para proteger a integridade do mundo ortodoxo, obviamente visto como mais amplo do que o território da Federação Russa. Quanto a Hilarion, ele mantém um silêncio ostensivo. Ele não quer perder o contato com o resto do mundo cristão, mas no final também está do lado de Kirill.
Falando do mundo cristão: o Patriarca e o Papa Francisco conversaram via Internet.O que você pensa disso?
Não acredito que o Papa Francisco possa ter ficado satisfeito. Pelos próprios relatos oficiais do patriarcado fica claro que Kirill apenas reiterou suas teorias, aliás de forma bastante simplista. E depois tentou aproveitar a oportunidade: no Conselho Superior Eclesial, uma das principais instituições da Igreja Ortodoxa Russa, tentou defender que o contato com o Papa, como anteriormente com o Arcebispo de Cantuária e primaz da Igreja Anglicana Justin Welby, demonstrava que o Patriarcado não está isolado, enquanto conhecemos bem o juízo do mundo cristão sobre esta guerra.
Ao longo dos anos, Putin exibiu uma certa atitude religiosa. Mas ele realmente acredita nisso ou usa a religião por motivos políticos?
Na minha opinião, Putin é uma pessoa semirreligiosa, mas certamente não um cristão. Ele sente a necessidade de um elemento místico, misterioso, talvez mágico, e, acima de tudo, busca a confirmação sagrada do que está fazendo. É importante para ele acreditar que suas ações recebem alguma confirmação de cima. E o Patriarca Kirill, com as teorias sobre o Russky Mir ou a Santa Rus', oferece a Putin e ao Estado russo a justificativa que eles buscam para os crimes que cometem contra outros povos, mas também contra o povo russo, com a censura, a repressão, o terror.
Uma pergunta que todo mundo se faz: até onde Putin quer ir na Ucrânia?
Se pensarmos no tipo de para-religião que Putin e Kirill têm em suas mentes, acredito que a ideia seja conquistar Kiev. Eles pensam que Moscou é o centro político e cultural da Santa Rus', mas que Kiev é seu centro espiritual. É insuportável para eles imaginar Kiev como parte do Ocidente ou com um governo pró-ocidental, portanto acredito que mais cedo ou mais tarde tentarão conquistá-la. É uma ideia maluca, mas acredito que eles tentarão.
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“O patriarcado de Moscou perdeu a Ucrânia de qualquer maneira” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU